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10 julho 2025

violação de privacidade

Depois de vários meses a adiar o momento, hoje foi dia de ir à procura de óculos e lentes novas. Depois de visitar uma outra óptica, entrei numa outra localizada no centro da cidade do Porto. Tirei senha e, depois de cerca de 10 minutos à espera, ouço chamarem pelo número da minha senha. Sou convidado a sentar-me, explico o que preciso, mostro a prescrição do oftalmologista e a menina, simpática, começa a trazer-me armações para experimentar e escolher. Terei experimentado dez a doze armações e, no fim, fiquei com quatro para escolher entre elas, mas logo referi que iria esperar pela chegada da minha mulher para saber da opinião dela.
Pois bem, quando chegou, comecei a colocar no rosto cada uma dessas quatro armações e, para meu espanto e até espanto da minha mulher, logo uma mulher que estava a ser atendida num outro balcão, se aproximou e começou a opinar sobre cada uma das armações que eu ia colocando. Mas num tom e com uma acertividade que mais parecia ser ela a minha mulher. Opinou, opinou, opinou e deu o seu veredicto final, para logo depois desaparecer, não sem antes comentar... "enfim, mas você é que sabe!", como quem diz, eu, que tenho extremo bom gosto, já decidi o que deve comprar, agora você faça o que entender, mas depois não se queixe.
A sério?!... Na troca de olhares com a minha mulher, pude manifestar a minha estupefacção por aquela inusitada intromissão.

27 maio 2025

irritação

Se há coisa que me irrita é a indiferença a que sou, a espaços, votado por quem tem por "obrigação" atender-me em cafés, bares ou esplanadas. Sentar-me e perceber que poucas mesas estão ocupadas, mas que os empregados estão muito atarefados a fazer não sei o quê; entretanto, perceber que à minha volta as mesas vão sendo ocupadas e logo depois, diligentemente, atendidas pelos mesmos empregados, enquanto eu continuo sem merecer essa diligência... é como se não estivesse ali. E o pior é que neste mesmo estabelecimento já não é a primeira, nem sequer a décima vez. Quando assim acontece, como hoje, tenho saído sem dizer nada. Não sei se será hoje, mas um dia destes, hei-de reclamar junto de alguém da gerência. Não é por nada, apenas irritação.

04 fevereiro 2025

magnífico locus etnográfico


Não é novidade, nem surpresa. É algo sabido, previsível e até expectável, mas resulta sempre em algo novo, singular e peculiar.Vir a uma repartição pública, em especial à Segurança Social, logo pela manhã é uma experiência pela qual todo o cidadão deveria ser obrigado a passar. Eu, nestes meses entre Dezembro e Fevereiro, conto já cinco visitas e em todas elas fui obrigado a esperar mais de duas horas para ser atendido (hoje já estou à espera há cerca de uma hora e meia e ainda tenho 22 pessoas à minha frente), mas eu sou paciente e consigo, de alguma forma, transformar em útil e rentável este tempo "morto". Entre leituras, sublinhados e comentários, pequenas notas e apontamentos, o que mais gosto é estar atento à polifonia, nalguns momentos caótica, que existe sempre, como que uma música de fundo que não nos deixa dormir ou abstrair deste lugar, protagonizada muitas vezes por personagens caricaturais.
Hoje fui arrancado da leitura do jornal diário por uma voz grossa e estranha que, exaltada e proveniente das mesas de atendimento, se fez ouvir em todo o piso. Só pude ver o segurança a dirigir-se ao local e, a partir desse momento, uma discussão de tolos, entre alguém a falar numa língua estranha entremeada com algumas palavras em português e alguém a tentar acalmar a situação. Passados não mais de 10 minutos aparecem na sala de espera dois polícias acompanhados por um indivíduo que, pela aparência, terá proveniência, como agora se diz, no Indostão. Os polícias interrogavam-no, pediam identificação, documentos e ele, evasivo, não apresentava nada, apenas mexia no telemóvel querendo mostrar algo, pelos vistos sem qualquer interesse para a autoridade, que insistia em pedir-lhe identificação do país de origem (depois acabou por dizer que era indiano), e o papel da residência temporária. Não mostrou nada, nem houve sequer uma comunicação mínima entre eles. Os polícias, já fartos, pediram-lhe para os acompanhar para a rua e levaram-no não sei para onde.
Conto este episódio, porque este incidente foi motivo, de imediato, para uma intensa e animada discussão, em voz alta, entre alguns dos mais de quarenta utentes que, tal como eu, aguardavam na sala de espera a sua vez. Infelizmente, não registei a conversa e apenas me esforcei por reter aquilo que mais gostei.

