Ao percorrer a paisagem de sempre, por caminhos e canelhas dos lugares que sempre conheci, vou descobrindo as alterações que se vão verificando, aqui e ali, nem sempre felizes ou positivas, mas quase sempre significantes do tempo que passa, ou do desgaste e envelhecimento dos materiais e das pessoas, ou ainda do abandono compulsivo do território. É por tudo isto que o sobressalto é maior quando deparamos com algo como o que está na fotografia... Uma porta com carabelho, bem característica deste lugar, gasta pelo tempo e pelo uso, remendada para a poder perpetuar até um futuro desconhecido e uma imponente soleira, que para além de gasta, partida significa o abandono e a falta de serventia. Uma porta que já não serve nada, nem ninguém, mas ainda assim merece o cuidado da nomeação. Essa eterna preocupação da identidade e, acima dela, a essencialista necessidade de posse da terra e do património, que teima em perseguir o Homem, ainda que seja a posse de um monte de pedras, ou de um pedaço de nada.
---------"Viajar, ou mesmo viver, sem tirar notas é uma irresponsabilidade..." Franz Kafka (1911)--------- Ouvir, ler e escrever. Falar, contar e descrever. O prazer de viver. Assim partilho minha visão do mundo. [blogue escrito, propositadamente, sem abrigo e contra, declaradamente, o novo Acordo Ortográfico]
25 fevereiro 2017
23 fevereiro 2017
refúgios
Mesmo em espaços concebidos e destinados para considerável confusão e visível anarquia, como são as praças de alimentação dos centros comerciais, que eu também com regularidade frequento, procuro sempre um espaço, canto ou recanto, mais sossegado. Nem sempre o consigo, ou nem sempre é possível, o que me leva a querer sair dali. Por vezes, mesmo perante o aparente caos visual e sonoro, consigo encontrar refúgios improváveis e, assim, manter-me em paz e sossegado, alheado de tudo que me rodeia.
diálogos maiores
Encontrado, quase por mero acaso, numa feira de livros a preços reduzidos, aquilo que me despertou a atenção foi o nome de Marguerite Duras. Pois bem, por 4,90 € comprei este livro que compila cinco conversas entre a referida escritora e o então Presidente da República Francesa, François Mitterrand. Conversas improváveis pensarão muitos, e pensei eu, pois desconhecia a amizade e a longa história que este dois ilustres gauleses partilhavam, desde que a segunda guerra mundial os uniu na resistência francesa.
A estação de correios da rua Dupin, foi o título escolhido para esta edição, pela própria Duras e conta com um prefácio de Mazarine Pingeot, filha de François Mitterrand. Foi leitura das últimas horas e, uma vez mais, foi com surpresa que percebi a cumplicidade, o respeito e a amizade que se percebe a cada momento das conversas, que ocorreram entre 24 de Julho de 1985 e 16 de Abril de 1986, sendo que a primeira tem por título: "A estação dos correios da rua Dupin"; a segunda: "O último país antes do mar"; a terceira: "O Céu e a Terra"; a quarta: "África, África"; e a quinta: "A Nova Angoulême".
Mesmo tendo em conta a diversidade dos temas abordados e a frontalidade e franqueza perceptível em cada frase ou afirmação, a conversa que mais gostei foi a segunda, o último país antes do mar, que aconteceu no dia 23 de Janeiro de 1986, no Palácio do Eliseu e na qual os dois reflectem sobre o seu país, as suas qualidades, os seus defeitos, o seu ethos;e, parece-me, o seu pathos. Ao ler este diálogo pude perceber como a percepção da realidade social francesa era tão distinta da actual, ou então, como tudo evoluiu desde então e até à actualidade.
