A tragédia de ontem em Lisboa, com o elevador da Glória, é daqueles episódios ou acontecimentos que, apesar de imprevisíveis, poderiam muito bem ser evitados. Neste dia seguinte, numa atitude bem portuguesa, reflectida na expressão popular que titula este texto, o Presidente da Câmara Municipal, Carlos Moedas, por "prevenção", mandou suspender as operações nos demais elevadores e equipamentos similares da cidade. Claro que ainda muito ruído vai haver, muito se vai dizer e escrever sobre o sucedido, sobre culpas e culpados, mas teremos sempre que esperar pelo fim das investigações para, esperamos e desejamos, haver responsabilização e responsáveis. No entretanto, e porque é algo que, empiricamente, qualquer transeunte, morador, visitante ou turista, pode verificar ao deambular pela cidade de Lisboa, este acidente foi uma consequência dramática daquilo que é a voragem centrífuga do turismo, ou seja, os espaços públicos, as normas e regulamentos municipais, os patrimónios e os transportes públicos, estão cativados pelas dinâmicas e lógicas do turismo. A hegemónica turistificação da cidade obrigou a uma dedicação exclusiva de estruturas e infra-estruturas, uma exigência que testa a capacidade de recursos, equipamentos e de pessoal. Se houve ou não falta de manutenção, se houve ou não negligência técnica, ou mesmo humana, esta tragédia é grave demais para não haver culpados e responsáveis. Que, definitivamente, este horror sirva para memória futura.
Apurriar
---------"Viajar, ou mesmo viver, sem tirar notas é uma irresponsabilidade..." Franz Kafka (1911)--------- Ouvir, ler e escrever. Falar, contar e descrever. O prazer de viver. Assim partilho minha visão do mundo. [blogue escrito, propositadamente, sem abrigo e contra, declaradamente, o novo Acordo Ortográfico]
04 setembro 2025
03 setembro 2025
diferença
A mais que aparente fragilidade de uma folha de papel em branco supera-se quando nela inscrevemos qualquer diferença, uma ambição ou desejo que seja, para o tempo que há-de vir. Registemos então.
29 agosto 2025
espantado
Quando nos preparamos para regressar à Invicta e a casa, é tempo de reunir (adquirir) o que de novidade local/regional se encontra em escaparate. Aproveito uma ida a Vila Boa, para dar um salto a Vinhais, à Vila e ao seu Posto de Turismo, em busca das últimas edições da Câmara Municipal e de outras publicações sobre a região. Em todo o concelho de Vinhais não existe uma única livraria e, por isso, apenas neste Posto de Turismo ou no Centro Cultural é possível, ainda que à míngua, encontrar algo...
Entrei no Posto de Turismo, por volta das 15 horas, vazio e apenas as duas funcionárias, caras que de longe recordo e reconheço, que com simpatia e atenção me atendem. Digo-lhes ao que vou e sou logo direccionado por uma delas para as estantes onde se encontro todos os livros disponíveis. Aí chegados, essa mesma funcionária, sem aviso prévio ou sem que eu estivesse à espera, pergunta-me: - Então como está a correr o seu podcast? Surpreso e sem saber como lhe responder, agradeci e disse-lhe que sim, estava a correr bem. Mas também reconheci a surpresa da abordagem, pois na verdade não faço a mais mínima ideia do alcance e abrangência desta minha iniciativa.
Escolhi os livros que quis, paguei e despedi-me, agradecendo as suas atenções. Na volta, a mesma funcionária ainda me disse: - Boa sorte para o seu podcast.
25 agosto 2025
recorrência: livros e espaço
"Comprei uma data de livros do Torga, que é um tipo que eu, antigamente, não almoçava para comprar e mandei o Paulocas* ler todos. Nem sequer os abriu. No quarto já não tenho espaço. Não posso ter uma biblioteca no guarda-fato ou numa daquelas arcas ou baús que levam muita coisa, como a do Pessoa. Ou se tem uma biblioteca, em estantes, lombadas bem visíveis ou não se tem. Assim, metidos na arca é uma maçada. Às vezes quero um livro para consultar qualquer coisa e está sempre no fundo da arca, de maneira que quando encontro o raio do livro, já estou tão chateado que já não quero ver nada [...]. A minha biblioteca muda todos os dias: todos os dias vendo, todos os dias compro. Vendo Camilo, compro coboiada. Vocês pensam que leio tudo, que vou a todo o lado? É falso! Não faço vida de Lisboa. Hiberno, faço como o morcego. No Verão, nestes dois meses, vou até à Caparica apanhar um bocado de ar, escrevo um bocado à máquina, porque tenho a janela aberta e não vem frio da rua. Como posso escrever à máquina a abanar-me, a aquecer-me? [...] No Verão passado, cheguei a ter de dia e de noite a ventoinha ligada, a um metro do meu nariz." Luiz Pacheco, "O Uivo do Coiote" (1996)
In "O Prato do Diabo - um Dicionário Pachecal", org. João Pedro George, Língua Morta, 2025, página 45 e 46.