Senhora A (meia-idade, diria eu com sessenta e poucos anos, que passou o tempo para trás e para a frente, a fazer e a receber chamadas, muito ocupada, com certeza): 
"- isto é uma pouca-vergonha! Vem esta gente de fora e chegam cá e têm tudo. Trabalho, casa, dinheiro, subsídios... e depois ninguém os consegue tirar de cá!"

[ fez-se silêncio na sala, algumas pessoas acenaram positivamente com a cabeça, outras assobiaram para o lado e eu, eu hesitei em pegar ou no telemóvel, ou no caderno, mas este dava muito nas vistas e com o telemóvel, seria só mais um... comecei a escrever estas linhas ]

Senhora A:
"- e digo-lhe mais (já a dirigir-se para uma outra senhora que lhe tinha dado atenção com a expressão corporal), dão tudo a essa gente que vem de fora, muitos deles nem querem trabalhar, e nós, e os nossos, não temos direito a nada."

[ mais silêncio e mais concordância ]

Senhora A:
"- Mas eu não tenho nada contra pessoas que venham para cá, coitados, para viver melhor, mas olhe... eu, se depender de mim, voto no Chega e no André Ventura que, vocês vão ver, manda logo esta escumalha para a sua terra. Acaba logo com esta pouca-vergonha."

[ aqui o silêncio incómodo transformou-se numa indignada e caótica altercação entre diferentes perspectivas sobre o assunto, com algumas vozes femininas e de travo exótico a insurgirem-se perante tais afirmações ]

Senhora B (jovem, negra, pelo timbre de origem africana, atrás de mim):
"- que conversa é essa?! Mas quem é que me manda embora?! Isto é seu? Isto é tanto seu como meu. Deixa de conversa!"

Senhora C (quase idosa, pelas vestes, cigana, que foi anuindo ao que a senhora A foi dizendo):
"- andam sempre atrás de nós, temos de andar sempre a correr para aqui e para ali, para conseguirmos aquilo que temos direito. Depois, chegam estes e não respeitam ninguém..."

Senhora D (jovem, negra, também de origem africana, que se levanta porque foi chamada, e ao passar pela senhora A, atira):
"- tu és muito inteligente caramba. Nunca vi ninguém como tu. Parabéns! Tem vergonha!..."

Senhor E (meia-idade, ou melhor, idade de reforma ou pré-reforma, baixa estatura, bigodaço russo, talvez pelo excesso do cigarro, e cara carcomida pelos consumos e pela vida, casaco de cabedal, brinco na orelha, cabelo raro escovado e molhado para trás - "cabelo à foda-se", portanto - que levantando-se e aproximando-se da senhora A, comenta):
"- não vale a pena... não são os portugueses, ou os chineses, ou os indianos, são alguns indianos, ou alguns chineses, ou alguns portugueses. A senhora não pode falar assim. Deixe lá essa merda."

[ enquanto estas falas aconteciam, várias outras pessoas entabularam conversas paralelas, o que fez vir o segurança espreitar e, sorrindo, pedir calma. Mas ninguém lhe ligou patavina e continuaram alegremente a desdizer-se, até que uma voz feminina, tranquila e com sabor do Brasil, sentada ao meu lado, disse: ]

"- Calma minha gente. Até Jesus emigrou!"

