31 dezembro 2023

haverá sempre disto

Tal como nos dias anteriores, hoje de manhã saí de casa apenas para a dose mínima de cafeína, sem a qual não sei viver. Na pastelaria onde tenho ido, e na mesa ao lado, dois sexagenários trocavam votos de bom ano e comentavam com quem e onde iriam passar a passagem de ano. Um deles, enquanto dava mais uma passa no seu cigarro e bebericava o seu café, dizia que era um triste e que não tinha um tostão no bolso para gastar mais logo. Não sei se procurava apenas a solidariedade do amigo e cravar-lhe a despesa naquele momento, ou se era mesmo sincero o seu desabafo. Na dúvida, não deixei de comentar com quem comigo estava, que haverá sempre vícios mais fortes do que qualquer razoabilidade ou bom senso.
Enfim.
Bom ano.

28 dezembro 2023

sempre a perder

Estes dias de nada, em que pouco se faz a não ser as actividades básicas de sobrevivência, permitem-nos olhar para "coisas" que normalmente não temos disponibilidade para atentar. Entre garfos e facas, líquidos dentro de copos e algumas leituras, tenho aproveitado o tempo para folhear as páginas online dos jornais regionais e, hoje, num só desses lugares encontrei duas notícias paradigmáticas sobre o triste destino a que está votada a região transmontana. Não podendo aqui reproduzir a sua totalidade, deixo o link para a leitura integral das mesmas e um comentário para cada uma dessas notícias.


Já andavam todos os responsáveis autárquicos excitados e a proclamar loas aos sete ventos. Crentes. Mas algum dia Lisboa iria propor que a única (ou uma de duas) ligação ferroviária à Europa fosse traçada por Trás-os-Montes?! Vamos continuar a assistir ao esvaziamento e desestruturação desse território e, pior, com a anuência dos responsáveis locais e regionais, pois o importante é manterem o seu prato de sopa da panela cada vez menor.


Bem sei que, usando a razão, não há qualquer justificação para esta linha aérea existir. Não há gente, não há procura. Também é verdade que essa linha sempre foi uma benesse do Estado para a meia-dúzia de privilegiados naturais e/ou utilizadores da região e a população em geral pouco usufruía ou beneficiava com essa ligação. Ainda assim, penso que Lisboa e os decisores políticos acabarão por arranjar uma solução e a linha mais tarde que cedo retomará.

27 dezembro 2023

em Ousilhão


Festa de Santo Estevão, em Ousilhão - Vinhais, ontem 26 de Dezembro. Depois de muitos anos, regressei e encontrei uma festa viva e participada. Muita juventude e criançada mascarada, muitas raparigas e mulheres a mascarar-se e muito forasteiros, curiosos, especialistas e profissionais. Percepção de uma observação não-participante: caretos de adidas nos pés e telemóvel na mão.





angústia

"A angústia leva a melhor, depois leva ao melhor".
Samuel Úria, in Granta nº 11 (2023: 122)

16 dezembro 2023

ali vão os noivos

Hoje, manhã de Sábado soalheira, com as janelas abertas para a casa respirar, chegam-me aos ouvidos sons sequenciados de carros a buzinar. A associação não é imediata, mas lá acabo por perceber do que se trata. Há quanto tempo não ouvia este som ritual. Não consigo recordar essa última vez. Talvez o moderno ar dos tempos tenha também acabado com estes cortejos rituais de anúncio público de que ali vão os noivos. Não faz mal, mas hoje aconteceu.

13 dezembro 2023

Princípio de Peter e a democracia

Ao fazer a leitura e consequente reflexão sobre os acontecimentos políticos, no passado recente, em Portugal, por muitas considerações que podem ser aduzidas ao debate e por muitos juízos de valor sobre os factos e, principalmente, sobre a responsabilidade, a ética e a competência dos actores e intervenientes neste contexto de crise democrática, aquilo que me veio à mente foi o conceito, conhecido por Princípio de Peter (1969), de Laurence J. Peter, que imbuído na escola estruturalista, afirma que todos nós atingimos um nível de incompetência.
Sirvo-me deste princípio ou teoria, não porque considere que se tratou de incompetência política, mas para fazer uma analogia. Aquilo que assistimos em Portugal foi ao derrube de um governo, com maioria absoluta, democraticamente eleito e com todas as condições para se manter em funções. Não aconteceu por qualquer dificuldade governativa, nem tampouco porque existia um descontentamento social generalizado. Tratou-se de um puro e perfeito golpe de estado palaciano, perpetrado por intérpretes pouco ou nada conhecidos da maioria dos portugueses e cirurgicamente planeado por interesses ocultos, sem qualquer reacção ou indignação por parte dos partidos políticos, da opinião pública e publicada e da sociedade.
Assim, este é um momento que exemplifica ou testemunha, não um principio de incompetência da democracia, mas a sua indefesa, incapacidade e impotência face aos verdadeiros poderes que, ocultos, permitem-nos afirmar que vivemos numa democracia, mas atingindo determinados limites, tratam de decidir e impor as suas vontades e interesses, destruindo a ideia de Estado de Direito e todos os valores democráticos. 
Não se trata de qualquer teoria da conspiração, até porque não sou sequer simpatizante de António Costa, nem do seu governo, nem do PS, assim como também nunca votei neles, mas tenho para mim que a História se encarregará de trazer luz sobre tudo o que aconteceu em 2023, nesta nossa democracia.

fim do mundo

"O mundo vai acabar, não quando não houver tempo, mas sim quando não houver espaço.
Onde fica o fim do espaço?"
Gonçalo M. Tavares, in Jornal de Letras nº 1387, Novembro 2023.

12 dezembro 2023

cuando el otro también somos nosotros


Finalmente, chegou-me às mãos, proveniente de Ciudad Rodrigo, este livro de fotografias de Ángel Centeno, para qual escrevi o prólogo. Não conhecia o autor e foi através de amigo em comum que, nos últimos dias de Junho, fui desafiado por telefone para escrever adrede um texto sobre uma selecção de fotografias deste fotógrafo, que me enviaria em ficheiros e em formato reduzido para aliviar tamanho da carga... assim e célere o fiz.
Gostei da capa do livro e da sua organização temática, mas o papel escolhido não é o melhor suporte para receber este tipo de imagens a cinzentos e pretos. O meu texto foi traduzido para castelhano e surge como prólogo.

07 dezembro 2023

pontualidade

"Às vezes penso, aliás, que a minha obsessão com a pontualidade deriva de uma compreensão aguda da importância desse momento zero a partir do qual o enredo desabrocha, mas é mais provável que a causa disso seja uma patologia qualquer nunca diagnosticada."
João Paulo Vala, in revista LER - Outono 2023.