Como não poderia deixar de ser, fiz uma pequena ficha de leitura, que agora aqui partilho e onde se destacam alguns dos seus pensamentos:
[conversa: o último país antes do mar (23/01/1986)]
M.D. - A França é um país muitas vezes invadido e outras completamente invadido. (p.46)
F.M. - Mas é um país que absorve, absorve tudo. E com o que absorve faz uma coisa original. Uma catálise é sempre extraordinária. Sabe, o contributo das populações exteriores não me inquieta nada, não tenho de modo algum a impressão de que vamos perder um valor qualquer - aliás, bastante vago - que seria a "alma francesa". A alma francesa também é feita desses contributos e é muito bom que assim seja. (p.46)
F.M. - Há muito poucos excessos racistas em França. Há minorias racistas, mas raramente contaminam a nação inteira... (p.49)
M.D. - Você diz que é o passado comum, a História comum, nos eventos, feitos e ideias, que fazem a nação. Mas eu digo que somos compatriotas porque lemos os mesmos livros na mesma língua que aprendemos. (p.51)
[conversa: África, África (25/02/1986)]
F.M. - Na Palestina, a Bíblia reinventou uma das mais belas paisagens do mundo que se pode, assim, ler duas vezes. A alma tem a impressão de contornar a curva das colinas e de penetrar no segredo da terra e do mundo. Mas reconheço que você também tem razão: é necessário passar pela escrita. (p.98)
F.M. - Agora, é diferente. Há Israel.
M.D. - Sim, agora Israel é temível. É o segundo exército mais poderoso do mundo.
F.M. - Evitemos as comparações com as grandes potências. Mas se a grandeza está, como creio, na resolução, na força do espírito, Israel não está mal colocado.
M.D. - O Ocidente é judeu. Esta faculdade de o homem europeu ser simultaneamente o outro e ele mesmo é judia.
F.M. - O nosso mundo ocidental, sim, talvez. Os outros, os Chineses, os Indianos, já não.
M.D. - Concordo que é unicamente o nosso mundo ocidental. Somos todos judaico-cristãos. É a nossa origem comum. (p.99)
F.M. - Você faz-me pensar nos Carvalhos que eu planto. Serão adultos aos cem anos. Os meus netos não os verão na sua plenitude. É assim. Prever o que se passará depois de nós dá à vida a sua dimensão, uma dimensão individual - eu planto - e colectiva - os outros desfrutarão a doçura da sombra, admirarão a força e a harmonia de uma arquitectura viva. Existe uma filosofia da árvore. (p.103)
[conversa: a nova Angoulême (16/04/1986)]
F.M. - Nada se constrói assente no medo. O que espero da França é que não tenha medo do amanhã, nem da ciência, nem do pensamento, nem das formas. E que ela ouse e persevere no seu apreço pelas considerações universais, que ela se interrogue sobre os outros, sobre si mesma. Isso não proíbe nem as ideias, nem as palavras, nem as acções quotidianas. (p.123)
[conversa: o último país antes do mar (23/01/1986)]
M.D. - A França é um país muitas vezes invadido e outras completamente invadido. (p.46)
F.M. - Mas é um país que absorve, absorve tudo. E com o que absorve faz uma coisa original. Uma catálise é sempre extraordinária. Sabe, o contributo das populações exteriores não me inquieta nada, não tenho de modo algum a impressão de que vamos perder um valor qualquer - aliás, bastante vago - que seria a "alma francesa". A alma francesa também é feita desses contributos e é muito bom que assim seja. (p.46)
F.M. - Há muito poucos excessos racistas em França. Há minorias racistas, mas raramente contaminam a nação inteira... (p.49)
M.D. - Você diz que é o passado comum, a História comum, nos eventos, feitos e ideias, que fazem a nação. Mas eu digo que somos compatriotas porque lemos os mesmos livros na mesma língua que aprendemos. (p.51)
[conversa: África, África (25/02/1986)]
F.M. - Na Palestina, a Bíblia reinventou uma das mais belas paisagens do mundo que se pode, assim, ler duas vezes. A alma tem a impressão de contornar a curva das colinas e de penetrar no segredo da terra e do mundo. Mas reconheço que você também tem razão: é necessário passar pela escrita. (p.98)
F.M. - Agora, é diferente. Há Israel.
M.D. - Sim, agora Israel é temível. É o segundo exército mais poderoso do mundo.
