Isabel do Carmo, médica e professora, escreveu na edição de Setembro do Le Monde Diplomatique (edição portuguesa), um magnífico artigo sobre os embustes que se verificam às custas de uma tentativa de legitimação científica, em particular na área da saúde e da alimentação. Logo o título O pensamento mágico de fachada científica, sintetiza muito bem a estrutura de todo o texto, servindo-se do extenso sub-título para dizer ao que vem, afirmando: ...Mas é importante reflectir sobre as disputas que, ocorrendo fora do campo científico e não se sujeitando às regras básicas da sua racionalidade e método, tentam legitimar-se com embustes sobre o que é "natural" ou "científico".
Começa por afirmar que, ao contrário do que se possa pensar, o pensamento mágico aplicado ao quotidiano, em particular à saúde e alimentação, está associado e tem evoluído de acordo com as mudanças dos grupos mais jovens das populações urbanizadas, e não nas zonas rurais... trata-se de modas urbanas, que têm acompanhado o vestuário e os costumes.
Depois, fazendo um resumo histórico dos confrontos das massas juvenis e dos movimentos na segunda metade do século XX, procura "descobrir" as origens de uma cultura New Age e, ao mesmo tempo, de um neo-orientalismo que, apesar de diferente do olhar extasiado dos europeus aventureiros que descobriram as culturas orientais no século XIX, mas igualmente maravilhado e acrítico como se fosse finalmente descoberto o paraíso perdido em que muitos ainda acreditam. Daqui ao momento em que o Ocidente passou a olhar paternalista para essas culturas, foi um instante e, a par desta descoberta de soluções para a saúde e para a doença, instalou-se sem resistência o comércio e a marcantilização, que gera muito mais dinheiro do que poderiam sugerir umas simples ervinhas.
No segmento seguinte do texto, Isabel do Carmo começa por questionar: O que é o "natural"*? À pergunta, apresenta a palavra que os cientistas deveriam ter, se não recearem as tendências e a fúria das modas... toda a paisagem dos campos com que nos maravilhamos não é natural. Foi obra do ser humano, não estava lá. Logo, o raciocínio é fácil e lógico: O que querem dizer os comerciantes sempre que usam o adjectivo "natural"? O que querem os nossos amigos e os doentes quando falam dos produtos "naturais"? Quererão dizer que sendo "natural" é "bom"?!
Perguntar-se-á então se se trata de plantas espontâneas, colhidas com o saber antigo dos druidas ou se são cultivadas e bem cultivadas, adubadas e pulverizadas de insecticidas para crescerem bem e depressa, responderem à procura do mercado e encherem prateleiras de lojas especializadas. A autora inclina-se mais para esta segunda hipótese.
Depois, em tom interrogativo, regressa à associação entre "natural" e "bom", afirmando que esta ideia releva de um antropocentrismo muito entranhado nas religiões e nas culturas... e que mesmo a natureza nos oferece uma panóplia de substâncias perigosas para a saúde e vida dos seres humanos, apresentando vários exemplos dessas substâncias e fazendo uma síntese da evolução do conhecimento popular relativo à flora e à sua utilização para fins farmacológicos, terapêuticos e medicinais. A este propósito é dito: o respeito pela história dos saberes populares ou de vultos do passado não nos pode levar a concluir que é melhor chupar o salgueiro quando se tem dores, em vez de tomar uma aspirina de síntese, ou procurar fungos para combater uma infecção com bactérias, em vez de tomar um antibiótico. (...)
Portanto, todos os produtos "naturais", "plantas", "suplementos alimentares", mesmo sendo vendidos nas farmácias, o que lhes confere uma dignidade técnica e científica indesmentível, estão no mercado tendo apenas declarado que existem no Ministério da Agricultura e, embora sejam usados para fins medicamentosos, não têm qualquer dossiê nem de eficácia, nem de toxidade. Longe de estarem diabolizados como acontece aos medicamentos, a sua propagação assenta numa base culturalmente bem sólida.
Assim, para Isabel do Carmo, este é o mundo das nossas populações urbanas, escolarizadas, de um grupo etário dos jovens aos jovens-adultos e pelos vistos com poder de compra para frequentar os múltiplos pontos de comércio destes produtos. (...) Tudo o que vem atrás tem sido revestido de explicações "científicas", indo buscar palavras da esfera da ciência, como seja "energia" (...), com um significado quase cabalístico... O aspecto placebo é aqui de grande importância...
Agora temos a fachada científica a funcionar em pleno. É o caso das intolerâncias ao glúten e à lactose, da dieta paleolítica e a pesquisa (utilizando aparelhos e tecnologias) de défices causadores de doenças presentes e futuras.
O artigo termina com uma reflexão sobre a literária em saúde, e aqui a questão coloca-se ao nível da informação do conhecimento que é fornecida para o público em geral. Reconhecendo que tem sido realizado um esforço considerável, a verdade é que os alunos actuais têm muita mais informação do que os seus pais e avós.
* esta questão do "natural" relembra-me outra moda vigente e rentável - a da agricultura "biológica". Mas então não é toda a agricultura biológica?