06 dezembro 2023

25 novembro 2023

ociosos voluntários

Há muito que nutro um fascínio pelos desocupados crónicos, perenes ou vitalícios. A primeira memória que preservo é a dos indigentes nómadas que deambulavam por Trás-os-Montes, neste caso pelas terras de Vinhais e Bragança, e que, a espaços não definidos, apareciam pela aldeia, apenas de passagem ou para ficarem alguns dias e noites. Desses relembro os rostos e os nomes do Bino, do Piralhas e do Laribau, todos já desaparecidos, mas que permaneceram no imaginário colectivo e também no meu.
Vivendo na cidade, apercebo-me que nas voltas do quotidiano cruzo-me com algumas personagens que aparentemente vivem numa ociosidade permanente e cuja única ocupação diária é percorrer os vários espaços de socialização, como cafés ou tascas, supermercados, paragens de autocarro ou estações de comboio, portas dos comércios ou até em determinadas esquinas, onde se detêm à conversa com amigos e conhecidos, bebem um copo ou fumam um cigarro.
Um dia gostaria de fazer algo acerca destes indivíduos. Não sei se histórias ou percursos de vida, se questionar as suas opções vs não-opções de vida, se apenas e só meras inspirações para exercícios de escrita, outra qualquer abordagem. Ou, às tantas, nada. Apenas continuarei a passar por eles e a projectar na mente todo um imaginário acerca das suas vidas.

22 novembro 2023

"ler ou não ser, eis a questão"

Afonso Cruz é um dos colaboradores assíduos do Jornal de Letras (JL), único jornal em papel que actualmente compro, e é um dos textos que espero sempre, pois regularmente me surpreende e me inspira para, vá-se lá imaginar, a produção de etnografias e antropologias. Por exemplo, um dos sub-capítulos de trabalho que, espero, em breve será publicado, surgiu da leitura de uma das suas crónicas neste jornal.
O título deste post é ipsis verbis o nome da última crónica de Afonso Cruz no JL e nela discorre sobre a importância da leitura e, ao mesmo tempo, da dificuldade que é cativar para essa leitura. Na impossibilidade de transcrever todo o texto, deixo algumas passagens:

"Como fazemos os adultos lerem mais? Como fazemos os jovens lerem mais? Como se formam leitores? Tudo isto revela algo sobre a própria natureza da leitura, cujo problema está na essência e não na política, ou no modo como ela, a leitura, é incentivada."
[...]
"A leitura normalmente não tem uma gratificação imediata, contraria as nossas características gregárias, isolando-nos dos outros e do mundo, impondo algum silêncio, exigindo atenção e concentração."
[...]
"A leitura não é naturalmente apelava, mas tem uma importância superlativa. A dificuldade, claro, é demonstrar a potenciais leitores que aquela pessoa sentada numa cadeira, em silêncio, alheada do que a rodeia, está a ter uma experiência gratificante, bela ou transformadora."
[...]
"É realmente difícil fazer passar a ideia inacreditável de que uma pessoa parada, debruçada sobre um livro, está a ter uma experiência emocionante, espectacular, capaz de lhe mudar a vida."
Afonso Cruz, in Jornal de Letras nº 1386, Novembro 2023.

21 novembro 2023

latu sensu

Quando constatamos que ficamos satisfeitos apenas com uma "sopinha" ao jantar, é certo que estamos já no trilho que nos levará até ao fim.

18 novembro 2023

a verdade

"O gosto da verdade a todo o custo é uma paixão que nada poupa e a que nada resiste. É um vício, por vezes um conforto ou um egoísmo."
Albert Camus, in A Queda (1956: 50)

15 novembro 2023

exercícios de escrita

A leitura de um pequeno texto de Humberto Martins, numa colectânea de textos intitulada "Exercícios de antropologia narrativa" (2022), remeteu-me para o universo rural ao qual eu me sinto pertencer. De facto, a sua "Lucinda" é uma personagem que eu reconheço em tantas e tantas mulheres que eu trago na memória e com as quais vivi, convivi ou apenas conheci. Por outro lado, este texto, aliás, todo o livro, reforça a minha percepção da importância da escrita etnográfica "livre" sobre os terrenos e indivíduos que vamos encontrando. Sempre gostei dessa escrita e considero-a muito rica e até seminal para as leituras antropológicas. O texto "Lucinda" é um bonito texto que me inspirou.

28 outubro 2023

na volta do correio, de ontem

vou LER

20 outubro 2023

medo ou hesitação

Sem ter ainda encontrado o caminho que quero seguir, estarei eu indeciso ou hesitante, ou será o medo que me tolhe o discernimento e me assusta de tal forma que não consigo atinar com o trilho que me atraia e cative e pelo qual não hesitarei em escolher e desbravar aquilo que houver para descobrir e conquistar?

13 outubro 2023

12 outubro 2023

inteligência artificial e consciência

"Enquanto a IA não for vulnerável à dor, ao frio, ao terror e à fantasia, não será IA suficientemente inteligente. Apenas simula. Não pensa. E sem alegria, não há poesia. Sem poesia, não há consciência. A consciência é a última fronteira entre a Máquina e a Humanidade?"
Teresa Nicolau, in Jornal de Letras nº 1382, Setembro/Outubro 2023.

11 outubro 2023

alterações do clima, protestos pueris

Muito me tem espantado as reacções de todos aqueles que, confortavelmente instalados e a contribuir para o agravamento da situação, se têm insurgido e indignado pelos protestos dos jovens activistas ambientais, adjectivando-os de ingénuos e ignorantes. 
Meus senhores, não haja ilusões que alguma alteração relevante vá acontecer nos próximos tempos se dependermos dos vossos esforços e atitudes. Não estais disponíveis para qualquer mudança que prejudique o vosso conforto e modo de vida e, por isso, não compreendeis as atitudes e a visão do mundo dos mais jovens. Está visto que se dependermos daqueles que usufruem e mais dispendem dos nossos recursos naturais, o paradigma jamais se alterará. Precisamos de mais juventude, de mais protesto e de maior confrontação com o sistema que dita as leis com as quais destruímos a nossa casa comum. 
Meus senhores, o vosso horror com a tinta atirada ao ministro ou contra as montras de empresas, com as estradas cortadas ou com as correntes humanas, não será nada se comparado com aquilo que é necessário fazer. Revolução! e sem hesitação.

alterações do clima, raio de ideia

Estamos em meados de Outubro e mais parece que estamos em Junho ou Julho. Estou em casa e o termómetro marca 28 graus, saio para a rua e não se consegue estar ao Sol, vejo toda a gente desnudada e, ainda assim, abafada e transpirada com o calor que se faz sentir. E estamos em meados de Outubro. Outubro, o tal mês de Outono, dos tons quentes, das ventanias e dos primeiros calafrios invernais.
Espreitamos as notícias que nos chegam de todas as latitudes e longitudes, mais do mesmo, quer dizer, desequilíbrios climáticos extremos, manifestados por fenómenos anormais, tais como dilúvios de água ou infernos de fogo.
Mas não importa. Ninguém ou quase ninguém quer saber, tudo está bem e o que importa é manter a máquina do trabalho, do investimento, do lucro, do desenvolvimento e do progresso em marcha. Continua a não se olhar a meios para se atingir os fins. Fins esses que teimosa e estupidamente os poderes acreditam ser infinitos e até eternos. Engano ou mentira. Na verdade, esses poderosos sabem o precipício para o qual nos empurraram, mas o seu egoísmo é tal que não querem saber que mundo lhes vai sobreviver, ou se vai sequer haver mundo depois deles. Haja o que houver, o saque e a exploração dos recursos naturais e humanos têm que permanecer até ao esgotamento total.
Impressiona-me este caminhar consciente da humanidade para o cadafalso. São poucos e "loucos" os que lutam contra esses moinhos de vento. Triste fim nos espera.