[ olhei de lado para ela e registei logo a frase, pois percebi de imediato o seu potencial para terminar este instante urbano ]

Post-Scriptum: são 11:15 horas, estou à espera há mais de duas horas para ser atendido e ainda tenho 10 pessoas à minha frente. Paciente e satisfeito pelo proveito da manhã, aguardarei a minha vez.

15 janeiro 2025

quiosques

Sempre gostei de quiosques, sejam de rua ou em formato loja. Sei que neles há sempre alguma (muita) coisa com interesse e onde é um prazer gastar dinheiro. Aliás, seria um dos poucos negócios em que me imagino, quero dizer, logo depois de uma livraria (de fundos bibliográficos), seria num quiosque que eu arriscaria investir e onde eu, penso, não me importaria de estar e ficar.
Acontece que, para lamento meu, nos últimos tempos, temos vindo a assistir ao seu desaparecimento das paisagens urbanas e, principalmente, seus arrabaldes. Serão várias as razões para tal fenómeno, desde logo, a mais do que reconhecida quebra de vendas de jornais em formato papel, mas eu continuo a precisar deles na minha existência quotidiana e tem sido crescente a dificuldade de encontrar aquilo que procuro. Mais uma "arte" urbana em vias de extinção.

10 junho 2024

perigos avulsos

Aqui há dias, estando eu a acompanhar alunos em trabalho de campo, desloquei-me a Vilar de Andorinho, onde uma equipa de catorze alunos se encontrava. Ao atravessar uma passadeira, bem no centro da localidade, e depois de ter verificado que não se aproximava nenhum veículo, sou surpreendido por uma longa buzinadela, de alguém que se aproximava do meu lado direito a grande velocidade. Quando levanto o olhar é uma trotinete eléctrica que passa por mim a grande velocidade, sem sequer esboçar qualquer travagem. Há medida que se afastava, eu gritei e repeti que estava na passadeira. O indivíduo (jovem adulto) não terá gostado do meu reparo e, afastado cerca de 100 a 200 metros, trava a fundo, atira a trotinete para o meio da rua e vem na minha direcção, vociferando ameaças e impropérios. Eu acabei de atravessar a rua e fiquei imóvel à espera dele, repetindo sempre que estava numa passadeira. Ele quando chega a quatro ou cinco metros de distância detém o passo e fica como que a medir-me. Eu mantive-me quieto e sem tirar os olhos do palerma, repeti o meu argumento. Ele, depois de me ameaçar com umas lambadas ou algo do género, vira-me as costas e vai à vida dele.
Moral da história: será sempre melhor ignorar estes e outros inaptos sociais, pois as consequências serão sempre imprevisíveis. Há muito que eu sei isto e normalmente até sou tranquilo e nada conflituoso no trânsito e fora dele. Aconteceu e serviu de alerta.

(escrito a 1 de Junho de 2024)

31 março 2024

from the army

[ Dialogue in English with the restaurant owner, in the middle of the meal, yesterday, March, 30th, in Fira ]

"- Sir, is everything all right here?
- Yes, everything is fine, thank you.
- Sorry, can I ask you where you come from?
- We come from Portugal.
- From Portugal?! Ok, very well. And may I ask you what you do for a living?
- I'm an anthropologist.
- Anthropologist?! Ok, I thought it was something else...
- Yes? What did you think?
- Well, You are very serious. In a good way, of course. I thought it was something in the army, but I was wrong. Sorry.
- Yes, completely. I never belonged and have always been very far from this universe.
- Sorry for the abuse.
- No problem."

