21 novembro 2025

a minha paisagem

"Eu era paisagista e as paisagens significavam muito para mim. Nos últimos 40, 50 anos, tenho vivido e escrito romances em locais onde posso ver a paisagem. Actualmente, estou em Nova Iorque, a leccionar em Columbia, e o meu apartamento tem vista para o rio Hudson. O meu apartamento em Istambul também tem vista para a entrada do Bósforo. As paisagens têm um efeito profundo em mim. Estimulam a minha imaginação e fazem-me pensar no mundo em geral. [...] Paisagem é uma palavra-chave para mim. Também a uso como metáfora." (Orhan Pamuk, in Ipsilon - jornal Público, 21 Novembro 2025)

Leio esta passagem de uma entrevista ao Prémio Nobel da Literatura de 2006, o turco Orhan Pamuk, e fico deprimido ou infeliz, não sei bem. Não é inveja das suas paisagens, porque não as desejo, mas sim o profundo desejo de ter para mim uma paisagem que me tranquilize, que me inspire e, principalmente, que me faça ficar, permanecer. A minha paisagem actual é uma bomba de gasolina da BP...

merdificação

Não conhecia a expressão, nunca a ouvira ou lera, mas porque gostei dela, passará a fazer parte do meu léxico. Encontrei-a hoje no Ipsilon do jornal Público, numa peça-entrevista a Cory Doctorow, um activista pela Internet e pelos direitos digitais, autor de vários livros, que passou recentemente por Lisboa, para discursar na Web Summit. Inventou este termo "enshittification" em 2023 e trata-o como uma doença... "um fenómeno em que as plataformas deixam de ter o utilizador como prioridade e passam a focar-se no lucro. Perdem qualidade e entram em decomposição, mas continuam vivas, paradoxalmente". A merdificação é um processo e o autor analisa-o:
"1- Primeiro, as plataformas começam por ser boas e úteis para os utilizadores;
2- Assim que esses utilizadores ficam agarrados, as plataformas abusam dos utilizadores para que sejam mais vantajosas para os seus clientes empresariais;
3- Depois, as plataformas abusam desses clientes para ficarem elas próprias com os lucros;
4- Por fim, transformam-se num monte de merda... passam a oferecer o mínimo possível que seja suficiente para manter os utilizadores colados uns aos outros, e os publishers e anunciantes colados aos utilizadores."
De facto, vivemos tempos de merdificação, e não é só na internet. Vivemos num mundo em que o verbo que se conjuga é merdificar. A merdificação está generalizada e é colectiva, ou seja, andamos a borrar a cara com merda uns aos outros.

desalento, talvez

Chegado a esta idade, e às suas circunstâncias, perscrutando o mundo que me rodeia e reflectindo sobre o estado das "coisas", fico deprimido e com vontade de abdicar da inconformidade e resistência, atitudes em que tenho militado desde que me conheço. Numa simples analogia, sinto que tenho existido em contra-mão daquilo que é o sentido em que a maioria vive.
Durante as mais de três dezenas de anos que levo de activismo, primeiro na dimensão associativa, depois política e, por último, social, não deixei de acreditar, em cada momento, que era possível um outro mundo, uma outra sociedade. Hoje, agora, já não sei se será bem assim. Pode, e espero, ser um estado de alma e algo apenas conjuntural e amanhã voltarei a acreditar num amanhã promissor. No entretanto, e já há cerca de meia-dúzia de anos que a Antropologia é o meu enfoque e será através do seu crivo que manterei a atitude activista possível.
A vontade e o interesse pelo trabalho de campo, pelo mundo rural, associados à paixão pelo território transmontano, tem-me ocupado o tempo e os sentidos. É e será por aqui que vou ficar. Em todo o caso, também sei, em e com consciência, que jamais deixarei de me preocupar por tudo o que diz respeito ao colectivo, à comunidade e ao seu futuro.