02 outubro 2023

actas edição 25 das jornadas culturais de Balsamão


Apresentadas no passado dia 29 de Setembro, no decorrer da vigésima sexta edição das jornadas culturais, e com uma impressão mais cuidada e a cores por se tratar dos vinte e cinco anos ininterruptos destas jornadas. Aqui faço uma pequena reflexão sobre os possíveis futuros deste evento.

26 setembro 2023

aguarela


Tenho esta aguarela emoldurada e exposta numa parede de casa. Já tem uns anitos, mas continuo a gostar dela e da paisagem que retrata e eu reconheço. Foi pintada pela Ia e vai permanecer por perto. Estou a tratar de a fazer perdurar para lá da minha existência.

21 setembro 2023

insofismável

"O desfecho histórico de qualquer choque entre deuses foi determinado por aqueles que empunhavam as melhores armas e não por aqueles que possuíam os melhores argumentos."
(Berger e Luckmann, in A construção Social da realidade, 2004:117)

15 setembro 2023

O melindre dos ilustres trinta e sete

Esta notícia saiu ontem, dia 14, no jornal Público e, quase de imediato, me motivou a escrever o texto que se segue. Depois, fui contactado para ceder o texto para uma petição a apresentar ao executivo da Câmara Municipal do Porto, o que aceitei com a condição de ser subscrita apenas por trinta e oito "não-ilustres". A ver vamos.




O sobressalto cívico ao ler a notícia da edição de hoje do jornal Público - “Estátua de Camilo deve ser removida após petição que invoca questões de gosto e moral” de Lucinda Canelas, não poderia ser maior. Então porque há trinta e sete indivíduos que não gostam de uma obra colocada num espaço público da cidade, o Presidente da Câmara Municipal decide, unilateralmente, retirá-la e remetê-la ao pó e ao esquecimento dos depósitos municipais?
Estamos, de facto, perante mais uma manifestação de um poder discricionário e arbitrário que não revela mais do que o tique da soberba elitista que gere e governa os destinos do município. Não importa quem são os trinta e sete signatários de tal petição, na medida em que se tratando de uma petição entregue na Câmara Municipal, ela carece de representatividade na manifestação de uma proposta, reclamação ou indignação da população do município. Quantas petições não terão sido já entregues na autarquia com bem mais signatários que não mereceram qualquer atenção do executivo e do Sr. Presidente? Mais, pelo que se percebe da notícia, a petição não foi merecedora de debate em sede de Assembleia Municipal ou, sequer, de executivo, apenas uma decisão de “mande-se retirar” porque há trinta e sete “tão ilustres cidadãos” que a consideram um “desgosto estético” e uma “desaprovação moral”. Tanto haveria a dizer sobre a tormenta e o constrangimento destas trinta e sete almas por causa da referida estátua, mas aquilo que importa é, uma vez mais, a atitude sobranceira de Rui Moreira. A autarquia, num determinado momento, promoveu ou apenas aceitou a instalação deste monumento escultório da autoria de Francisco Simões, o que significou liberdade de expressão e de criação para um artista. Trata-se de uma representação, de uma abstracção e não, como garante o autor, de um retrato de Ana Plácido ou de Camilo Castelo Branco. Citado nesta peça, o mesmo afirma que “cada um tem direito à sua interpretação, à sua subjectividade. Não tenho a pretensão de agradar a todos. A unanimidade em arte não existe.” Reforçando esta ideia de Francisco Simões, mau, muito mau sintoma é quando assistimos a unanimidades culturais. Por outro lado, o gosto individual - o meu, o teu, o dele e o do presidente da autarquia - não deve ser critério para escolhas ou decisões políticas e de gestão autárquica. Parafraseando os signatários desta peculiar petição eu diria que “favor higiénico” para a cidade e seus cidadãos seria respeitar a diversidade e a criatividade das manifestações artísticas e culturais. O “gosto estético” e a “aprovação moral” devem-na reservar para os espaços próprios, privados e íntimos, onde, aí sim, nem sequer são necessárias petições ou signatários.

12 setembro 2023

falar e escrever o outro

"Antropologia é vida, diz-nos Ingold, convidando-nos a pensar desde uma epistemologia inclusiva que nos 'deveria' obrigar a pensar a realidade conjugada num gerúndio incompleto, processual e circunstancial. Afinal, durante o trabalho de campo (em rigor, em qualquer investigação que implica relação entre pessoas) há pessoas que se encontram e que tentam fazer sentido uma da outra sem que necessariamente tudo caiba dentro das categorias de entendimento comuns. [...] Os textos académicos 'matam' os sujeitos como pessoas de carne e osso, objectivando-os e adjectivando-os segundo grelhas que reduzem tanto de tanta vida e de tanta coisa que fica para contar e que é merecedora de ser contada. [...] Falar menos de alguém porque é de um lugar, de uma cultura, de uma sociedade e falar mais com alguém que também faz um lugar, uma cultura e uma sociedade. E falar a partir de uma possibilidade de tornar essoutros, que muitas vezes nos chegam diluídos em categorias analíticas, em interlocutores de carne e osso que tornam os antropólogos tão humanos quanto eles, tão humanos quanto nós."
Humberto Martins, in prefácio de exercícios de antropologia narrativa, 2022 - pp. 11 e 12.

05 setembro 2023

01 setembro 2023

consciência rural vs urbana

O antropólogo franco-brasileiro Júlio Sá Rêgo dedicou-se a percorrer as serras do Norte de Portugal e os trilhos e caminhos do pastoreio de cabras e ovelhas. O resultado desse esforço é este pequeno livro que, aproveitando este final de Verão à beira-mar, li de um fôlego só. Por ambientes que reconheço e me são familiares, este trabalho deverá ser entendido, acima de tudo, como um grito de alerta para a situação precária e, nalguns contextos, em vias de extinção destas raças ovinas e caprinas, assim como do modo de vida de muitos indivíduos e suas famílias. O despovoamento do interior do país resulta também desta triste realidade, desconhecida da maioria da população. A quem se interesse por estes universos, reais e anti-distópicos, aconselho a sua leitura.