---- tradução ----

[ diálogo em inglês com o dono de restaurante, a meio da refeição, ontem, 30 de Março, em Fira ]

"- Senhor, está tudo bem aqui?
- Sim, obrigado.
- Desculpe, posso perguntar-lhe de onde vêem?
- De Portugal.
- Ok. muito bem. E posso perguntar-lhe o que faz na vida?
- Sou antropólogo.
- Antropólogo!? Ok. Pensei que fosse outra coisa...
- Sim? O que pensou?
- Bem, o senhor é muito sério. No bom sentido, claro. Pensei que fosse algo nas forças armadas, mas enganei-me.
- Sim, completamente. Nunca pertenci e sempre estive muito longe desse universo.
- Desculpe o abuso.
- Não tem problema."

28 fevereiro 2024

pobreza energética. um exemplo

Um dia destes tive que me deslocar a um balcão de atendimento de uma grande empresa que, não por acaso, detém o monopólio da distribuição de energia em Portugal. Ao retirar a senha de atendimento, verifiquei que tinha à minha frente cerca de vinte pessoas e a espera seria considerável. Num espaço incrivelmente exíguo para tamanho movimento, aguardei encostado a uma nesga de parede livre e fui observando a performance das três meninas que iam atendendo os clientes, muitos deles, diga-se, pessoas idosas que traziam consigo muitas dúvidas, questões e reclamações. Num exercício de voyeurismo forçado, não pude deixar de ouvir e acompanhar muitas dessas conversas.
Uma das situações era a de um idoso que, com a última factura na mão, se queixava do valor cobrado. Normalmente pagava vinte, vinte e poucos euros, mas esta última apresentava um valor a pagar superior a cinquenta euros. O senhor estava indignado e suspeitava que o contador deveria ter algum problema ou avaria. A menina, depois de verificar no sistema, lá lhe disse que não havia qualquer problema com o contador e que esse valor correspondia à energia consumida nesse período de facturação. Ele teimava que não podia ser. E ela, num volume que inundava toda a sala, lá começou a fazer-lhe perguntas para tentar justificar o tal valor...
- Então o senhor, se calhar deixa as luzes acesas...
- Não deixo nada. Só sou eu e a minha mulher e as luzes sempre foram as mesmas...
- Mas tem ligado o aquecedor?
- Claro, está frio e eu ligo um aquecedor pequenino que lá temos...
- Pois, então é isso. Tem que desligar o aquecedor e embrulhar-se num cobertor...
Eu, assim como outros clientes que aguardavam vez, não queria acreditar no que estava a ouvir. Não consegui outra reacção que não sorrir, pois a vontade era partir para a ignorância e insultar aquela funcionária. Então, quando se sabe que muita gente em Portugal vive em pobreza energética e não consegue aquecer a casa em que habita, o conselho desta senhora é que um casal de octogenários prescindam da única fonte de calor que têm e se remedeiem com mantas e cobertores. Está certo.
Ao se despedir do senhor e enquanto este agradecia e se levantava para sair, reforçou a ideia, dizendo: - E já sabe, não se esqueça de desligar o aquecedor...
Miserável. Triste, muito triste.

31 dezembro 2023

haverá sempre disto

Tal como nos dias anteriores, hoje de manhã saí de casa apenas para a dose mínima de cafeína, sem a qual não sei viver. Na pastelaria onde tenho ido, e na mesa ao lado, dois sexagenários trocavam votos de bom ano e comentavam com quem e onde iriam passar a passagem de ano. Um deles, enquanto dava mais uma passa no seu cigarro e bebericava o seu café, dizia que era um triste e que não tinha um tostão no bolso para gastar mais logo. Não sei se procurava apenas a solidariedade do amigo e cravar-lhe a despesa naquele momento, ou se era mesmo sincero o seu desabafo. Na dúvida, não deixei de comentar com quem comigo estava, que haverá sempre vícios mais fortes do que qualquer razoabilidade ou bom senso.
Enfim.
Bom ano.

