31 julho 2025

autêntico inferno


Vivo nesta casa há quase vinte anos e em cada Verão o desespero é o mesmo, calor, muito calor. Vivo num segundo e último andar de um prédio com apenas seis habitações, sem varandas e com uma exposição solar tremenda. Acresce que, por ser o último andar, temos por cima uma cobertura de telas, alcatrão e cascalho que acumula calor durante todo o dia e o liberta durante toda a noite. Vivo, nos meses de Verão, numa autêntica sauna, com temperaturas médias diárias de cerca de 29 graus (na fotografia a temperatura neste momento, às 11:20 horas...), onde até o chão está quente e nem sequer posso abrir janelas e levantar persianas. O pior é que não consigo encontrar antídotos para este inferno que, lentamente, nos vai cozendo o cérebro e as células. Não sei o que fazer, apenas sair daqui e viver num local fresco e à sombra.

29 julho 2025

modas e resistências

É crescente o número de pessoas à minha volta que, ao trocarem de automóvel, têm optado por comprar veículos eléctricos. Numa tendência generalizada e até célere, temos vindo a assistir à substituição da combustão a energias fósseis por energias ditas menos poluentes e menos agressivas para o planeta (greenwashing?). Eu nada tenho contra, apoio essa alteração de paradigma e gostaria de poder contribuir mais para ela, mas no que diz respeito aos automóveis, e pelo que tenho percebido das experiências daqueles que me rodeiam, a coisa não é bem como a pintam, o que só vem reforçar a minha percepção de que esta nova tecnologia (electrificação) não será a definitiva. Vários sintomas contribuem para esta percepção:
- É uma tecnologia cara, muito cara, o que impede a sua socialização, massificação ou democratização;
- As autonomias são uma anedota, impedindo viagens que ultrapassem os limites das grandes cidades;
- Veículos com autonomias interessantes são, de caros, inacessíveis;
- Na estrada permanente e obsessiva atenção com o consumo a cada momento (hi-fi, bluetooth, música, telefone, ar condicionado, velocidade, etc., etc., condicionam fortemente a duração das baterias;
- Rede de abastecimento pública inexistente em parte do território do país e muito reduzida em muitas zonas urbanas, o que significará ausência de investimento (certeza e projecto) nesta tecnologia;
- Durabilidade das baterias eléctricas - prazos de validade (garantia) curtos, obrigando a cada 6, 7, 8 anos, nalguns casos nem tanto, à sua substituição, significando um investimento acrescido (quase o preço de um automóvel), ou então à troca de automóvel com essa periodicidade;
- Muitas marcas de fabricantes automóveis estão já a rever a sua estratégia de produção e comercialização, e algumas marcas que tinham apostado tudo ou quase na electrificação, estão a regressar à produção de motores a combustão;
Curiosa é também a atitude de muitos daqueles que fizeram esta escolha e que apesar de terem alterado substancialmente o seu comportamento (planeamento, duração, disponibilidade, paciência), não reconhecem as fragilidades desta tecnologia e, antes, adaptam o seu discurso às exigências da própria tecnologia, ou seja, reorganizam a sua vida em função das necessidades do seu automóvel. São poucos, mas conheço quem tenha feito esta opção e, rapidamente, se tenha apercebido do passo em falso e da pouca aplicabilidade e razoabilidade desta opção, tendo regressado, ainda que com perdas significativas de dinheiro, aos motores a combustão.
Portanto, e sem querer ser um velho do Restelo, não estou disponível para esta nova realidade. Não faz ainda sentido para mim. A não ser que seja imposta ou evolua significativamente, irei aguardar e, no entretanto, se tiver que trocar de veículo, algo que mais cedo que tarde vai acontecer, irei permanecer no diesel ou na gasolina.