"Populações rurais têm a consciência dessa sua relação com o ambiente, elas o habitam, enquanto populações urbanas apenas o ocupam. A cidade vive em dicotomia com o ambiente que se torna um mero receptáculo de vidas ocupadas e de infra-estruturas acimentadas; no rural a consciência é de que as trajectórias de vida estão interligadas ao ambiente. [...] O vínculo com o lugar é uma das especificidades da identidade camponesa." (páginas 120 e 121)

29 agosto 2023

ignorantes epistémicos e analfabetos morais

"Estamos a caminhar para um Planeta com um aumento médio de temperatura que poderá atingir 5 ou 6º C no final deste século, continuando a subir depois disso. Continuamos a ser governados por ignorantes epistémicos e analfabetos morais - avençados pelos poderes fácticos que mandam nos mercados, o verdadeiro centro do poder mundial - que se apresentam a eleições onde as cartas estão viciadas.
Num plano de filosofia da história e da antropologia, o que está em causa é sobreviver à vergonha de pertencer a uma espécie arrogante que se comporta como um vírus suicida, embora se atreva a reclamar uma filiação em deuses que ela própria criou e exterminou. No horizonte pessoal, o desafio, é o de saber se iremos esperar pelo golpe de misericórdia, paralisados na água fervente de um mundo cada vez mais inabitável, ou se nos ergueremos em revolta, mesmo sem outra esperança do que a defender a dignidade mínima que só a capacidade de lutar nos pode conferir." (negritos meus)
Viriato Soromenho-Marques, in jornal de Letras nº 1380, Agosto e Setembro 2023.

23 agosto 2023

rituais que se vão repetindo

"Recordo tudo isto enquanto espero, sentado numa pipa de vinho perto do fim do mundo, e escrevo anotações num caderno de folhas quadriculadas que Bruce Chatwin me ofereceu para usar justamente nesta viagem. E não é um caderno qualquer. Trata-se de uma peça de museu, de um autêntico moleskine, tão apreciado por escritores como Céline ou Hemingway, e que já não existe. Bruce sugeriu-me que fizesse o mesmo que ele antes de usá-lo: numerar as folhas, escrever nas duas contracapas o meu nome e pelo menos duas moradas no mundo, e, na primeira folha, a promessa de uma recompensa a quem encontrar e devolver o caderno em caso de extravio.
[...]
Bruce informou-me de que os moleskines vinham das mãos de um encadernador de Tours, cuja família os fabricava desde princípios do século, mas que, após a morte do artesão, em 1986, nenhum dos descendentes quis continuar a tradição. Que ninguém se lamente por causa disso.
[...]
Quando Bruce Chatwin soube que nunca mais haveria moleskines, comprou todos os que encontrou e é num deles que escrevo estas notas."
Luis Sepúlveda, in revista LER verão 2023, página130.

18 agosto 2023

inteligência artificial

A propósito do artigo de Diogo Ramada Curto na revista LER deste Verão, que acabo de citar e no qual o autor se refere à evolução das "máquinas pensantes" até à actual inteligência artificial (IA), sem perceber nada, ou quase, sobre o assunto, nem ter qualquer pretensão de me dedicar à questão ou aderir a essa vertigem tecnológica, faço aqui o meu manifesto ou declaração de interesses.
Não sendo uma questão propriamente nova, nem pretendendo ser céptico ou velho do Restelo, sou aquilo que poderemos designar de agnóstico sobre a IA, suas características, sua história, seu potencial e suas aplicações. É um universo que não me desperta qualquer interesse ou, sequer, curiosidade. Ela há-de me aparecer pela frente e aí, talvez, dedique algum do meu tempo a reflectir sobre, mas por enquanto deixo para os especialistas - informáticos, engenheiros e afins, tudo o quanto é pensado, dito e partilhado.
Nesta atitude agnóstica quero afirmar, em todo o caso, que tal como a fotografia não destruiu as artes e a literatura, como Baudelaire prevera, e tal como o vídeo não matou as estrelas da Rádio, como dizia a canção, também a IA não irá acabar com a literatura, muito menos com as ciências sociais. Não creio numa IA apocalíptica nem milenarista. Continuará a haver todo o espaço para a criação de mundos fantásticos e universos singulares; continuará a haver muitos terrenos para estudar e trabalhar. Vamos a eles.

literatura e sobrevivência

"Aquilo que chamamos literatura está impresso na nossa consciência, pois é a nossa forma de selecionarmos, entre os destroços do mundo, as histórias cujo significado encerra conhecimentos úteis para sobreviver num ambiente adverso."
Diogo Ramada Curto, in revista LER - Verão 2023: pág. 126.

04 agosto 2023

não adianta

Saio de casa e dirijo-me para a beira do mar. A ideia é instalar-me à sombra de uma qualquer esplanada com vistas para o mar, onde possa dedicar-me ao que me dá prazer. Até sei qual é o lugar onde quero ir e chego-me perto. Procuro um sempre difícil lugar para estacionar o carro e, quando já caminho para a praia e percebo o ambiente veraneal, sustenho o passo e arrepio caminho, num rebate de consciência de quem sabe que não vai estar confortável e nem vai aguentar muito tempo. Eu bem tento forçar-me, mas não adianta.

comoção

Eu já sabia, a notícia já me tinha chegado há umas semanas, o café Lexinho reabriu. Isto passados, sei lá, cerca de dez anos encerrado, talvez mais. Foi com um sorriso, de alegria e esperança, que recebi a notícia, pois isso permitir-me-á regressar a Vila Boa e, melhor, querer ir para Vila Boa e por lá ficar. Já terei um lugar para estar. É que durante este longo hiato em que não houve Lexinho, deixei de ter destino, ocupação ou socialização na aldeia.
Um destes dias regressei a Vila Boa com um grupo de amigos portuenses e, num Domingo de manhã, finalmente, pude ir ao "novo" Lexinho. Ao chegar, para além de rever alguns velhos amigos e conhecidos, foi comovido que transpus a porta e me sentei a olhar para o espaço que eu tão bem conheço. Para além de nós, o café estava vazio. A gente que por ali estava, preferiu a sombra da esplanada. Lindo. Para mim o melhor café do mundo, onde realmente gosto de estar.
Não sei se esta reabertura será duradoura ou apenas para época de férias. Contudo, e esperando que seja por muito e bom tempo, sei que nos próximos dias e semanas é para lá que quero ir.

escrever, ler e memória

"O povo em vez de exercitar a memória, apoiar-se-ia preguiçosamente na palavra escrita. A leitura seria efectivamente uma forma de recordar, mas não uma verdadeira memória. [...] O remédio que deveria ampliar a nossa memória, imaginação e sabedoria, não passa de um veneno, uma forma de preguiça, uma maneira de papaguear sem qualquer profundidade. [...] Ao escrever decoramos com mais facilidade a matéria é memorizada com eficiência enquanto as cábulas são escritas."
Afonso Cruz, in jornal de Letras nº 1378, Julho e Agosto 2023.