16 dezembro 2023

ali vão os noivos

Hoje, manhã de Sábado soalheira, com as janelas abertas para a casa respirar, chegam-me aos ouvidos sons sequenciados de carros a buzinar. A associação não é imediata, mas lá acabo por perceber do que se trata. Há quanto tempo não ouvia este som ritual. Não consigo recordar essa última vez. Talvez o moderno ar dos tempos tenha também acabado com estes cortejos rituais de anúncio público de que ali vão os noivos. Não faz mal, mas hoje aconteceu.

17 abril 2023

verbo, salivar

Passear à beira mar, que é como quem diz à beira da praia, por estes dias, é constatar o regresso em massa das pessoas libertas dos espartilhos e com as carnes à solta, mas é também o momento do eterno retorno dos mirones, que estrategicamente se posicionam para a melhor perspectiva sobre esses nacos de carne desnudados. Não há como não reparar na pinta deles, quase sempre de óculos escuros e sempre a salivar, sobranceiros ao areal. É que nem disfarçam.

30 janeiro 2023

tique nervoso

Descobri, recentemente, um lugar onde se toma um delicioso café. Algo cada vez mais difícil de acontecer. Passei a lá ir todos os dias e tem alguns que lá vou de propósito mais do que uma vez. Espaço simples e pequeno, muito asseado e de preços baratos. As empregadas são uma simpatia, ao ponto de uma delas, para além de meter conversa ocasional comigo, sempre que me atende pisca o olho. Com certeza, um tique nervoso que repete com outros clientes, mas em todo o caso, passei a estar atento e a tentar perceber se o tique se repete com os demais. Ainda não consegui.

28 setembro 2022

para fim de conversa

Bem perto da Santa Maria Adelaide, esplanada de afamado café, pão-quente e restaurante, com grande freguesia e elevada rotação. Vim sem pressa, obedecendo ao horário da minha criança, com intenção de aproveitar esse tempo para revisão de textos. Não o fiz porque os meus ouvidos depressa se instalaram na mesa ao lado da minha, onde duas mulheres, mãe e filha, conversavam sobre o bricabraque das suas vidas, até que ouço:
- Porque não te casas?
- Mas vou casar porquê?... e para quê?
- Ó filha! Para quê?... então, não achas que ficavas melhor, mais segura, se casasses?
- Não Mãe, nada disso. O Xxxxx não quer saber disso e eu também não... ele faz a vida dele e eu faço a minha...
- Pois é, isso não tem jeito nenhum. Onde já se viu?... cada um a fazer a sua vida...
- Mãe! Tu quiseste casar. Eu não quero. Acabou a conversa.

12 setembro 2022

movimento suspenso

Enquanto espero pelo resto da família, sento-me para um café, um copo de água e, talvez, uma leitura de ocasião. Estou num café bastante concorrido e, ao olhar à minha volta, encontro à minha frente, sozinho, um indivíduo de meia idade a tomar café. Aquilo que me reteve a atenção nele foi o facto de estar com a revista LER aberta à sua frente, enquanto adoçava e mexia a sua bebida. Com os olhos sempre na revista, pegou na chávena e aproximou-a da boca, mas a determinado momento suspendeu esse movimento e ficou com o braço no ar e a chávena suspensa na mão, a meio caminho entre a mesa e a boca. Continuou a ler e o café suspenso, ainda fez uns ligeiros movimentos de aproximação, mas a leitura continuava a mantê-lo refém e toda a sua atenção no que lia. Só passados alguns minutos, talvez quando terminou um texto ou artigo, ou chegou a uma parte do texto menos interessante, e quando o café já estaria de certeza frio, é que resolveu finalizar aquele movimento inicial e, depois, lentamente pousar a chávena no respectivo pires. Fechou a revista, levantou-se e foi embora.