remanso e leituras

Nesta altura aproveito sempre para organizar o meu acervo pessoal (poderia já chamar-lhe biblioteca, mas não quero parecer, ou ser, pretensioso). Já desde o mês de Abril que os livros chegavam e ficavam numa pilha à espera de serem "incluídos" e, por isso, nestes dias tenho estado a tratar disso. O primeiro passo é sempre digitalizar as capas de cada livro e é nesse momento que consigo saber o número de livros que estão à porta, sem entrar... desta vez são cerca de sessenta espécimes, entre Saramagos, Chimamandas, muita Galiza, mais um de Luíz Pacheco e antropologias várias... Mas é também nestes momentos em que volto a olhar, com atenção, para cada um deles, que me apercebo da quantidade crescente de livros que tenho para ler e nem as próximas semanas de remanso permitirão alterar essa situação.

aqui estou

Agora que o ritmo diminui e as obrigações ou compromissos vão desaparecendo da agenda e são substituídos por longos espaços em branco, facto este que tem duas leituras possíveis: a primeira é que estão aí as férias e vão-se ausentando os contactos e a convivência; e a segunda é que estou a entrar naquele período, cíclico, em que perco o chão e fico como que perdido, sem saber muito bem como me comportar ou agir. A ideia de férias é sempre agradável, mas sinto-as como um desconforto e com estúpida ansiedade por regressar ao "tempo normal", aquele em que tenho prazos, compromissos aqui e ali e, não consigo explicar de outra forma, os ponteiros do relógio retomam a sua cadência normal.
Agora, aqui, sentado numa esplanada à beira mar, enquanto o meu adolescente brinca e se diverte com um primo na praia, reflicto sobre tudo isto e, sem conseguir chegar a uma conclusão ou definição da anormalidade que a minha atitude é ou representa, sei, com toda a certeza, que gosto de sombra, de vento, de frescura e de estar à beira mar, tanto de Verão como de Inverno, mas ao mesmo tempo não me sai da cabeça tudo aquilo que tenho e quero ler, tudo o que tenho e quero escrever. Sem o estar a fazer, aqui estou.

23 julho 2025

ao espelho

agradecendo à Cristina...



Apresentação Livro,
IX Congresso da Associação Portuguesa de Antropologia
Viana do Castelo, 16 de Julho de 2025