27 julho 2023

Sinéad o'Connor


Uma das figuras maiores e que marcaram a minha (nossa) juventude. Sob uma aparente fragilidade, uma tremenda voz, uma presença forte e sempre, mas sempre, irreverente e inconformada. Faleceu ontem aos 56 anos, mas não será esquecida e os seus discos continuarão a tocar cá em casa.

26 julho 2023

vamos LER

24 julho 2023

envelhecendo

"Com a idade, invento qualquer desculpa para me irritar. Estou todo ao contrário daquilo em que acredito e que defendo. Apregoo um envelhecimento pacificado, lúcido, todo feito de aceitação e alegria pelo que ainda há, mas envelheço estupefacto, nada satisfeito com os vezes do corpo e com o resto de paciência que me morre".
Valter Hugo Mãe, in jornal de Letras nº 1377, Julho 2023.

18 julho 2023

Assalto ao STOP, enquanto purga sanitária e expulsão de impuros

Fomos todos surpreendidos pela atitude musculada e, pelos vistos, cobarde do executivo de Rui Moreira em relação ao antigo centro comercial STOP. Solicitar o serviço da polícia municipal para vedar e selar aqueles espaços, sem aviso prévio, é a prova da má fé e da premeditação desta atitude. Mas estamos a falar do quê? O espaço STOP é há dezena de anos, um espaço cultural, heterogéneo e multi-funcional, onde dezenas de jovens e menos jovens encontraram o habitat possível e propício para a sua arte. Muita da arte que foi assimilada e hoje é aceite pelo mainstream comercial e industrial, nasceu dentro daquelas paredes de espaços exíguos.
Esta atitude do executivo é bem paradigmática da visão sectária que os seus protagonistas políticos têm da cidade. Ainda não tive a oportunidade de ouvir o que a Câmara diz em relação a esta situação, nem sei sequer se já se pronunciou, mas gostava de ouvir e ver Rui Moreira, pois sei que pelas palavras que irá pronunciar, pelo tom e pelas expressões faciais, se vai perceber, se vai revelar o nojo que sente pela diversidade das manifestações culturais, a sua crença nos espaços de exclusão social e, neste caso, cultural, quero dizer, a crença de que nem todas as manifestações culturais têm direito a existir e a ocupar o altar simbólico que é o centro da cidade, onde só os puros, leia-se da cultura erudita, podem aceder e permanecer.
É verdade que o STOP sempre foi um espaço polémico e, a espaços, notícia por isso mesmo. Contudo, até nessa polémica a Câmara Municipal nunca soube gerir a situação, nem foi sensível à situação precária do espaço e daqueles que se serviam e servem dele. Aquilo que a autarquia já há muito tempo deveria ter feito, em vez de estar preocupada e interessada nos possíveis negócios imobiliários e especulativos de todo e qualquer metro quadrado da cidade, era ter participado, ser agente activo e promotor, criando as condições mínimas e dignas daquele edifício para que a criação acontecesse. Para além de tudo isto, a visão sectária impede o executivo de entender o STOP como um espaço de liberdade cidadã e pedagógica, onde as novas gerações adquirem referências estéticas e culturais, onde aprendem e partilham experiências e onde podem transformar em mais-valias as suas biografias, as suas capacidades e as suas ambições, ao mesmo tempo que se desviam e afastam de trilhos ou percursos bem mais problemáticos.
Não faz qualquer sentido aquilo que hoje aconteceu. O gosto do edil não pode ditar aquilo que é ou não é, acontece ou não, na cidade. Mais uma atitude cobarde e vergonhosa por parte do senhor que gere os nosso destinos, que sabemos detesta muito do que o Porto foi, ainda é e, com ou sem ele, continuará a ser.

17 julho 2023

ervilhas de quebrar

Eu sempre as conheci como ervilhas de vagem, mas serão mais conhecidas como ervilhas de quebrar. É um dos sabores de memória mais vivos que guardo. Ainda hoje a minha mãe teima em comprar essa ervilha para acrescentar ao arroz, ou seja, para fazer arroz de ervilhas. Eu sempre adorei o sabor, mas também o perfume que elas libertavam, desde o momento em que saíam cruas do saco, até ao momento em que se abria a panela do arroz. Era um cheiro intenso e muito agradável para mim (aceito que haja quem não gostasse), mas entretanto aconteceu, algures nas últimas décadas, que apesar de ainda ser cultivada, comercializada e até frequente nas prateleiras dos comércios, ela perdeu o tão característico perfume. Experimentem cheirá-las cruas e verão como quase não têm cheiro e, depois, já cozinhadas perderam ainda mais fulgor. Agora comemos arroz de ervilhas quebradas sem o seu sabor e cheiro, mas recorrendo à memória gustativa para conseguirmos tirar algum prazer dessa iguaria.
O que se passou não sei, mas desconfio que esta degeneração se deveu à extinção das sementes naturais e à sua substituição pelas sementes produzidas pela indústria agro-alimentar. Com certeza haverá quem tem, pois guarda de ano para ano, de sementeira para sementeira, dessas ervilhas e continua a saboreá-las. Mas toda a produção para o consumo das massas, recorreu às sementes de pacote e assim contribuiu definitivamente para a evolução dessa espécie vegetal. Os vindouros jamais conhecerão o prazer de destapar uma panela de arroz de ervilhas de quebrar, acabada de sair do lume, e sentir a explosão do aroma da ervilha a espalhar-se pelo ambiente.

16 julho 2023

mãos nos bolsos

"Com as mãos nos bolsos nada se resolve. Mas transmite-se a mensagem de que não se vai atacar nem defender. Apático ou aborrecido, portanto, eis aquele que não está na posição de ataque nem de defesa.
As mãos nos bolsos não resolvem, mas pelos menos adiam.
Curioso que na cidade o número de pessoas com as mãos nos bolsos é reduzido. As pessoas andam de um lado para o outro, atrasadas ou perdidas.
As mãos no bolso colocam a pessoa no estatuto de observador. Há poucos observadores na cidade, todos querem agir. Uma precipitação, uma impaciência, uma ansiedade. Eis a descrição da cidade, espaço onde os bolsos são feitos para o dinheiro, não para as mãos."
Gonçalo M. Tavares, in jornal de Letras nº 1376, Junho 2023.

13 julho 2023

a quem possa interessar...


Eu vou lá estar. Apareçam.