19 novembro 2025

o menor esforço impera


Aqui está algo de superlativa importância, mas que não merece a devida, ou qualquer atenção de ninguém. Impressiona a quantidade e variedade de alimentação ultraprocessada disponível nos super e hiper-mercados. Se isso acontece é porque são comprados e consumidos (lei da oferta/procura), beneficiando as grandes empresas e os seus lucros corporativos, e prejudicando em muito a saúde dos indivíduos que, cada vez mais, consomem e fazem deles a sua dieta. Naquilo que é a minha experiência, há muito me apercebi desta realidade e, procurando etnografar, quando dizemos que aqui em casa fazemos puré da forma tradicional (cozer batatas, esmagá-las, juntar leite e manteiga, bater bem até ficar homogéneo,...), até se riem do trabalho e tempo desnecessários, pois há no mercado soluções bem mais fáceis e rápidas de o fazer; com o esparregado a mesma coisa, e com a maionese, e com massas (lasanhas, canelones, etc.). É bem mais fácil ir ao supermercado e comprar as refeições já confeccionadas e prontas a comer. Enfim, o princípio do menor esforço impera, acrescentando valor às grandes empresas globais e acrescentando graves e crónicos problemas de saúde e comorbidades aos consumidores. Excelente artigo, hoje no jornal Público.

17 novembro 2025

vamos LER


Agora que, dizem, vem aí o frio de final de Outono, chegou a revista LER de Verão. Portanto, numa espécie de Verão de São Martinho, temos leitura boa para as horas que aí vêm. Mais vale tarde que nunca, dizem.

13 novembro 2025

Cláudia e Mário

Hoje viajei até ao concelho de Chaves para gravar mais um episódio do meu podcast: "Novas Conversas Rurais". Nada, nem ninguém, me preveniu para a recepção que este casal me dedicou. Simpatia e afectividade, foram de uma amabilidade sem igual. Depois da gravação, e quando a hora de almoço já tinha passado, convidaram-me para almoçar com eles e, num ápice, deram-me a provar várias iguarias criadas pelo Mário e servidas aos clientes que os visitam. Não tenho palavras para descrever tudo aquilo que o meu palato sentiu, mas aquilo que de melhor trouxe comigo, vou guardar e quero aqui registar, foi a dimensão humana que a Claudia e o Mário demonstraram, com simplicidade, empatia e disponibilidade total para me proporcionar um momento único. Adorei conhecê-los, conversar com eles e conhecer o seu projecto de vida. Vou regressar e não vai demorar muito até isso acontecer.

Transcrevo aqui a introdução que escrevi para a nossa conversa...

[ Conheci-os através das palavras de Alexandra Prado Coelho e de uma reportagem que realizou no suplemento Fugas do jornal Público, sobre o paraíso que a Cláudia Campos e Mário Neichel encontraram em Trás-os-Montes, isto depois do desencanto com a cidade, do sonho, da intensa procura pelo local ideal e do caminho que percorreram até aqui chegarem a Redondelo.
Ela, a Cláudia, nada e criada na cidade Invicta, fez o curso de jornalismo na Escola Superior de Jornalismo do Porto, mas rapidamente percebeu... ironia do destino, afirma... que seria na restauração o seu futuro.
Ainda na Invicta abriu dois bares e teve um pequeno restaurante que, às tantas não por acaso, e agora quem usa de ironia sou eu, reminiscências do míster de jornalista, tinha por nome “Sopa de Letras”.
Mais tarde, lá para 2009, ruma a Barcelona para fazer formação de alta cozinha, na prestigiada Escola de Cozinha e de Restauração Hofmann e acaba por ir ficando, procura trabalho e, numa encruzilhada imprevisível, é o pai de Mário que a acolhe e lhe dá trabalho no afamado restaurante Neichel, onde acaba por conhecer Mário...
Este, o Mário, catalão de Barcelona, é formado em Cozinha e iniciou a sua arte no restaurante Neichel, casa familiar, mas foi tendo outras experiências que muito contribuíram para o seu conhecimento e para a sua competência. Entre outras, diz com satisfação, conheceu as cozinhas do Celler can Roca, do Mugaritz, do Martin Berasategui e do Nando Jubany.
Apesar de ter crescido nesses ambientes de alta gastronomia, os quais considera terem sido uma excelente escola, cedo percebeu que o seu futuro não passaria por aí, nem tão pouco pela manutenção do legado familiar, a casa Neichel, acusando e fugindo da pressão e da carga de trabalhos que esse tipo de cozinha acarreta. Depois, sempre presente, a ideia da fuga da cidade e do urbano em busca de um contexto ou ambiente rural, sentindo a terra e estando próximo e em contacto directo com os produtores.
Regressando à tal encruzilhada imprevisível, foi aí que perceberam e reconheceram um no outro as ideias, as vontades e objectivos que afinal partilhavam. Assim, nessa encruzilhada, escolheram um caminho, e regressando às palavras de Alexandra Prado Coelho: “o caminho deles e colocaram a casa e o pequeno Marc às costas e partiram para longe das grandes cidades e para perto de um mundo que já só existe em alguns lugares”. ]