por Cristina Sá Valentim


Neste livro, o Luís realiza uma etnografia dos processos de nomeação coletiva que têm lugar no nordeste de Portugal, em Trás-os-Montes. Estes processos referem-se a nomes atribuídos a pessoas e que localmente são reconhecidos, de forma consensual ou não, pela comunidade que os atribuiu ou recebeu. Por exemplo, as alcunhas são a tipologia mais conhecida de nomeadas coletivas.
Apesar de serem processos não específicos do território transmontano, adquirem nesta região, segundo o autor, a dimensão de um “particularismo cultural”, ou seja, e cito, “uma manifestação que apesar de não ser exclusiva da região, adquire aí contornos específicos e diferenciadores.” Foi partindo desta hipótese que o Luís fez um levantamento exaustivo e uma reflexão cuidada sobre as tipologias mais representativas das nomeadas coletivas, averiguando onde e como se desenvolvem, e quem as mobiliza e para quê. Recorre à antropologia cultural e social para entender a complexidade dos processos de identidade, de nomeação e de alteridade, como também aos estudos de memória e aos estudos críticos do património.
O Luís partiu para o terreno para tentar responder a várias questões que elenca na página 17 do seu livro. São mesmo muitas questões, e eu vou sintetizar a questão central que o livro me coloca. E que é:
Até que ponto a atribuição de nomeadas coletivas pode ser um ato diferenciador, isto é, uma prática que, inserida em relações de poder desiguais, cria fronteiras para incluir e excluir indivíduos de fazer parte de um coletivo, e assim regula sociabilidades e sociedades. Ao mesmo tempo, de que formas a atribuição e manutenção de nomes coletivos implica a produção de discursos de identidade e de conhecimento distintivos de uma comunidade, e que são transmitidos pela oralidade ao longo de gerações. Por fim, como essa prática social integra processos de memorização coletiva de um património cultural em constante resignificação e reconfiguração.
O Luís mapeia, descreve, interpreta e problematiza tudo isto com muita competência, generosidade e criatividade, como deve ser em Antropologia.
Depois de introduzir o leitor na temática das nomeadas coletivas, o Luís apresenta o enquadramento teórico que mobiliza para a sua reflexão, apresentando alguns conceitos que foram úteis para entender as nomeadas coletivas, entre os quais Cultura, Património, Nomes (ou o processo da Nomeação), a Memória, a Metáfora e a Metonímia, e a Tradução Cultural.
A seguir, através de uma descrição e interpretação etnográfica, ficamos a conhecer os processos de atribuição de nomes a terras, a pessoas, a grupos, a lugares, a pessoas naturais de certas localidades – por exemplo, não sabia que “os de Mirandela” são chamados de “repolhos”; mas sei que os de Mirandela chamam “peleiros” aos de Carção e “narros” aos de Bragança. Também há nomes atribuídos a animais domésticos e de trabalho, e até a objetos e a dias da semana, do mês e do ano.
O livro do Luís diz-nos que nada disto é aleatório. Como o Luís argumenta, tudo isto tem um sentido porque não é mais do que a manifestação da dimensão relacional e processual, e não essencialista, que define as identidades pessoais, coletivas, culturais e sociais. Isto é, as nomeadas coletivas fazem parte do processo da individuação que nos forma enquanto pessoas situadas no mundo. É o que o psicólogo e filósofo norte-americado George Herbert Mead (1934) nos lembra desde a década de 30 através dos seus trabalhos sobre o comportamento social: que as pessoas vão criando e validando o sentido de si (o self) através da interação com “outros significativos” e com o “outro generalizado”, no sentido da sociedade onde estão inseridos. Como também os sujeitos vão definindo as suas pertenças identitárias a grupos através da criação de fronteiras simbólicas mediante lógicas de recriação e manutenção de identidades sociais, vistas por oposição e em dualismos de puro/impuro, limpo/sujo, ordem/desordem, de modo a recriarem o seu lugar no mundo. Ou seja, eu diria que as nomeadas coletivas são uma prática política.

"ninguém nasceu para ser servil e morrer"

Num destes dias e nas voltas pelas estradas e ruas da urbe, enquanto levava ou trazia alguém, ouvia na Antena 3 a inconfundível voz de Anibal Luxúria Canibal, dos Mão Morta, a cantar repetidamente o refrão de uma das suas mais recentes canções - "Viva La Muerte", com uma tal intensidade e cadência que fiquei eu próprio a cantá-la e, depois, a reflectir sobre o seu alcance e relevância. Sem querer aprofundar ou complexificar muito a questão, não posso deixar de afirmar aqui a minha visceral concordância com essa afirmação cantada em forma de slogan dos direitos humanos. A afirmação simples, é uma ontologia da nossa condição. De facto, há muito que a humanidade foi convencida que o trabalho, que trabalhar a soldo, dignifica a condição humana e que não cumpriremos o nosso devir se assim não nos comportarmos e existirmos, ainda que detestemos aquilo que nos couber. Uma falácia absoluta mas plenamente (universalmente) conseguida, pois vivemos acreditando que ser "servil" é um desígnio ou mesmo um determinismo para a nossa existência. Tenho certo que o trabalho, tal como o capitalismo o transformou e re-significou, não dignifica nada nem ninguém. Dignidade será sempre o respeito pela vida de cada um, sem humilhação, sem exploração e sem liberdade, que é, precisamente, aquilo que o trabalho a soldo foi, é e será.

21 julho 2025

agora sim, o fim

Afinal, saiu mais um número do Jornal de Letras (nº 1429), atrasado e, este sim, mais do que certo, o último. Partilho aqui parte do editorial de José Carlos de Vasconcelos, seu director desde o primeiro número, onde, mesmo não querendo, admite o seu fim e as razões que o trouxeram até aqui.

ler da, ainda, Primavera


Ainda que já na esta estação seguinte, saiu a LER. Irá comigo de férias em Agosto e far-me-á companhia nas sombras possíveis.