* Paulocas é um dos oito filhos de Luiz Pacheco.
anacronismos
Um destes dias participei, como convidado, numa boda peculiar. A sensação foi ter viajado no tempo e ter regressado a um pretérito conhecido. Num pequeno povo da Sanábria, fim de tarde, encontro marcado na casa da família. Grupo de vinte a trinta convidados, caminhámos com os noivos até pequena capela num ermo afastado da povoação, onde nos aguardava à porta o sacerdote. Cerimónia religiosa simples e rápida. Descontraídos e depois de esperarmos que o padre fechasse a capela e nos acompanhasse, regressámos à mesma casa... durante este percurso, os noivos que seguiam na frente foram brindados e felicitados pelos habitantes daquela pequena localidade. O copo de água foi servido na rua, numa espécie de cortinha abrigada, anexa à casa. Ementa farta e variada, confeccionada por mãos amigas. Ambiente tranquilo, acolhedor e muito bem disposto, acompanhado por momentos musicais que alguns dos convivas foram protagonizando e que se estenderam pela noite dentro. Vim de lá, altas horas da noite, feliz e com a sensação de ter vivenciado um momento único, replecto de anacronismos difíceis de encontrar em pleno século XXI.
08 agosto 2025
preparativos
É sempre com alguma ansiedade e considerável expectativa que organizo a minha "tralha" e me preparo para sair de casa durante períodos longos, como acontece quase sempre no mês de Agosto. Pelo menos três semanas sem vir a casa é tempo considerável e, por isso, tenho sempre que me precaver para não vir a sentir falta de alguma coisa importante. Entre praia e campo ou montanha, as próximas semanas servirão, espero eu, para apenas viver e, sem qualquer constrangimento, fazer aquilo que bem me apetecer. Os bens essenciais estão já acondicionados e a selecção de leituras que pretendo realizar está quase fechada. Nas imagens, aquilo que vou levar comigo para ler, faltando um ou outro item que irei ainda adquirir, aproveitando um pedido da minha filha: "- Pai, preciso que vás à FNAC comprar-me três livros..." Claro, como bom pai que sou, irei com todo o gosto e aproveitarei para saciar também lacunas de última hora. Enfim, resta dizer que a ansiedade e expectativa que inicialmente referi resultarão, com grande probabilidade, em relativa frustração, mas não faz mal. Boas férias.
03 agosto 2025
acontece
"Há um ritual airaniano de escrita?
Não diria que se trata de um ritual. Em todo o caso, é um ritual negativo, que consiste numa resistência quase invencível a começar a escrever todos os dias. Não sou só eu, porque ouvi Manuel Puig dizer que, ao sentar-se à secretária, com a obrigação vocacional e profissional de escrever, começava a organizar papéis, consultar a agenda, afiar o lápis, qualquer tarefa inventada para adiar o momento de escrever. Acontece ao outros, a mim também, mas pior. Posso passar o dia inteiro a hesitar. Depois, uma vez ultrapassado o limiar, tudo é fácil. O difícil foi antes, no vazio. Não é fácil compreender, já que escrever é o que mais gosto no mundo. [...] O curioso é que essa resistência é tanto mais forte quanto mais claro tenho o que quero escrever, quando sei o que vou pôr e as frases já estão a formar-se na minha cabeça... Nesses casos, torna-se mais difícil do que nunca começar, sinto-me inútil, a escrita material torna-se redundante porque o mental é igualmente real. [...]
Quanto aos cafés... têm uma função nessas neuroses divertidas. Se vou a um, com o meu caderno e a caneta, inevitavelmente faço alguma coisa. E eles servem mais do que o isolamento e o hábito. [...] A minha biografia como escritor poderia ser resumida num lento e seguro processo de correcções. Quando era jovem, aparentemente tinha total confiança no meu talento, escrevia depressa e deixava tudo como estava. Depois comecei a duvidar, a corrigir e a corrigir novamente o que tinha corrigido. Agora passei para um estágio superior, já não me basta corrigir: reescrevo. [...]
A leitura tem sido a minha actividade mais constante. Poderia ter sio a única, se eu nunca tivesse resistido ao prazer de escrever. [...] São esse tipo de escritores que, quando os leio, sinto que estou a escrever."
