29 agosto 2023

ignorantes epistémicos e analfabetos morais

"Estamos a caminhar para um Planeta com um aumento médio de temperatura que poderá atingir 5 ou 6º C no final deste século, continuando a subir depois disso. Continuamos a ser governados por ignorantes epistémicos e analfabetos morais - avençados pelos poderes fácticos que mandam nos mercados, o verdadeiro centro do poder mundial - que se apresentam a eleições onde as cartas estão viciadas.
Num plano de filosofia da história e da antropologia, o que está em causa é sobreviver à vergonha de pertencer a uma espécie arrogante que se comporta como um vírus suicida, embora se atreva a reclamar uma filiação em deuses que ela própria criou e exterminou. No horizonte pessoal, o desafio, é o de saber se iremos esperar pelo golpe de misericórdia, paralisados na água fervente de um mundo cada vez mais inabitável, ou se nos ergueremos em revolta, mesmo sem outra esperança do que a defender a dignidade mínima que só a capacidade de lutar nos pode conferir." (negritos meus)
Viriato Soromenho-Marques, in jornal de Letras nº 1380, Agosto e Setembro 2023.

23 agosto 2023

rituais que se vão repetindo

"Recordo tudo isto enquanto espero, sentado numa pipa de vinho perto do fim do mundo, e escrevo anotações num caderno de folhas quadriculadas que Bruce Chatwin me ofereceu para usar justamente nesta viagem. E não é um caderno qualquer. Trata-se de uma peça de museu, de um autêntico moleskine, tão apreciado por escritores como Céline ou Hemingway, e que já não existe. Bruce sugeriu-me que fizesse o mesmo que ele antes de usá-lo: numerar as folhas, escrever nas duas contracapas o meu nome e pelo menos duas moradas no mundo, e, na primeira folha, a promessa de uma recompensa a quem encontrar e devolver o caderno em caso de extravio.
[...]
Bruce informou-me de que os moleskines vinham das mãos de um encadernador de Tours, cuja família os fabricava desde princípios do século, mas que, após a morte do artesão, em 1986, nenhum dos descendentes quis continuar a tradição. Que ninguém se lamente por causa disso.
[...]
Quando Bruce Chatwin soube que nunca mais haveria moleskines, comprou todos os que encontrou e é num deles que escrevo estas notas."
Luis Sepúlveda, in revista LER verão 2023, página130.

18 agosto 2023

inteligência artificial

A propósito do artigo de Diogo Ramada Curto na revista LER deste Verão, que acabo de citar e no qual o autor se refere à evolução das "máquinas pensantes" até à actual inteligência artificial (IA), sem perceber nada, ou quase, sobre o assunto, nem ter qualquer pretensão de me dedicar à questão ou aderir a essa vertigem tecnológica, faço aqui o meu manifesto ou declaração de interesses.
Não sendo uma questão propriamente nova, nem pretendendo ser céptico ou velho do Restelo, sou aquilo que poderemos designar de agnóstico sobre a IA, suas características, sua história, seu potencial e suas aplicações. É um universo que não me desperta qualquer interesse ou, sequer, curiosidade. Ela há-de me aparecer pela frente e aí, talvez, dedique algum do meu tempo a reflectir sobre, mas por enquanto deixo para os especialistas - informáticos, engenheiros e afins, tudo o quanto é pensado, dito e partilhado.
Nesta atitude agnóstica quero afirmar, em todo o caso, que tal como a fotografia não destruiu as artes e a literatura, como Baudelaire prevera, e tal como o vídeo não matou as estrelas da Rádio, como dizia a canção, também a IA não irá acabar com a literatura, muito menos com as ciências sociais. Não creio numa IA apocalíptica nem milenarista. Continuará a haver todo o espaço para a criação de mundos fantásticos e universos singulares; continuará a haver muitos terrenos para estudar e trabalhar. Vamos a eles.

literatura e sobrevivência

"Aquilo que chamamos literatura está impresso na nossa consciência, pois é a nossa forma de selecionarmos, entre os destroços do mundo, as histórias cujo significado encerra conhecimentos úteis para sobreviver num ambiente adverso."
Diogo Ramada Curto, in revista LER - Verão 2023: pág. 126.

04 agosto 2023

não adianta

Saio de casa e dirijo-me para a beira do mar. A ideia é instalar-me à sombra de uma qualquer esplanada com vistas para o mar, onde possa dedicar-me ao que me dá prazer. Até sei qual é o lugar onde quero ir e chego-me perto. Procuro um sempre difícil lugar para estacionar o carro e, quando já caminho para a praia e percebo o ambiente veraneal, sustenho o passo e arrepio caminho, num rebate de consciência de quem sabe que não vai estar confortável e nem vai aguentar muito tempo. Eu bem tento forçar-me, mas não adianta.

comoção

Eu já sabia, a notícia já me tinha chegado há umas semanas, o café Lexinho reabriu. Isto passados, sei lá, cerca de dez anos encerrado, talvez mais. Foi com um sorriso, de alegria e esperança, que recebi a notícia, pois isso permitir-me-á regressar a Vila Boa e, melhor, querer ir para Vila Boa e por lá ficar. Já terei um lugar para estar. É que durante este longo hiato em que não houve Lexinho, deixei de ter destino, ocupação ou socialização na aldeia.
Um destes dias regressei a Vila Boa com um grupo de amigos portuenses e, num Domingo de manhã, finalmente, pude ir ao "novo" Lexinho. Ao chegar, para além de rever alguns velhos amigos e conhecidos, foi comovido que transpus a porta e me sentei a olhar para o espaço que eu tão bem conheço. Para além de nós, o café estava vazio. A gente que por ali estava, preferiu a sombra da esplanada. Lindo. Para mim o melhor café do mundo, onde realmente gosto de estar.
Não sei se esta reabertura será duradoura ou apenas para época de férias. Contudo, e esperando que seja por muito e bom tempo, sei que nos próximos dias e semanas é para lá que quero ir.

escrever, ler e memória

"O povo em vez de exercitar a memória, apoiar-se-ia preguiçosamente na palavra escrita. A leitura seria efectivamente uma forma de recordar, mas não uma verdadeira memória. [...] O remédio que deveria ampliar a nossa memória, imaginação e sabedoria, não passa de um veneno, uma forma de preguiça, uma maneira de papaguear sem qualquer profundidade. [...] Ao escrever decoramos com mais facilidade a matéria é memorizada com eficiência enquanto as cábulas são escritas."
Afonso Cruz, in jornal de Letras nº 1378, Julho e Agosto 2023.