25 fevereiro 2022

enquanto esperava

Hoje, à hora de almoço, enquanto esperava pelo meu filho à porta da escola, ouvia a conversa de um pequeno grupo de miúdos, que não teriam mais de 12 ou 13 anos, sobre a guerra na Ucrânia. Ainda que num tom jocoso e brincalhão, demonstrativo da distância que os separa do palco da guerra e da mais que aparente sensação de segurança, o diálogo era animado e participado, percebendo-se a preocupação e a assertividade de alguns dos comentários e afirmações. Fiquei ali preso a ouvi-los, agradado por perceber a preocupação e consciência da gravidade da situação, até que eles substituíram o debate por uma qualquer brincadeira mais ou menos parva.

10 fevereiro 2022

é cego

Oito e trinta da manhã, avenida da república em Vila Nova de Gaia, entro num estabelecimento comercial para registar o Euromilhões. Ao sair, dou passagem a uma funcionária que carregava um balde e respectiva esfregona. Sem se aperceber que eu vou atrás dela, larga a porta de vidro. Quando se apercebe:
- Ai desculpe, não reparei que estava atrás de mim.
- Não faz mal. Obrigado. Digo-lhe eu.
- Sabe, é que o de trás não vê!
Ok, pensei eu, enquanto fazia um esforço por afastar do pensamento o referido cego da senhora.

21 julho 2020

a sério?!

Entro em estabelecimento comercial de referência para comprar bolo de aniversário de meu pai. Enquanto esfrego as mãos com o álcool-gel, espreito a arca expositora onde estão os ditos e afamados bolos, quando sou interpelado pelo eficiente e simpático empregado que, enquanto se encaminha para mim, pergunta se me pode ajudar. Claro que pode, pretendo um bolo (pequeno e sem grande produção artística), ao que ele me sugere o bolo que, adianta, mais vendem (técnicas de venda em todo o esplendor...). Depois de alguma hesitação, acabo por aceitar a sua sugestão. Após o retirar da arca e enquanto se encaminha para dentro do balcão para o embalar, pergunta-me se é para "menino" ou "menina". Respondo que é para "menino" e num acto irreflectido, acrescento: - menino já avô. Ele, como que admirado, reage: - A sério?!... e regressa ao diálogo habitual:
- E as velas?
- 7, 6 - respondo de imediato.
O espanto dele foi indisfarçável e não se conteve: - Está muito bem conservado. Ninguém diria.
Eu, incrédulo e a olhá-lo com ar grave, respondi-lhe: - A sério?!...
- O senhor desculpe, mas é que com a máscara e óculos, ainda pus a hipótese... - o embaraço do homem era evidente.
Enfim, já estou habituado a que me considerem mais velho do que aquilo que realmente sou, mas caramba, 76 anos? Acho que ainda não os aparento. Espero lá chegar, mas não tenho pressa.

30 junho 2020

à descoberta

Aproveitando a ausência das crianças, depois de um dia de fechados em casa a trabalhar, resolvemos sair de casa para jantar. Sem vontade de ir aos lugares do costume e também porque estava a dever Sardinhas à minha mais-que-tudo, decidimos ir até à beira-rio, a São Pedro da Afurada, à descoberta das ditas Sardinhas para ela e outra coisa qualquer para mim. Depois de alguma deambulação pelas ruas e ruelas da localidade piscatória, decidimos entrar na Taberna de São Pedro. Asseada e com um simpático atendimento pedimos Sardinhas e Lulas na brasa, com salada mista, pimentos e batata a murro, regadas com verde branco da casa. Uma delicia. Ainda estávamos a meio da refeição quando começamos a sentir um delicioso, perturbante e persistente cheiro de Leite Creme Queimado que estava a ser servido com uma frequência crescente e a montra, que inicialmente estava cheia, rapidamente ficou quase vazia. Foi quando interrompi a refeição, chamei a funcionária e lhe expliquei o que estava a acontecer, ou sejam o receio que a sobremesa esgotasse antes de eu ter a oportunidade de experimentar. A jovem sorriu e sossegou-me, pedindo em voz alta ao colega, que estava no balcão, para reservar uma dose.
Foi a primeira vez que fui comer à Afurada. Vou regressar, sem qualquer dúvida, à Taberna de São Pedro em breve, mas não volto a pedir o vinho verde da casa.



