17 julho 2018

as identidades que matam


Não recordo o dia, nem a hora, mas sei que foi numa conversa com o cantor José Mário Branco, nas últimas semanas, que ouvi da boca do cantor que um dos livros que mais o marcaram foi este "Identidades Assassinas" de Amin Maalouf. Fiquei curioso, até porque já conhecia o autor, de um outro seu trabalho magnífico em que vai em busca das suas "Origens". Procurei-o nas lojas do costume e logo me apercebi que não seria fácil encontrá-lo. Trata-se de uma edição de 1999 da extinta Difel e, por isso, só em alfarrabistas ou na internet o poderia encontrar. Numa busca na internet e contactando vários alfarrabistas, apenas consegui que dois me respondessem afirmativamente. Finalmente o livro cá me veio parar às mãos e foi com alguma expectativa que depressa o li.
Trata-se de uma reflexão do autor - franco-libanês - acerca da importância das identidades individuais, da importância dos sentimentos de pertença a um determinado grupo e da relevância dessas dimensões identitárias na evolução das sociedades, no confronto de ideologias, na sobrevivência das comunidades, nas disputas religiosas e origens dos movimentos extremistas, radicais e fundamentalistas, e no enorme hiato que existe entre as civilizações ocidental e oriental/muçulmana.
Perfeitamente datado e contextualizado - final do século XX (antes do 11 de Setembro de 2001, entre outros) - poderemos até considerá-lo ultrapassado em várias das suas afirmações, mas em todo o caso, parece-me pertinente atentar nalgumas das questões suscitadas:

Porquê estes véus, estes tchadors, estas barbas severas, estes apelos ao assassínio? Porquê tantas manifestações de arcaísmo, de violência? Será tudo isto inerente a estas sociedades, à sua cultura, à sua religião? Será o Islão incompatível com a liberdade, com a democracia, com os direitos do homem e da mulher, com a modernidade?

As respostas não são simples e o autor afirma que não acredita no exagero da influência das religiões sobre os povos, enquanto se negligencia a influência dos povos sobre as religiões, exemplificando, com o caso europeu. Se o cristianismo modelou a Europa, a Europa também modelou o cristianismo. Este é hoje o que as sociedades fizeram dele. Elas transformaram-se, material e intelectualmente, e transformaram consigo o seu cristianismo (p.74). Reforça esta ideia, escrevendo que a sociedade ocidental inventou a Igreja e a religião que tinha necessidade, tal como no mundo muçulmano, a sociedade produziu constantemente uma religião à sua imagem e que quando os muçulmanos atacam violentamente o Ocidente, não é só por serem muçulmanos e por o Ocidente ser Cristão, é também por serem pobres, dominados, ridicularizados e por o Ocidente ser rico e poderoso.
Um pouco mais à frente, o autor dedica-se à explicação/justificação da tal enorme diferença que podemos verificar entre o mundo ocidental e o resto do mundo, afirmando:

Esta primavera formidável da humanidade criadora, esta revolução total, científica, tecnológica, industrial, intelectual e moral, este longo trabalho “de buril” efectuado por povos em plena mutação, que todos os dias inventavam e inovavam, que sem cessar faziam tremer as certezas e sacudiam as mentalidades, não foi um acontecimento entre outros, foi único na História, foi o acontecimento fundador do mundo tal como o conhecemos hoje, e produziu-se no Ocidente - no Ocidente e em nenhum outro lugar. (...) Será que esta mutação se produziu graças ao cristianismo, ou apesar do cristianismo? (...) A emergência, no Ocidente, durante os últimos séculos, de uma civilização que iria tornar-se, para o mundo inteiro, a civilização de referência, tanto no plano material como no plano intelectual, de tal modo que todas as outras se encontraram marginalizadas, reduzidas a um estado de culturas periféricas, ameaçadas de extinção. (...) A partir de que momento se tornou esta predominância da civilização ocidental virtualmente irreversível? A partir do século XV? Nunca antes do século XVIII. Do ponto de vista que hoje é o meu, pouco importa. O que é certo, e fundamental, é que um dia uma civilização resoluta tomou as rédeas da carruagem planetária nas suas mãos. A sua ciência tornou-se a ciência, a sua filosofia tornou-se a filosofia, e este movimento de concentração e de “estandardização” nunca mais parou, pelo contrário, não deixa de acelerar, alargando-se ao mesmo tempo a todos os domínios e a todos os continentes. (p.81 e 82)

Uma crise de identidade é associada à causalidade de vários sentimentos de repulsa, aversão e repúdio face ao mundo ocidental...

