23 fevereiro 2017

diálogos maiores

Encontrado, quase por mero acaso, numa feira de livros a preços reduzidos, aquilo que me despertou a atenção foi o nome de Marguerite Duras. Pois bem, por 4,90 € comprei este livro que compila cinco conversas entre a referida escritora e o então Presidente da República Francesa, François Mitterrand. Conversas improváveis pensarão muitos, e pensei eu, pois desconhecia a amizade e a longa história que este dois ilustres gauleses partilhavam, desde que a segunda guerra mundial os uniu na resistência francesa.
A estação de correios da rua Dupin, foi o título escolhido para esta edição, pela própria Duras e conta com um prefácio de Mazarine Pingeot, filha de François Mitterrand. Foi leitura das últimas horas e, uma vez mais, foi com surpresa que percebi a cumplicidade, o respeito e a amizade que se percebe a cada momento das conversas, que ocorreram entre 24 de Julho de 1985 e 16 de Abril de 1986, sendo que a primeira tem por título: "A estação dos correios da rua Dupin"; a segunda: "O último país antes do mar"; a terceira: "O Céu e a Terra"; a quarta: "África, África"; e a quinta: "A Nova Angoulême".
Mesmo tendo em conta a diversidade dos temas abordados e a frontalidade e franqueza perceptível em cada frase ou afirmação, a conversa que mais gostei foi a segunda, o último país antes do mar, que aconteceu no dia 23 de Janeiro de 1986, no Palácio do Eliseu e na qual os dois reflectem sobre o seu país, as suas qualidades, os seus defeitos, o seu ethos;e, parece-me, o seu pathos. Ao ler este diálogo pude perceber como a percepção da realidade social francesa era tão distinta da actual, ou então, como tudo evoluiu desde então e até à actualidade.


Como não poderia deixar de ser, fiz uma pequena ficha de leitura, que agora aqui partilho e onde se destacam alguns dos seus pensamentos:

[conversa: o último país antes do mar (23/01/1986)]
M.D. - A França é um país muitas vezes invadido e outras completamente invadido. (p.46)
F.M. - Mas é um país que absorve, absorve tudo. E com o que absorve faz uma coisa original. Uma catálise é sempre extraordinária. Sabe, o contributo das populações exteriores não me inquieta nada, não tenho de modo algum a impressão de que vamos perder um valor qualquer - aliás, bastante vago - que seria a "alma francesa". A alma francesa também é feita desses contributos e é muito bom que assim seja. (p.46)
F.M. - Há muito poucos excessos racistas em França. Há minorias racistas, mas raramente contaminam a nação inteira... (p.49)
M.D. - Você diz que é o passado comum, a História comum, nos eventos, feitos e ideias, que fazem a nação. Mas eu digo que somos compatriotas porque lemos os mesmos livros na mesma língua que aprendemos. (p.51)

[conversa: África, África (25/02/1986)]
F.M. - Na Palestina, a Bíblia reinventou uma das mais belas paisagens do mundo que se pode, assim, ler duas vezes. A alma tem a impressão de contornar a curva das colinas e de penetrar no segredo da terra e do mundo. Mas reconheço que você também tem razão: é necessário passar pela escrita. (p.98)
F.M. - Agora, é diferente. Há Israel.
M.D. - Sim, agora Israel é temível. É o segundo exército mais poderoso do mundo.
F.M. - Evitemos as comparações com as grandes potências. Mas se a grandeza está, como creio, na resolução, na força do espírito, Israel não está mal colocado.
M.D. - O Ocidente é judeu. Esta faculdade de o homem europeu ser simultaneamente o outro e ele mesmo é judia.
F.M. - O nosso mundo ocidental, sim, talvez. Os outros, os Chineses, os Indianos, já não.
M.D. - Concordo que é unicamente o nosso mundo ocidental. Somos todos judaico-cristãos. É a nossa origem comum. (p.99)
F.M. - Você faz-me pensar nos Carvalhos que eu planto. Serão adultos aos cem anos. Os meus netos não os verão na sua plenitude. É assim. Prever o que se passará depois de nós dá à vida a sua dimensão, uma dimensão individual - eu planto - e colectiva - os outros desfrutarão a doçura da sombra, admirarão a força e a harmonia de uma arquitectura viva. Existe uma filosofia da árvore. (p.103)

[conversa: a nova Angoulême (16/04/1986)]
F.M. - Nada se constrói assente no medo. O que espero da França é que não tenha medo do amanhã, nem da ciência, nem do pensamento, nem das formas. E que ela ouse e persevere no seu apreço pelas considerações universais, que ela se interrogue sobre os outros, sobre si mesma. Isso não proíbe nem as ideias, nem as palavras, nem as acções quotidianas. (p.123)

O encontro de dois vultos maiores da história recente francesa, que eu há muito e por razões diferentes admiro, resultou neste livro, que se apresenta também como um documento histórico e testemunha das experiências vividas pelos dois intervenientes. Leitura que se recomenda.

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