F.M. - Evitemos as comparações com as grandes potências. Mas se a grandeza está, como creio, na resolução, na força do espírito, Israel não está mal colocado.
M.D. - O Ocidente é judeu. Esta faculdade de o homem europeu ser simultaneamente o outro e ele mesmo é judia.
F.M. - O nosso mundo ocidental, sim, talvez. Os outros, os Chineses, os Indianos, já não.
M.D. - Concordo que é unicamente o nosso mundo ocidental. Somos todos judaico-cristãos. É a nossa origem comum. (p.99)
F.M. - Você faz-me pensar nos Carvalhos que eu planto. Serão adultos aos cem anos. Os meus netos não os verão na sua plenitude. É assim. Prever o que se passará depois de nós dá à vida a sua dimensão, uma dimensão individual - eu planto - e colectiva - os outros desfrutarão a doçura da sombra, admirarão a força e a harmonia de uma arquitectura viva. Existe uma filosofia da árvore. (p.103)
[conversa: a nova Angoulême (16/04/1986)]
F.M. - Nada se constrói assente no medo. O que espero da França é que não tenha medo do amanhã, nem da ciência, nem do pensamento, nem das formas. E que ela ouse e persevere no seu apreço pelas considerações universais, que ela se interrogue sobre os outros, sobre si mesma. Isso não proíbe nem as ideias, nem as palavras, nem as acções quotidianas. (p.123)
O encontro de dois vultos maiores da história recente francesa, que eu há muito e por razões diferentes admiro, resultou neste livro, que se apresenta também como um documento histórico e testemunha das experiências vividas pelos dois intervenientes. Leitura que se recomenda.
20 fevereiro 2017
imperdível, apurriar no Alvim
Para aqueles e aquelas que, por distracção ou omissão, não assistiram ao vivo, aqui fica o registo imperdível e para memória futura.
17 fevereiro 2017
16 fevereiro 2017
amor inteiro
Ela diz que se devia conseguir viver como eles vivem, o corpo abandonado num deserto e, no espírito, a recordação de um único beijo, de uma única palavra, de um único olhar para um amor inteiro.
(Margarite Duras, in "olhos azuis, cabelo preto", 2014:53)
14 fevereiro 2017
ao espelho
Eu e o apurriar fomos conversar com o Alvim. Gravámos hoje de manhã, vai passar no próximo dia 17, sexta-feira, pelas 24 horas, no Canal Q. Não percam.
10 fevereiro 2017
solilóquio
Serei um cáustico? Sim, sou. Sou um cáustico e com sádico prazer! Sempre. Qualidade indispensável para uma mente sã.
alma da vinha
Foi algures neste último Verão que eu conheci este vinho. Por um mero acaso, quando fui comprar um maduro branco chamado Porrais, que descobrira uns meses antes e do qual fiquei bebedor, a funcionária da loja aconselhou-me este Alma da Vinha, também maduro branco e com um preço excepcional. Aceitei o desafio apenas porque adorei o seu nome. Trouxe uma caixa de seis garrafas.
Entretanto, o Verão que durou até finais de Outubro, obrigou-me a bebê-lo e a querer sempre mais. Afrutado e bem fresquinho encaixou sempre muito bem nas conversas estivais, diurnas ou nocturnas, que foram acontecendo.
Mais tarde e com a chegada do tempo mais fresco, foi altura de experimentar a sua versão tinta, ou seja, maduro tinto. Boa escolha, também com um preço estúpido e de razoável qualidade, apesar de não ter o mesmo nível que o branco, até porque se exige sempre mais de um tinto, a verdade é que fiquei seu consumidor e, nos momentos quotidianos em que me apetece beber um copo de vinho, é a ele que me dirijo.
09 fevereiro 2017
caminho certo
EDITORIAL
A nova ortografia vai nua? Vistam-na, depressa!
Depois de a Academia vir a terreiro dizer “o rei vai nu” já não é possível fingir que nada se passa.