17 julho 2025

jornal de letras

Era sabida a dificuldade em que a publicação sobrevivia, mas ainda assim manteve a sua periodicidade sem interrupções. Foram vários os avisos do seu director e de alguns dos seus colaboradores de que o fim estaria próximo. Pois bem, pelos vistos confirma-se, o Jornal de Letras acabou. Há muitos anos que comprava, lia e guardava as edições todas e foi com pena que, ao ir procurar a nova edição (a nº 1429, a partir de 9 de Julho), me foi dito que já não iria sair. Foi, durante muito tempo, o único jornal em papel que eu comprei. Lamento muito, até porque o vazio que deixa não será facilmente recuperado.


(capa do último número nas bancas...)

10 julho 2025

sempre mais escola

Não poderia estar mais de acordo com a afirmação que titula estas palavras. É de uma clareza e firmeza programática que só a posso subscrever, enaltecer, agradecer e ambicionar. Esta afirmação é título de uma crónica de Valter Hugo Mãe no Jornal de Letras e porque é um texto bonito, sentido, mas também responsável e ideológico, não resisto a partilhar os sublinhados que nele fiz...

"A pergunta de saber o que fazer à escola devia ser colocada a todas as pessoas e respondida como se responde à própria vida. Cuidar da escola é cuidar de sermos ainda humanos. [...] Levamos décadas de governos que perigam a imagem do professor. [...] O que me incomoda é o inquinado de se atacar a classe educadora para se criar nas famílias a convicção de que apenas pagando a especulação poderão potenciaríamos nos filhos um futuro capaz. Incomoda-me que se especule com a mais elementar máquina de justiça da sociedade que é a formação intelectual e ética de cada pessoa. Não entender que toda e qualquer vulnerabilização dos professores é um boicote ao futuro dos alunos é ser-se de uma planura de ideias insuportável. O desprestígio da classe dos professores acarreta a desgraça das crianças e dos jovens. [...] São os alunos que deitamos a perder se destruirmos a docência e a solenidade da docência. [...] Não pode haver lógica na predação aos professores, senão a de criar massas humanas sem noção crítica e facilmente manipuláveis. Sem livros não há resistência à tirania. A falta de conhecimento é o dado fundamental da fragilidade social. [...] Povos fortes e longevos são povos de cultura, memória, conhecimento, sabedoria. [...] Não creio que um génio dê no Mundo sem uma nutrição profunda. Sem mestres e seriedade. [...] A escola prestigiada é o mesmo que uma sociedade prestigiada, é o mesmo que a decência. A verdadeira decência com quem somos e com quem virá a ser."
(Valter Hugo Mãe, in Jornal de Letras nº 1428, Junho 2025)

violação de privacidade

Depois de vários meses a adiar o momento, hoje foi dia de ir à procura de óculos e lentes novas. Depois de visitar uma outra óptica, entrei numa outra localizada no centro da cidade do Porto. Tirei senha e, depois de cerca de 10 minutos à espera, ouço chamarem pelo número da minha senha. Sou convidado a sentar-me, explico o que preciso, mostro a prescrição do oftalmologista e a menina, simpática, começa a trazer-me armações para experimentar e escolher. Terei experimentado dez a doze armações e, no fim, fiquei com quatro para escolher entre elas, mas logo referi que iria esperar pela chegada da minha mulher para saber da opinião dela.
Pois bem, quando chegou, comecei a colocar no rosto cada uma dessas quatro armações e, para meu espanto e até espanto da minha mulher, logo uma mulher que estava a ser atendida num outro balcão, se aproximou e começou a opinar sobre cada uma das armações que eu ia colocando. Mas num tom e com uma acertividade que mais parecia ser ela a minha mulher. Opinou, opinou, opinou e deu o seu veredicto final, para logo depois desaparecer, não sem antes comentar... "enfim, mas você é que sabe!", como quem diz, eu, que tenho extremo bom gosto, já decidi o que deve comprar, agora você faça o que entender, mas depois não se queixe.
A sério?!... Na troca de olhares com a minha mulher, pude manifestar a minha estupefacção por aquela inusitada intromissão.