23 junho 2023

pulhice humana

Nos últimos dias duas tragédias marítimas foram notícia nos media: o naufrágio, mais um, de uma embarcação repleta de imigrantes, ou refugiados, no mar Mediterrâneo, que provocou a morte a dezenas, se não a centenas de desgraçados provenientes do Norte de África; e o desaparecimento de um pequeno submergível, chamado Titan, com cinco tripulantes, quando fazia uma viagem turística aos restos do Titanic, no Oceano Atlântico.
Aquilo que. nos deveria indignar a todos, mas já ninguém quer saber, foi o diferente tratamento jornalístico dado a cada uma destas notícias. A primeira teima em não passar de uma nota de rodapé, enquanto que a segunda merece horas e horas de notícias, reportagens, comentários e seus especialistas.
A mim, aquilo que mais me dói e indigna é a normalização e desumanização das vidas que se perdem no cemitério Mediterrâneo, que não são mais do que números de uma estatística brutal e trágica. Por oposição, no desaparecimento do Titan, todo o mundo soube a identidade, a idade e a ocupação de cada um dos cinco turistas prisioneiros de um capricho de gente que não sabe o que fazer ao tanto dinheiro que tem. Uma mais-que-certa morte desnecessária de gente super-hiper-mega e estupidamente ricos.

[ escrito a 20 de Junho de 2023 ]

19 junho 2023

em busca do silêncio perdido


O título já me atraíra os sentidos, mas só em Fevereiro o comprei e só agora o consegui ler. O autor, norueguês, desenvolve em trinta e três entradas respostas para algumas questões que considera essenciais: a) o que é o silêncio?, b) onde é que se encontra? e c) por que razão é agora mais importante do que era dantes?
Numa linguagem acessível e recorrendo à sua enorme experiência como explorador, em isolamento e solidão, este livro é muito bonito e aborda questões ou sentimentos que me são muito caros e sobre os quais também gosto de reflectir. Vou começar a recomendar a sua leitura e, mais, vou começar a oferecê-lo como presente ou lembrança.

"Sempre que não posso caminhar, subir a uma montanha ou navegar para longe do mundo, aprendi a desligar-me dele.
Levei algum tempo a aprender. Somente quando percebi que tinha uma necessidade primordial de silêncio fui capaz de partir à sua procura - e, então, soterrado sob uma cacofonia de ruídos de trânsito e pensamentos, música e máquinas, iPhones e carros limpa-neves, lá estava ele à minha espera. O silêncio." (página 9)

"O que estamos a sentir chama-se pobreza experiencial. Essa pobreza pode não ter nada a ver apenas com a falta de experiências, nas quais nada acontece. A abundância de actividades também pode levar ao sentimento de pobreza experiência. [...] O problema é que continuamos a procurar 'experiências cada vez mais poderosas', em vez de fazermos uma pausa para inspirar profundamente, desligarmo-nos do mundo e utilizarmos o tempo para nos sentirmos nós mesmos. A ideia de que o aborrecimento pode ser evitado procurando continuamente algo de novo, estando disponível o dia inteiro, enviando mensagens e dando mais cliques, vendo algo que ainda não vimos, é ingénua.
Quanto mais tentamos evitar o aborrecimento, mais aborrecidos ficamos." (página 74)

07 junho 2023

camas para losers

"Como todas as grandes cidades, Lisboa também tem os seus descartáveis: os que desistiram ou os que foram postos de parte pela sociedade." Lemmens escreve sobre dois sem-abrigo que acomodam e ajeitam pedaços de cartão no chão como quem prende lençóis num banal colchão de hotel de luxo; "camas para losers", diz um dos sem-abrigo, captado com o olhar lúcido de Lemmens.
A multiplicação das "camas para losers", nos últimos anos, uma contabilidade que ainda não se fez.
Gonçalo M. Tavares, in Jornal de Letras nº 1374, Junho 2023.

06 junho 2023

menino das alianças

(fotografia retirada do meu álbum e de autoria desconhecida)

Esta será uma das memórias da minha meninice mais antigas. Não me recordo do momento acima retratado, mas guardo algumas imagens deste dia. Foi a primeira e única vez que me colocaram na pele de menino que transporta o símbolo de casamento. Não consigo datar este momento, mas segundo os meus pais terá sido no final do Verão de 1977, tinha eu então quatro anos e vivíamos ainda em Delães, Famalicão.
A noiva chamava-se Manuela e era irmã mais velha de uma rapariga chamada Ilda que, à época, tomava conta de mim e do meu irmão Daniel. Terá sido essa relação que motivou a minha convocatória para desempenhar tal papel. Do noivo nada sei, nem recordo sequer o seu aspecto.
Vem esta memória a propósito de, quase cinquenta anos passados, ter reencontrado a Manuela, agora uma senhora com cerca de setenta anos, já avó e com uma obesidade mórbida. Gostei de falar com ela, de saber como a vida lhe correu e de saber que a irmã Ilda está bem, emigrada na Suíça.
Este reencontro aconteceu em Delães, num café do prédio onde ela reside, em frente à Igreja e à casa que foi do meu avô Marcelino. Apesar do seu ar triste e sofrido, percebi nas suas palavras alegria por me voltar a ver, depois de todo este tempo.
Entretanto, nas várias idas a Delães, já a voltei a ver, sempre nesse mesmo café, muitas vezes, mas não mais falei com ela.

05 junho 2023

um liberal, portanto

"Nietzsche, nada tendo a ver com Marx, nem com as massas que tanto obcecaram o autor d' O Capital, tem uma visão para o homem que queira e se sinta capaz de se endeusar, isto é, de criar os seus próprios valores, a sua ética. Claro que Nietzsche não especifica qual seja a ética que decorre da sua "vontade de poder" porque, obviamente, ele não vai ditá-la a ninguém. Cada qual elaborará a sua; não haverá nenhuma ética de rebanho. A sua vontade de poder é mais uma atitude psicológica perante o mundo, perante a vida, que deixa completamente em aberto: a cada qual as decisões mais adequadas a serem tomadas individualmente."
Onésimo Teotónio Almeida, in Revista LER, Primavera 2023.

31 maio 2023

metamorfose

Sempre encontrei no rosto do meu pai os traços da minha avó, sua mãe: olhos pequenos e negros, num rosto quadrado de pele queimada e curtida. Agora, e à medida que envelhece, revejo nele o rosto do meu avô, seu pai. A progressiva perda de massa corporal metamorfoseou-lhe o rosto e vejo-o cada vez mais parecido com o pai.

28 maio 2023

cinquenta anos

Pois já cá cheguei. Meio século de, posso dizer, feliz e confortável existência. Despreocupado com o que há-de vir e resta viver, celebrei este dia com a família e amigos que fazem parte do meu círculo vital de existência. Ainda estou a juntar os vídeos e as fotografias que registaram esses momentos e, por isso, poderei ir acrescentando momentos.















