"Comprei uma data de livros do Torga, que é um tipo que eu, antigamente, não almoçava para comprar e mandei o Paulocas* ler todos. Nem sequer os abriu. No quarto já não tenho espaço. Não posso ter uma biblioteca no guarda-fato ou numa daquelas arcas ou baús que levam muita coisa, como a do Pessoa. Ou se tem uma biblioteca, em estantes, lombadas bem visíveis ou não se tem. Assim, metidos na arca é uma maçada. Às vezes quero um livro para consultar qualquer coisa e está sempre no fundo da arca, de maneira que quando encontro o raio do livro, já estou tão chateado que já não quero ver nada [...]. A minha biblioteca muda todos os dias: todos os dias vendo, todos os dias compro. Vendo Camilo, compro coboiada. Vocês pensam que leio tudo, que vou a todo o lado? É falso! Não faço vida de Lisboa. Hiberno, faço como o morcego. No Verão, nestes dois meses, vou até à Caparica apanhar um bocado de ar, escrevo um bocado à máquina, porque tenho a janela aberta e não vem frio da rua. Como posso escrever à máquina a abanar-me, a aquecer-me? [...] No Verão passado, cheguei a ter de dia e de noite a ventoinha ligada, a um metro do meu nariz." Luiz Pacheco, "O Uivo do Coiote" (1996)
In "O Prato do Diabo - um Dicionário Pachecal", org. João Pedro George, Língua Morta, 2025, página 45 e 46.
* Paulocas é um dos oito filhos de Luiz Pacheco.
Sem comentários:
Enviar um comentário