A felicidade do mundo e a sua infelicidade, tudo isto veio do Ocidente.
Onde quer que se viva neste planeta, toda a modernização é, daqui em diante, ocidentalização. Uma tendência que os progressos técnicos não fazem senão acentuar e acelerar. Um pouco por todo o lado encontramos, evidentemente, monumentos e obras que trazem consigo a marca de civilizações específicas. Mas tudo o que se criou de novo - quer se trate de construções, instituições, instrumentos de conhecimento, ou modos de vida - foi criado à imagem do Ocidente. (...) Esta realidade não é vivida da mesma maneira pelos que nasceram no seio da civilização dominante e por aqueles que nasceram fora dela. Os primeiros puderam transformar-se, avançar na vida, adaptar-se, sem deixar de serem eles mesmos; poderíamos mesmo dizer que, para os ocidentais, quanto mais se modernizam, mais se sentem em harmonia com a sua cultura, somente os que recusam a modernidade se encontram desfasados. Para o resto do mundo, para todos aqueles que nasceram no seio de culturas desfeitas, a receptividade à mudança e à modernidade coloca-se em termos muito diferentes. Para os chineses, para os africanos, os japoneses, os indianos ou os ameríndios, assim como para os gregos e os russos, para os iranianos, os árabes, os judeus ou os turcos, a modernização implicou constantemente o abandono de uma parte de si mesmos. Mesmo quando ela suscitava por vezes o entusiasmo, nunca se desenrolava sem uma certa amargura, sem um sentimento de humilhação e de renúncia. Sem uma interrogação dolorosa sobre os perigos da assimilação. Sem uma profunda crise de identidade. (p.83 e 84)

Pode-se bem imaginar o sentimento que poderão experimentar os diferentes povos não ocidentais, para quem, desde há numerosas gerações, cada passo na sua existência se acompanha de um sentimento de capitulação e de negação de si próprios. Foi-lhes necessário reconhecer que o seu saber estava ultrapassado, que tudo o que produziam nada valia comparado com o que se produzia no Ocidente, que a sua manutenção da medicina tradicional resultava da superstição, que o seu valor militar não passava de uma reminiscência, que os seus grandes homens que tinham aprendido a venerar, os grandes poetas, os sábios, os militares, os santos, os viajantes, não contavam para nada aos olhos do resto do mundo, que a sua religião era suspeita de barbárie, que a sua língua era estudada apenas por meia-dúzia de especialistas… (…) Sim, a cada passo da sua vida, encontram uma decepção, uma desilusão, uma humilhação. Como não ter uma personalidade mortífera? Como não sentir a sua identidade ameaçada? Como não ter o sentimento de viver num mundo que pertence aos outros, que obedece a regras ditadas pelos outros, um mundo onde se sentem órfãos, estrangeiros, intrusos ou párias? (p.86 e 87)

O autor termina a sua reflexão partilhando aquilo que considera serem as inquietações da mundialização actual:

a) uniformização pela mediocridade - a ideia segundo a qual a efervescência actual, mais do que conduzir a um enriquecimento extraordinário, à multiplicação dos meios de expressão, à diversificação de opiniões, conduz paradoxalmente ao inverso, ao empobrecimento: assim, esta multiplicidade desenfreada de expressões musicais apenas desembocará, no final de contas, numa espécie de música de ambiente, afectada e adocicada. Assim, o formidável cadinho de ideias terá como resultado uma opinião unanimista, simplista, um menor-denominador-comum intelectual, a tal ponto que toda a gente, à excepção de um punhado de excêntricos, acabará por (…) engolir o mesmo caldo informe de sons, de imagens e de crenças;
b) uniformização pela hegemonia - Será a mundialização algo mais do que uma americanização? Não terá ela como consequência principal o impor ao mundo inteiro uma mesma língua, um mesmo sistema económico, político e social, um mesmo modo de vida, uma mesma escala de valores, os dos Estados Unidos da América? A acreditar em algumas pessoas, o conjunto do fenómeno da mundialização não passaria de um disfarce, de uma camuflagem, de um cavalo de Tróia, sob o qual se dissimularia uma empresa de dominação. É legitimo interrogarmo-nos se a mundialização não irá reforçar a predominância de uma civilização ou a hegemonia de uma potência. Isto apresentaria dois perigos graves: o primeiro, o de vermos, pouco a pouco, desaparecer línguas, tradições, culturas; o segundo, o de vermos os membros dessas culturas ameaçadas adoptarem atitudes cada vez mais radicais, cada vez mais suicidas.
Os riscos de hegemonia são reais. (p.126 a 129)

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