(em actualização)

despenteado mental


"Ao sabor da pena e na primeira pessoa, registo as memórias da minha existência, percorrendo os trilhos e as encruzilhadas que foram escolhas, recordando também aqueles que a meu lado caminham.
Esta auto biografia, que se afirma parcial, de cinquenta anos de lugares, pessoas e momentos, significará que a expectativa é ainda haver espaço e tempo para outros registos, que possam complementar o que até aqui se viveu." (in contra-capa)

[ 26 de Maio de 2023, cidade do Porto, distribuição apenas pela família e amigos ]

18 maio 2023

ao espelho

Nesta última noite, no Gato Vadio, Porto...

(Rui Cortes, Sofia Costa e eu)

11 maio 2023

01 maio 2023

participação ecossocialista


Pela primeira vez e no ano em que completo cinquenta anos de vida, participei na concentração e manifestação do 1.º de Maio na cidade do Porto. Consciência de classe tardia? Não, apenas a percepção de que o futuro próximo será muito difícil, pois tudo se vai alinhando e preparando para derrubar este governo PS. Com uma forte clivagem à direita, importa reclamar e assegurar dignidade para quem trabalha. O plano inclinado irá acentuar-se, portanto a luta por uma sociedade ecossocialista, mais justa e digna, será tremenda.


30 abril 2023

querer e não poder

Num momento em que precisaria de me retirar para um ermo qualquer, de forma a ter condições para terminar texto que já deveria estar pronto e entregue, não consigo libertar-me das rotinas quotidianas. Eu até nem pedia muito, dois ou três dias sozinho e isolado, seriam mais do que suficientes. Não conseguirei e, assim sendo, vai ter que acontecer aqui mesmo. Solução: duas ou três noites sem dormir.

17 abril 2023

a chegar

Até que enfim!

verbo, salivar

Passear à beira mar, que é como quem diz à beira da praia, por estes dias, é constatar o regresso em massa das pessoas libertas dos espartilhos e com as carnes à solta, mas é também o momento do eterno retorno dos mirones, que estrategicamente se posicionam para a melhor perspectiva sobre esses nacos de carne desnudados. Não há como não reparar na pinta deles, quase sempre de óculos escuros e sempre a salivar, sobranceiros ao areal. É que nem disfarçam.

sem objecto e método

"A fé é a ciência rápida. Ciência sem método, sem começo nem caminho. Começa-se pela chegada. A partir daí só se pode recuar. Ou ficar no mesmo sítio, em silêncio ou oração."
Gonçalo M. Tavares, in Jornal de Letras nº 1370, Abril 2023.

10 abril 2023

estar e ficar

Continuo a gostar de vir para Trás-os-Montes nesta altura do ano. Aliás, é a época melhor do ano para aqui estar. Pena é que não possa ficar. O regresso à Invicta tem data e hora para breve.

tradição

"A tradição é sempre uma matéria dinâmica, até porque já se sabe que as tradições que não evoluem acabam por desaparecer. É absurdo exigir à tradição que se mantenha cristalizada, pois isso vai contra a sua natureza, que não é pura e simplesmente mimética, mas evolutiva: adaptam-se os conhecimentos ancestrais às realidades contemporâneas."
Manuel Halpern, in Jornal de Letras nº 1369, Março 2023.

conhecimento

Mantenho a certeza de que importante é o conhecimento e não, como agora se espalha ao vento, as competências. Isto porque é do conhecimento que advêm as competências e não o contrário. Ou dito de outra forma, não há competências sem conhecimento, mas há conhecimento sem competências. Um mundo sem conhecimento é um vazio ignorante, triste e incompetente.

LER

Vamos ler!

31 março 2023

24 rosas

A metáfora são as rosas e cada uma delas significa uma unidade de tempo de amor e dedicação à pessoa que a meu lado está. A celebração de um quantitativo que vai medrando e dando frutos. Aqui chegados, lúcidos e conscientes do tanto que já foi realizado e, ao mesmo tempo, não olvidando que há muito por alcançar. Agora e aqui, olhando em redor, só posso, só podemos, celebrar. Celebremos então.

20 março 2023

cosmogonia de uma nomeada

"O meu bisavô era tanoeiro. 
Andava de casa em casa, a fazer ou a consertar pipas. Terminado o trabalho, os clientes, por cortesia, perguntavam-lhe se tomava alguma coisa. Ao que ele respondia: um pirulito.
Um pirulito é um copo pequeno de vinho.
Assim: de pirulito em pirulito, o verdadeiro nome da família Silva caiu.
E o meu bisavô ficou Emídio Pirulito."
Sandro William Junqueira, in Jornal de Letras nº 1368, Março 2023.

demónios

"O que mata a Europa são os seus demónios interiores, a sua mesquinha desconfiança mútua, o seu horror à grandeza necessária para estar à altura da história, e a iliterata das suas elites políticas."
Viriato Soromenho -Marques, in Jornal de Letras nº 1368, Março 2023.

28 fevereiro 2023

a vida do escritor maldito

Terminei por estes dias a leitura da biografia de Luiz Pacheco, escrita por António Cândido Franco, e não posso deixar de reafirmar o fascínio, pelas piores e pelas melhores razões, que este indivíduo provoca em mim. Sou um fiel leitor e consumidor de tudo quanto possa existir de e sobre Luiz Pacheco. Tenho uma profunda admiração pessoal e literária pela sua coragem, pela sua alteridade, pela sua originalidade e genialidade. Um dos maiores e mais ricos personagens da literatura portuguesa do século XX.


O autor termina assim o texto:
"Deu de barato as ambições sociais do tempo, o respeito das convenções, a obediência às regras, o acatamento dos limites. Lutou por ser livre como ninguém da sua geração e a sua vida teve um lado escabroso, o da experiência funda da abjecção, que foi o alto preço que pagou pelo seu combate. Só aquele que como ele vai ao fundo do fundo da noite está pronto para saudar a luz heróica mas falsa do dia. Não batalhou por bens materiais - foi 'um cafre da Europa', um 'cão sem coleira' como de si disse -, mas para afirmar a sua vida. Quis e conseguiu viver livre numa sociedade de escravos e por isso a sua existência teve um sentido épico. Foi dos raros escritores portugueses do seu século que se bateu por ter biografia, que construiu uma vida, que não se satisfez com a vidinha programada que lhe deram - a mesquinha existência dos liceus, das proibições familiares, do funcionalismo, do ordenado mensal, das férias pagas. Transgrediu e arriscou. Fez da vida uma obra, embora a sua arte mais viva, a sua obra-prima, não fosse a vida que viveu mas a vida que escreveu - uma literatura vital, em que a escrita lateja, está viva, e as palavras têm carmim e o sabor a sangue. Escreveu verdades que ninguém sabia escrever."
(Franco, 2023: 456)

