29 setembro 2024

esculpir a existência

"Em pleno século XXI, parece que o ser humano tende, mais do que nunca, para a barbárie, para um inusitado regresso à pré-história, a um tempo de grunhidos e guinchos, anterior a uma linguagem articulada. Referiu o médico italiano Lamberto Maffei, em Elogio da Palavra, que 'o milagre da evolução gerou as palavras para que o homem possa narrar, para que na sucessão das gerações não se perca o património das experiências vividas. Que seria do homem sem palavras?' E pergunto, se fomos feitos de palavras, sem elas passaremos a ser feitos de quê? De que matéria se esculpirá a nossa existência para além da carne e dos ossos, convertidos depois em pó e cinza?"
Dora Gago, in jornal de Letras nº 1408, Setembro 2024.

27 setembro 2024

a quem possa interessar...


Eu vou tentar participar. Para mais informações, programa e afins: https://tinyurl.com/fv4szhn5

prova, mastiga e deita fora, sem demora

O mote para este quase-desabafo é o verso da mais que conhecida música "Chiclete" (1981) dos Táxi, que, diga-se, teima permanecer actual. E aqui encontramos logo uma curiosidade, pois a crítica social desta letra musical, do consumismo e do efémero, acabou ela mesmo por se perpetuar no tempo. "Mastigar e deitar fora" funciona como metáfora perfeita para aquilo que caracteriza, e muito, a nossa sociedade: Comprar, consumir, adquirir e depressa largar, abandonar, estragar ou simplesmente deitar ao lixo, para depois voltar a comprar, consumir e adquirir, para depressa voltar a largar, abandonar, estragar ou deitar ao lixo, numa lógica e dinâmica impossíveis de deter ou interromper.
Duas situações distintas, num passado recente, reavivaram-me esta ideia da intolerância da sociedade e das lógicas mercantilizadoras das "coisas", para com, digamos, objectos com alguns anos de existência. A primeira diz respeito ao meu automóvel, que desde que é minha propriedade tem direito a manutenção e assistência na própria marca. É que gato escaldado da água fria tem medo e eu, para não repetir dramas passados, prefiro ser espoliado com garantia de marca. O meu carro tem 14 anos e cerca de 250 mil quilómetros e na última factura-recibo de revisão feita, na marca, a designação do serviço prestado era: "revisão sénior"; A segunda situação, mais recente e, digo eu, ainda mais caricata, diz respeito ao meu computador portátil. Tenho-o desde 2015, portanto é um computador com cerca de nove anos. Nunca tive um problema com ele, nunca deu um erro, nem nunca foi preciso ir com ele à "oficina", até aqui há dias em que o teclado e esta coisa que substitui o rato, mas eu não sei como se designa, deixou de funcionar. Ligeiramente preocupado, a primeira coisa que fiz na manhã seguinte foi ir à "oficina" da respectiva marca, instalada numa requintada loja de um centro comercial da periferia. A conversa de quem me atendeu e já depois de eu mostrar o computador e explicar o sucedido, foi mais ou menos assim:
- Pois, eu compreendo, o seu computador é de 2015... e eu acho que, mas deixe-me confirmar, já não damos assistência técnica (material), porque ele já é vintage...
- Como?! Vintage com nove anos?! - questionei eu, espantado com aquela adjectivação classificatória.
- Pois é, eu sei, mas não poderemos fazer nada. Vamos fazer um diagnóstico à máquina para ver se há algum problema que possa ser resolvido aqui e agora. Se não, talvez seja melhor ponderar adquirir um computador novo...
Não vou registar aqui os impropérios que mentalmente e de imediato proferi, mas naquele momento ficou decidido que essa não seria a solução imediata, até porque no final de tudo isto e depois de mais de uma hora à espera, o computador foi-te entregue com o problema resolvido.
Vivemos num mundo que não quer/aceita/tolera coisas velhas e a ideia ou possibilidade de alguma perenidade é um pesadelo para a tal sociedade de consumo imediato. Há quem conviva bem com esta realidade, há quem não queira saber, nem sequer pensa no assunto e há quem, como eu, não se conforma com tamanha estupidez.

