25 outubro 2021

uma colmeia sem saída


Demorei muito tempo a ler este livro. Andei com ele quase quatro meses, carregando-o para todo lado: da mesinha de cabeceira para as férias, da secretária para saídas precárias de casa ao café ou buscar a criança, das aulas para reuniões, seminários e encontros. A razão que encontro para ter demorado tanto tempo a ler as suas quase 600 páginas, é o facto de não ser um tema que me fascine, ou sequer me agrade. Não tivessem sido as repetidas e convincentes sugestões para a sua leitura e, com toda a certeza, não o tinha adquirido e lido. Em todo o caso, ainda bem que o fiz, pois resulta de uma aturada investigação da autora sobre a realidade que experimentamos na nossa contemporaneidade, leia-se, últimas duas a três décadas, que me permitiu conhecer e comprovar, com maior rigor e pormenor, muito daquilo que era apenas senso-comum.
Parafraseando Hannah Arendt, muito citada nesta obra, quando as condições são contrárias à dignidade do homem, a reacção humana natural é a ira e a indignação. Pois bem, ao ler sobre a tremenda disputa de poder que hoje se trava pela vigilância e pela informação excedentária, a minha natural ou instintiva reacção seria desligar-me de toda e qualquer conectividade digital ou cibernética, mas a razão diz-me para mitigar essa vontade e, por enquanto, manter-me vigilante, consciente dos perigos eminentes e latentes que a "rede" hegemónica implicam.
A leitura que fiz foi crítica, anotada, sublinhada, rabiscada e comentada. Seriam muitos os momentos que poderia aqui trazer para ilustrar a perspectiva da autora, mas decidi partilhar algumas passagens dos últimos capítulos, nos quais se identificam perigos e soluções para o tempo próximo que aí vem:

Os nossos filhos vão a caminho da maioridade numa colmeia que é propriedade e dirigida pelos utopistas aplicados da vigilância, ao mesmo tempo que é constantemente monitorizada e moldada por um poder instrumentarista cada vez mais forte. É essa vida que queremos para os membros mais abertos, moldáveis, entusiásticos, maleáveis, compelidos e prometedores da nossa sociedade? (Pág. 494)

A melhor maneira de descrever o monstruoso capitalismo da vigilância antidemocrático e anti-igualitário é caracterizá-lo como um golpe dirigido a partir do topo do mercado. (...) Trata-se de um coup de gens - um derrubamento das pessoas dissimulado sob a forma desse cavalo de Troia tecnológico que é o Grande Outro. (...) Este golpe torna eficazes concentrações exclusivas de saber e de poder que sustentam a sua influência privilegiada sobre a divisão da aprendizagem social, ao mesmo tempo que supõe a privatização do princípio central do ordenamento social do século XXI. (Pág. 572)

O capitalismo da vigilância opera sob uma forma declarativa e impõe as relações sociais próprias de uma autoridade absolutista pré-moderna. É uma forma de tirania que se alimenta das pessoas, mas não é das pessoas. (...) Celebrado como uma "personalização", embora profane, ignore, anule e desagregue tudo o que há de pessoal no leitor ou em mim. (Pág. 572)

A tirania do capitalismo da vigilância não requer o chicote do déspota, do mesmo modo que não requer os campos e gulags do totalitarismo. (...) O Grande Outro age na base de um conjunto sem precedentes de operações comerciais que devem modificar o comportamento humano para obter o seu sucesso comercial.(Pág. 573)

O capitalismo da vigilância é uma forma sem fronteiras que ignora as distinções anteriores entre o mercado e a sociedade, entre o mercado e o mundo, ou entre o mercado e as pessoas. É uma forma movida pelo lucro cuja produção se subordina à extracção, enquanto os capitalistas da vigilância reivindicam unilateralmente para si o controlo sobre territórios humanos, sociais e políticos que se estendem muito para lá das áreas convencionais da empresa privada ou do mercado. (Pág. 573)

O triunfo do poder instrumentarista pretende-se, evidentemente, um golpe sem derramamento de sangue. Em vez da violência contra os nossos corpos, a terceira modernidade instrumentarista recorre antes à domesticação. (...) Espera-se de nós que cedamos a nossa autoridade, que afrouxemos as nossas preocupações, calemos as nossas vozes, nos deixemos ir na corrente e nos submetamos aos visionários da tecnologia cujos poder e riqueza se afirmam como garantia da superioridade do seu juízo. Acederemos assim a um futuro com menos controlo pessoal e mais privação de poder, em que novas fontes de desigualdade nos dividirão e submeterão. (Pág. 574 e 575)

Apesar da promessa democrática da sua retórica e das suas capacidades, o capitalismo da vigilância contribuiu para uma nova Idade Dourada da desigualdade extrema, (...) entre os múltiplos ataques à democracia e às instituições democráticas montados pelo seu coup de gens, incluo:
- a expropriação não autorizada da experiência humana;
- o sequestro da divisão da aprendizagem na sociedade;
- a independência estrutural em relação às pessoas;
- a imposição dissimulada da colmeia colectiva;
- a ascensão do poder instrumentarista e a indiferença radical que sustenta a sua lógica extractiva;
- a construção, a propriedade e a manipulação dos meios de modificação do comportamento do Grande Outro;
- a degradação do indivíduo que se autodetermina como fulcro da vida democrática;
- a insistência no atordoamento psíquico como resposta aos seus quiproquós ilegítimos. (Pág. 578)

Tal como refere a autora, cabe-nos reavivar o sentimento de indignação e perda, pois uma colmeia sem saída nunca poderá ser uma casa.

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