19 fevereiro 2023

irritação da amígdala

"A democracia está a ser tão esvaziada de conteúdo que pode ser defendida instrumentalmente pelos que servem dela para a destruir, enquanto os que servem a democracia para a fortalecer contra o fascismo são considerados esquerdistas radicais." (Boaventura de Sousa Santos, in Jornal de Letras nº 1366, Fevereiro de 2023)

As palavras de Boaventura de Sousa Santos (BSS), num excelente artigo do referido jornal, avivam em mim uma profunda irritação, que não é de agora, mas que teima em durar e que poderei traduzir em palavras no raciocínio que se segue:
Eu, que pago os meus impostos, como a maioria dos cidadãos portugueses, acredito e defendo que o Estado, fiel depositário ou, se preferirem, cobrador desses impostos, deve ser responsável pela providência e prestação dos serviços básicos, em qualidade, equidade e gratuitidade, à totalidade da população do país. Falo da educação, da saúde, da justiça e dos sectores estratégicos da economia, como a energia, os transportes e as comunicações. Acredito no acesso universal e gratuito à saúde (SNS), acredito na escola pública, acessível e com qualidade para todas as crianças e jovens do país, acredito numa justiça independente, justa e de proximidade às populações e desejo uma maior e melhor distribuição das mais-valias ou riqueza que o país consegue produzir. Por que raio esta minha perspectiva do que defendo para o meu país é considerada radical e extremista? Sim, convivo bem e até me orgulho de perspectivar a sociedade e o meu país deste lugar "de esquerda", mas não aceito e combaterei sempre a ideia de que aquilo em que acredito não é sensato, ponderado ou desejável para todos e não só para mim ou para alguns, naquilo que podemos e devemos designar de democracia plena.
A minha amígdala sofre horrores com esta teimosia em designar os democratas de radicais de esquerda. Não o são, e quem assim os adjectiva, tal como escreve BSS, serão os primeiros a destruí-la e a impor os fascismos da "gente de bem".

fartos disto, hora de agir


Participei hoje na vigília “estamos fartos disto, é hora de agir”, em frente à Câmara Municipal do Porto, que começou pelas 19 horas. Participei enquanto organizador do evento, enquanto subscritor do manifesto que motivou a vigília, mas acima de tudo, participei porque estou farto da condição em que grande parte da população portuguesa existe. É, de facto, hora dessa população agir e exigir aquilo a que tem direito, mas que persistente e abusadamente lhe tem sido sonegado.
Apesar de termos conseguido uma divulgação interessante, através das redes sociais, dos media e, principalmente, no contacto directo com a população, através da distribuição em mão do manifesto nos locais de maior afluência e circulação na Invicta, não conseguimos reunir mais do que três dezenas de pessoas em frente à Câmara Municipal neste final de tarde de Sexta-feira.
Quando abandonei a vigília, por volta das 20:30 horas e porque era hora de dar de comer à minha criança, caminhámos por algumas das artérias da baixa da cidade até ao local onde o carro estava estacionado. Saindo da Praça General Humberto Delgado, entrámos na rua de Rodrigues Sampaio em direcção à Praça de D. João I, descemos o primeiro, ou último, troço pedonal da rua do Bonjardim, espreitámos para a Sampaio Bruno, continuámos a descer a Sá da Bandeira e subimos a 31 de Janeiro. Durante todo este percurso não pude deixar de constatar a elevada frequência nos cafés, bares, restaurantes e hotéis, suas esplanadas e seus foyeurs, contrastando de forma clara e até ofensiva com aquilo que me levou ao centro cívico da cidade. Nada me opõe a essa movida urbana e noturna e sei-a importante e até necessária para a cidade, mas aquilo que não consigo evitar, ao passar e observar esta realidade, de aparentes sociabilidades e consumos abundantes e despreocupados, sempre sob a batuta da sagrada Francesinha e do globalizado Vinho do Porto, é a percepção de que este brilho cosmopolita ofusca completamente a realidade de milhares de famílias e indivíduos que estão remetidos à sua parca condição de vida, silenciados pelas obrigações e compromissos financeiros assumidos e esmagados pela carestia generalizada dos bens e produtos básicos e essenciais para sua sobrevivência.
É para essa grande massa (ainda) silenciosa que promovemos esta iniciativa. É com a esperança de os motivar e implicar que temos e devemos dar voz às dificuldades e carências que muitos sentem. É, e será sempre, na rua, no espaço público e de todos nós, que deveremos persistir e insistir naquilo que são as nossas reivindicações, as nossas lutas e as nossas ambições.

(escrito a 17 de Fevereiro de 2023 e publicado no blogue https://convergencia-porto.blogspot.com/)

14 fevereiro 2023

hipocrisia e mediatismo

Foi ontem conhecido o relatório final da Comissão Independente que, ao longo do último ano, investigou e registou as denúncias de abusos a crianças por parte de membros da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) e foi grande, enorme, o estrondo mediático com que foram recebidas as transcrições pormenorizadas de alguns dos testemunhos. É de facto uma monstruosidade, uma ignomínia sem perdão possível, a quantidade e a intensidade dessa violência, mas eu não fiquei surpreendido com o número de vítimas e de abusos apresentados, pois tenho como certo, até pelo conhecimento de algumas situações, que o número real é bem maior. Como se costuma dizer, apenas se conheceu a ponta do icebergue.
Mas aquilo que mais me incomodou, e incomoda, é a hipocrisia que os membros da ICAR nacional, mesmo num momento como este, teimam em manifestar. Mas alguém acreditará que a hierarquia da Igreja não sabia desta situação, que não tinha conhecimento daquilo que acontecia nas paróquias e dos comportamentos criminosos dos seus párocos, acólitos e afins? Claro que sempre souberam, mas escolheram ocultar, chantageando, ameaçando ou subornando as suas vitimas, todo e qualquer episódio, e só quando as situações chegaram ao conhecimento público, através de denúncia ou da comunicação social, é que tiveram iniciativa, mas sempre tímida, conservadora e corporativista. Mas todos, ou quase todos, os Bispos, Cardeais e outros responsáveis hierárquicos da ICAR tiveram acesso e conhecimento de situações insuportáveis e criminosas.
Esta situação e esta iniciativa da ICAR, ainda que louvável, não oculta ou desculpabiliza o horror e a hipocrisia com que se apresentam perante a sociedade, os católicos e, principalmente, as suas vítimas.

13 fevereiro 2023

cristos

(auto-retrato de Miguel de Unamuno, 2012:7)

"O Cristo espanhol - dizia-me uma vez Guerra Junqueiro - nasceu em Tânger; é um Cristo africano e nunca se afasta da cruz, onde está cheio de sangue; o Cristo português brinca nos campos com os camponeses e merenda com eles e só a certas horas, quando tem de cumprir com os deveres do seu cargo, é que vai dependurar-se na cruz". (Unamuno, [1908] 2012:38)