Não é novidade, nem surpresa. É algo sabido, previsível e até expectável, mas resulta sempre em algo novo, singular e peculiar.Vir a uma repartição pública, em especial à Segurança Social, logo pela manhã é uma experiência pela qual todo o cidadão deveria ser obrigado a passar. Eu, nestes meses entre Dezembro e Fevereiro, conto já cinco visitas e em todas elas fui obrigado a esperar mais de duas horas para ser atendido (hoje já estou à espera há cerca de uma hora e meia e ainda tenho 22 pessoas à minha frente), mas eu sou paciente e consigo, de alguma forma, transformar em útil e rentável este tempo "morto". Entre leituras, sublinhados e comentários, pequenas notas e apontamentos, o que mais gosto é estar atento à polifonia, nalguns momentos caótica, que existe sempre, como que uma música de fundo que não nos deixa dormir ou abstrair deste lugar, protagonizada muitas vezes por personagens caricaturais.
Hoje fui arrancado da leitura do jornal diário por uma voz grossa e estranha que, exaltada e proveniente das mesas de atendimento, se fez ouvir em todo o piso. Só pude ver o segurança a dirigir-se ao local e, a partir desse momento, uma discussão de tolos, entre alguém a falar numa língua estranha entremeada com algumas palavras em português e alguém a tentar acalmar a situação. Passados não mais de 10 minutos aparecem na sala de espera dois polícias acompanhados por um indivíduo que, pela aparência, terá proveniência, como agora se diz, no Indostão. Os polícias interrogavam-no, pediam identificação, documentos e ele, evasivo, não apresentava nada, apenas mexia no telemóvel querendo mostrar algo, pelos vistos sem qualquer interesse para a autoridade, que insistia em pedir-lhe identificação do país de origem (depois acabou por dizer que era indiano), e o papel da residência temporária. Não mostrou nada, nem houve sequer uma comunicação mínima entre eles. Os polícias, já fartos, pediram-lhe para os acompanhar para a rua e levaram-no não sei para onde.
Conto este episódio, porque este incidente foi motivo, de imediato, para uma intensa e animada discussão, em voz alta, entre alguns dos mais de quarenta utentes que, tal como eu, aguardavam na sala de espera a sua vez. Infelizmente, não registei a conversa e apenas me esforcei por reter aquilo que mais gostei.
Senhora A (meia-idade, diria eu com sessenta e poucos anos, que passou o tempo para trás e para a frente, a fazer e a receber chamadas, muito ocupada, com certeza):
"- isto é uma pouca-vergonha! Vem esta gente de fora e chegam cá e têm tudo. Trabalho, casa, dinheiro, subsídios... e depois ninguém os consegue tirar de cá!"
[ fez-se silêncio na sala, algumas pessoas acenaram positivamente com a cabeça, outras assobiaram para o lado e eu, eu hesitei em pegar ou no telemóvel, ou no caderno, mas este dava muito nas vistas e com o telemóvel, seria só mais um... comecei a escrever estas linhas ]
Senhora A:
"- e digo-lhe mais (já a dirigir-se para uma outra senhora que lhe tinha dado atenção com a expressão corporal), dão tudo a essa gente que vem de fora, muitos deles nem querem trabalhar, e nós, e os nossos, não temos direito a nada."
[ mais silêncio e mais concordância ]
Senhora A:
"- Mas eu não tenho nada contra pessoas que venham para cá, coitados, para viver melhor, mas olhe... eu, se depender de mim, voto no Chega e no André Ventura que, vocês vão ver, manda logo esta escumalha para a sua terra. Acaba logo com esta pouca-vergonha."
[ aqui o silêncio incómodo transformou-se numa indignada e caótica altercação entre diferentes perspectivas sobre o assunto, com algumas vozes femininas e de travo exótico a insurgirem-se perante tais afirmações ]
Senhora B (jovem, negra, pelo timbre de origem africana, atrás de mim):
"- que conversa é essa?! Mas quem é que me manda embora?! Isto é seu? Isto é tanto seu como meu. Deixa de conversa!"
Senhora C (quase idosa, pelas vestes, cigana, que foi anuindo ao que a senhora A foi dizendo):
"- andam sempre atrás de nós, temos de andar sempre a correr para aqui e para ali, para conseguirmos aquilo que temos direito. Depois, chegam estes e não respeitam ninguém..."
Senhora D (jovem, negra, também de origem africana, que se levanta porque foi chamada, e ao passar pela senhora A, atira):
"- tu és muito inteligente caramba. Nunca vi ninguém como tu. Parabéns! Tem vergonha!..."
Senhor E (meia-idade, ou melhor, idade de reforma ou pré-reforma, baixa estatura, bigodaço russo, talvez pelo excesso do cigarro, e cara carcomida pelos consumos e pela vida, casaco de cabedal, brinco na orelha, cabelo raro escovado e molhado para trás - "cabelo à foda-se", portanto - que levantando-se e aproximando-se da senhora A, comenta):
"- não vale a pena... não são os portugueses, ou os chineses, ou os indianos, são alguns indianos, ou alguns chineses, ou alguns portugueses. A senhora não pode falar assim. Deixe lá essa merda."
[ enquanto estas falas aconteciam, várias outras pessoas entabularam conversas paralelas, o que fez vir o segurança espreitar e, sorrindo, pedir calma. Mas ninguém lhe ligou patavina e continuaram alegremente a desdizer-se, até que uma voz feminina, tranquila e com sabor do Brasil, sentada ao meu lado, disse: ]
"- Calma minha gente. Até Jesus emigrou!"
[ olhei de lado para ela e registei logo a frase, pois percebi de imediato o seu potencial para terminar este instante urbano ]
Post-Scriptum: são 11:15 horas, estou à espera há mais de duas horas para ser atendido e ainda tenho 10 pessoas à minha frente. Paciente e satisfeito pelo proveito da manhã, aguardarei a minha vez.