24 junho 2020

o serviço nacional de saúde

Bem sabendo não ser representativa de nada, ou quase nada, experimentei nos últimos dias mais uma situação que reforçou a percepção que já tinha do nosso SNS. Por ter a meu cargo uma pessoa idosa e com um enorme grau de dependência, frequentemente recorro aos serviços hospitalares por sua causa. Desta vez um problema inesperado e súbito levou-me ao hospital Santos Silva em Vila Nova de Gaia e ao seu pavilhão ambulatório. Já lá tinha ido para consultas externas e de acompanhamento marcadas pelos médicos das respectivas especialidades. Desta vez não tinha marcação e dirigi-me à recepção com o propósito de chegar ao contacto com as médicas que o assistiram das últimas vezes. Consegui que o vissem e, mesmo perante uma enorme afluência, face ao problema apresentado, admitiram-no, internaram-no e aplicaram-lhe a terapêutica apropriada. Ao fim de cerca de duas horas, telefonaram-me para o ir buscar, pois já tivera alta médica. Com o reforço de uma prescrição médica para os três dias seguintes, o problema foi debelado.
Desculpem-me aqueles(as) que são vítimas de maus serviços do SNS, mas eu não tenho uma única experiência negativa sempre que recorro aos seus serviços. Pode ser sorte? Pode, mas também é muita qualidade, muita dedicação e é o ideal de serviço público que eu quero continuar a pagar com os meus impostos.

27 fevereiro 2020

cortar o pêlo

Aproveitando o último dia de férias escolar, ontem foi dia de ir ao barbeiro cortar o pêlo ao meu filho e, já agora, o meu também. Estávamos os dois a ser atendidos, lado a lado, quando entraram mais dois clientes que se sentaram à espera de vez. Um deles, o mais velho, quando se apercebeu que eu seria o pai daquela criança, questionou:
- É seu filho?
- Sim. Respondi.
- Já não é fácil encontrar pai e filho juntos a cortar o cabelo.
Sorri e, lembrando-me da minha infância, disse-lhe:
- Eu lembro-me de ir com o meu pai quando era miúdo. E lembro-me que o barbeiro era em Gaia, ao lado do café Angola, no início da rua João de Deus, do lado esquerdo... Era aí que o meu pai ía e levava os dois filhos.
Boa memória esta, que me levou de imediato a reflectir: Será que o meu filho, um dia, se lembrará destas vindas ao "Cristal"? Espero que sim.

(até nisto sou parecido com o meu pai: somos clientes fidelizados)

14 janeiro 2020

a senhora dança

Esguia sem ser alta, é figura frágil, apresenta-se regularmente bem vestida, apesar dos tons garridos das vestes e das maquilhagens, às tantas porque julga que consegue esconder, ou pelo menos disfarçar, as rugas que lhe invadem o rosto. Estará algures na sua sexta década de existência. O olhar atento a todos os movimentos no café denotam alguma intranquilidade, mas quem a vir assim sentada e sossegada, numa aparente normalidade, jamais adivinhará o desarranjo que, em intervalos de minutos, lhe assalta o ser e a faz saltar e dançar no espaço disponível, ao ritmo de um qualquer som que só ela consegue alcançar e tendo por par alguém que só ela sente. Indiferente ao resto que a rodeia, rodopia até ao fim dessa música imaginada e perante os olhares esquivos, alguns surpreendidos, outros envergonhados, de todos nós que julgamos impossível alguém manifestar assim a sua condição, senta-se tranquilamente e regressa à condição de igual aos demais.