05 novembro 2025

mais cedo que tarde

No dia 29 de Julho publiquei aqui um texto a que dei o nome de "modas e resistências", no qual partilhei a minha percepção sobre a mudança de paradigma na indústria automóvel, de motores a combustão para motores eléctricos e da minha fundamentada resistência a esta nova tecnologia. Terminei esse mesmo texto afirmando que "se tiver que trocar de veículo, algo que mais cedo que tarde vai acontecer, irei permanecer no diesel ou na gasolina."
Pois bem, o mais cedo que tarde aconteceu. Vendi o carro que tinha desde 2013, um Golf Plus, e comprei um novo (semi). Ao contrário do que tinha acontecido na compra anterior, onde não foi propriamente uma escolha, mas sim uma oportunidade de negócio, desta vez a compra foi precedida de reflexão e ponderação sobre qual a melhor opção para a minha/nossa vida.
Depois de algumas visitas a diferentes stands e marcas, de comparações estéticas e financeiras, e debates familiares, acabámos por decidir comprar um Volvo, que fui buscar à JOP Gaia no dia 8 de Outubro. O critério decisivo foi a Andreia o ter considerado, dentro daquilo que era a nossa capacidade financeira, o automóvel mais bonito.
Tenho o Volvo há quase um mês, pouco ando nele, só a espaços e quando somos mais de dois para viajar é que sai da garagem. Nunca tinha comprado um Volvo, mas desde muito novo, talvez desde os vinte anos, me habituei a conduzir essa marca... a empresa em que trabalhei durante praticamente toda a década de noventa do século XX, tinha na sua frota vários Volvos: 440, 460, 850, 850 T5, entre outros. Sempre gostei da Volvo, pois eram bons carros e transmitiam-me fiabilidade e segurança.
Agora tenho um Volvo. Eu gosto do carro e até me sinto confortável dentro dele, mas não consigo, pelo menos por enquanto, libertar-me de um certo incómodo... precisarei eu de tanto carro?
E, tal como já antecipara, a opção eléctrica não foi sequer equacionada.

racismo de inteligência

Sirvo-me do conceito de Pierre Bourdieu "racismo de inteligência" (1978), para me indignar, uma vez mais, com as recentes declarações da ministra da saúde, Ana Paula Martins, sobre a morte de uma mulher migrante, grávida, e do seu recém nascido, num hospital de Lisboa. Ana Paula Martins, acossada, incapaz de dar resposta aos problemas existentes no SNS e impotente perante o mais que aparente descalabro nos serviços hospitalares, revelou-se, outra vez, afirmando algo como...

"Casos como este dizem maioritariamente respeito a grávidas que nunca foram seguidas durante a gravidez, que não têm médico de família... são recém-chegadas a Portugal, com gravidezes adiantadas. São grávidas que não têm dinheiro para ir ao privado, grávidas que algumas vezes nem falam português e que não foram preparadas para chamar o socorro. Por vezes, nem telemóvel têm."

Esta declaração, para além da ofensa descarada à desgraçada que faleceu, é uma expressão clara e sem qualquer dúvida de um verdadeiro sentimento de desprezo e indiferença pelo sofrimento alheio, uma unívoca expressão de racismo de inteligência que tão bem caracteriza o racismo de classe dominante, culpabilizando a condição de pobreza, de ignorância e analfabetismo dos indivíduos pelos seus trágicos destinos. Ou seja, a inaptidão social destes cidadãos, sejam nacionais ou migrantes, condena-os à eterna exclusão social, ao sofrimento e, até, à morte.