17 setembro 2024

outra, outra e outra vez

Mais do mesmo, uma e outra vez, já ninguém se espanta com a calamidade dos brutais incêndios que, ciclicamente, nos destroem o país. E vai continuar a acontecer até que alguém (leia-se Governo/Estado) tenha a vontade e a coragem de olhar para o território rural e florestal e decida investir verdadeiramente, estruturando, gerindo e rentabilizando a heterogeneidade de recursos naturais e culturais que são autóctones desses territórios. Não adiantará muito, nem resolve o problema continuar a apostar no combate aos incêndios e despejar dinheiro em cima de dinheiro que não faz mais do que alimentar o cluster da industria dos incêndios. Também não é solução criar comissões ad-hoc ou improvisar grupos de acompanhamento que se deslocam pelo país consoante os fogos, pois uma vez mais essa é uma atitude reactiva e não activa, como se pretende, de prevenção e de estruturação da floresta.
Cabe ao Estado, de uma vez por todas, olhar para o território nacional e promover uma "revolução" naquilo que são o património e valor naturais. Alocando meios financeiros às organizações públicas que intervêm nesses territórios, reforçando meios humanos e materiais. Só assim, talvez um dia, o paradigma mude. No entretanto, continuaremos a ser bombardeados com discursos pífios e patéticos dos mais altos cargos políticos e de comando do país, que sem terem a mais ínfima ideia do problema, também não conseguem alcançar qualquer solução. Não há pachorra.

15 setembro 2024

resistência

"Ler é um acto de resistência ao barulho de opiniões num mundo em que não se cruzam nem se deixam tocar e onde apenas existe a ilusão - outra ilusão - de que estamos todos a conversar uns com os outros".
Isabel Lucas, in revista LER nº 171 - Verão 2024, pág. 66.

vida malvada

Assisti ontem à noite ao concerto que encerrou a digressão de celebração dos quarenta e cinco anos de vida dos Xutos & Pontapés, no Queimódromo do Porto. Não sei quantos milhares de pessoas estiveram na plateia (esperei pelas notícias de hoje para conhecer esse número, mas ainda não o encontrei), mas dos oito aos oitenta, impressiona a empatia que a banda tem com a generalidade da população portuguesa. Avós, pais e filhos a cantar as músicas de sempre, a dançar e a pular, numa autêntica festa nacional. E nem a idade dos músicos impede ou prejudica a sua qualidade musical, nem a evidente e perene falta de jeito do vocalista, o Tim, para comunicar com o seu público ofusca a atitude dos seus parceiros em palco... o Kalu continua a ser um "animal" na bateria e o Cabeleira, de cigarro na boca, mantém os decibéis eléctricos bem à frente, enquanto sustenta todas as amplitudes melódicas. Sempre bom. Do alinhamento há a destacar o facto de terem tocado temas de todos os álbuns, num total de 29 músicas. Entraram com a "Vida Malvada", homenagearam Zé Pedro (que completaria por estes dias 68 anos) com a projecção de um vídeo dele a cantar "Submissão" e terminaram em acústico com o "Homem do leme", pelos vistos porque quiseram assinalar um momento importante na carreira, que foi um concerto acústico na Antena 3. Pessoalmente, gostando muito mais dos primeiros álbuns do que dos mais recentes, faltaram alguns temas mais antigos, como "Barcos gregos" ou "Torres da Cinciberlândia". Um dos primeiros vinis que comprei foi o "Circo de Feras" e, por isso, será o meu disco de referência deles, pois para além de ainda hoje saber todas as letras quase de cor, muitas delas transformaram-se em verdadeiros hinos... contentores, saí p'rá rua, pensão, desemprego, esta cidade, não sou o único, n'América, vida malvada e circo de feras.
Ontem fui acompanhado por um grupo de queridos amigos com os quais partilhei a festa... cantámos, pulámos e dançámos, mas também levei a família e até o imberbe gosta, conhece e canta algumas das músicas. Xutos & Pontapés é este encontro inter-geracional, o tal dos 8 aos 80, e por isso são especiais, peculiares e, sem qualquer dúvida, património nacional.
Quarenta e cinco anos e continua a ser à maneira deles.

(da esquerda para a direita e para memória futura: Rodrigo, eu, Andreia, Sandra, Bruno, João, Zé, Décio, Cristina, Sílvia, Filipe, Luzia, Sónia e um desconhecido emplastro...)

11 setembro 2024

como o ar


Um dos livros que adquiri no início do mês de Agosto e que levei comigo para os dias de férias, foi este sobre a natureza da cultura. Partindo da sua condição de professor, filósofo e especialista, entre outras áreas, em políticas culturais, e aproveitando os dias de retiro forçado da pandemia, Antonio Monegal constrói um autêntico compêndio, em jeito de ensaio, sobre cultura. Procurando responder a questões como: é a cultura um bem comum? É um direito? É um dever do Estado Social? É mesmo importante?, ao longo de 15 capítulos socorre-se de vários exemplos e de vários autores, incluindo alguns clássicos da literatura, para nos apresentar uma ideia de cultura, descomplexificada, desempoeirada e heterogénea, isto é, liberta de qualquer amarra ideológica ou económica. Sem qualquer dúvida ou hesitação, se neste momento tivesse que construir uma bibliografia para uma qualquer cadeira relacionada com cultura, este seria o livro de leitura obrigatória. Completo, abrangente e pedagógico.
Agora, falta-me apenas fazer a sua ficha de leitura.