Provavelmente nenhum outro país, como Portugal, é tão cioso de querelas ortográficas. As línguas com maior difusão no planeta lidam com o tema de forma simples: aceitam as suas diversidades e seguem adiante. Isso sucede com o Inglês, o Francês ou o Espanhol, sendo que, no caso dos dois últimos, as respectivas academias não se coíbem de propor alterações, mas meramente indicativas.
Os acordos ortográficos são, também, uma originalidade nossa. Depois da revolucionária reforma de 1911, feita a pretexto de “simplificar” a escrita e o ensino, veio o AO de 1945 e, por fim, o AO de 1990 (ressuscitado em 2006 para ser depois imposto em 2011). Pelo meio, houve várias alterações e mexidas de pormenor e tentativas abortadas de fazer outros acordos, alguns até bastante radicais (o de 1986, por exemplo, abolia quase todos os acentos e criava palavras absolutamente ininteligíveis).
Chegámos a 2017 com um quadro muito pouco animador: um comprovado caos na escrita (há cada vez mais exemplos, estão online, e todos os dias são coligidos mais) e as mesmas críticas de sempre, dia a dia ampliadas pela absoluta inércia dos poderes decisórios. A diferença é que, além de vários grupos de cidadãos não terem desmobilizado, a Academia das Ciências de Lisboa veio enfim apontar uma série de erros evidentes e propor a sua correcção. Porquê? Porque a Academia está a refazer o seu Dicionário (até finais de 2018) e quer usar nele uma ortografia digna desse nome. Por isso veio propor um conjunto de “aperfeiçoamentos” que põem em causa muitas opções consagradas no AO.
Claro que, a isto, o ministro Augusto Santos Silva já veio dizer “não”, embora acrescente que “nada está isento nem de crítica nem de possibilidade de melhoria”. Ou seja: está mal, mal continuará. Que as crianças aprendam erros, problema delas. Que pais e professores sejam obrigados a ensiná-los, pouco importa. Isto é uma posição insustentável e mostra como o PS, que revê e reverte tudo e mais alguma coisa, só não revoga aquilo que manifestamente não entende: e isso chama-se ortografia.
O problema é que, depois de a Academia vir a terreiro dizer “o rei vai nu” já não é possível fingir que nada se passa. Políticos e partidos não podem furtar-se à responsabilidade. É preciso agir, de forma consciente (e, como diz a Academia, com bases científicas), abandonando de vez a inércia. A nova ortografia vai nua? Vistam-na, depressa! Ou dispam-na de vez. Mas façam algo digno, por favor.
(Nuno Pacheco, in Jornal Público, 9/2/17)
03 fevereiro 2017
embaraço meu
Foi com prazer que, pela primeira vez, pude declarar na contra-capa de um livro, a minha repulsa pelo acordo ortográfico que está em uso por decreto. É que já em momentos anteriores, leia-se publicações, tentei fazê-lo, mas fui sempre convencido por terceiros a não vincar de tal forma esse meu sentimento, e acabei sempre por remeter para a ficha técnica a minha agonia. Curioso, eu diria mesmo, desconcertante é agora aperceber-me que, afinal, também escrevi palavras segundo a nova regra. Pois foi. Neste exercício masoquista de ler em busca de gralhas e erros, aterrador foi encontrar essas palavras mal escritas. Eu até sei que para muitos leitores não passam de pequenos nadas, mas para quem vincou de tal forma a indisposição face à nova prática, não deixa de ser embaraçoso. Lamento.
apurriado
Não é que seja novidade, ou sequer caso único, mas apurria-me solenemente encontrar gralhas, falhas ou erros nos textos depois de publicados, principalmente porque, apesar de não dispor de uma equipa de revisores especializados, procuro ter cuidado com as revisões que faço dessa escrita e peço sempre a mais do que uma pessoa para ler o que irá ser publicado. Fico apurriado, pois não é desleixo, não é incúria, nem tão pouco ignorância. Fico até com a impressão que na maior parte dessas gralhas o factor humano não é responsável. Enfim.
Subscrever:
Mensagens (Atom)