César Aira, escritor argentino, em entrevista a Isabel Lucas, in Ipsilon, Jornal Público, 1 Agosto 2025.
31 julho 2025
autêntico inferno
Vivo nesta casa há quase vinte anos e em cada Verão o desespero é o mesmo, calor, muito calor. Vivo num segundo e último andar de um prédio com apenas seis habitações, sem varandas e com uma exposição solar tremenda. Acresce que, por ser o último andar, temos por cima uma cobertura de telas, alcatrão e cascalho que acumula calor durante todo o dia e o liberta durante toda a noite. Vivo, nos meses de Verão, numa autêntica sauna, com temperaturas médias diárias de cerca de 29 graus (na fotografia a temperatura neste momento, às 11:20 horas...), onde até o chão está quente e nem sequer posso abrir janelas e levantar persianas. O pior é que não consigo encontrar antídotos para este inferno que, lentamente, nos vai cozendo o cérebro e as células. Não sei o que fazer, apenas sair daqui e viver num local fresco e à sombra.
29 julho 2025
modas e resistências
É crescente o número de pessoas à minha volta que, ao trocarem de automóvel, têm optado por comprar veículos eléctricos. Numa tendência generalizada e até célere, temos vindo a assistir à substituição da combustão a energias fósseis por energias ditas menos poluentes e menos agressivas para o planeta (greenwashing?). Eu nada tenho contra, apoio essa alteração de paradigma e gostaria de poder contribuir mais para ela, mas no que diz respeito aos automóveis, e pelo que tenho percebido das experiências daqueles que me rodeiam, a coisa não é bem como a pintam, o que só vem reforçar a minha percepção de que esta nova tecnologia (electrificação) não será a definitiva. Vários sintomas contribuem para esta percepção:
- É uma tecnologia cara, muito cara, o que impede a sua socialização, massificação ou democratização;
- As autonomias são uma anedota, impedindo viagens que ultrapassem os limites das grandes cidades;
- Veículos com autonomias interessantes são, de caros, inacessíveis;
- Na estrada permanente e obsessiva atenção com o consumo a cada momento (hi-fi, bluetooth, música, telefone, ar condicionado, velocidade, etc., etc., condicionam fortemente a duração das baterias;
- Rede de abastecimento pública inexistente em parte do território do país e muito reduzida em muitas zonas urbanas, o que significará ausência de investimento (certeza e projecto) nesta tecnologia;
- Durabilidade das baterias eléctricas - prazos de validade (garantia) curtos, obrigando a cada 6, 7, 8 anos, nalguns casos nem tanto, à sua substituição, significando um investimento acrescido (quase o preço de um automóvel), ou então à troca de automóvel com essa periodicidade;
- Muitas marcas de fabricantes automóveis estão já a rever a sua estratégia de produção e comercialização, e algumas marcas que tinham apostado tudo ou quase na electrificação, estão a regressar à produção de motores a combustão;
Curiosa é também a atitude de muitos daqueles que fizeram esta escolha e que apesar de terem alterado substancialmente o seu comportamento (planeamento, duração, disponibilidade, paciência), não reconhecem as fragilidades desta tecnologia e, antes, adaptam o seu discurso às exigências da própria tecnologia, ou seja, reorganizam a sua vida em função das necessidades do seu automóvel. São poucos, mas conheço quem tenha feito esta opção e, rapidamente, se tenha apercebido do passo em falso e da pouca aplicabilidade e razoabilidade desta opção, tendo regressado, ainda que com perdas significativas de dinheiro, aos motores a combustão.
Portanto, e sem querer ser um velho do Restelo, não estou disponível para esta nova realidade. Não faz ainda sentido para mim. A não ser que seja imposta ou evolua significativamente, irei aguardar e, no entretanto, se tiver que trocar de veículo, algo que mais cedo que tarde vai acontecer, irei permanecer no diesel ou na gasolina.
remanso e leituras
Nesta altura aproveito sempre para organizar o meu acervo pessoal (poderia já chamar-lhe biblioteca, mas não quero parecer, ou ser, pretensioso). Já desde o mês de Abril que os livros chegavam e ficavam numa pilha à espera de serem "incluídos" e, por isso, nestes dias tenho estado a tratar disso. O primeiro passo é sempre digitalizar as capas de cada livro e é nesse momento que consigo saber o número de livros que estão à porta, sem entrar... desta vez são cerca de sessenta espécimes, entre Saramagos, Chimamandas, muita Galiza, mais um de Luíz Pacheco e antropologias várias... Mas é também nestes momentos em que volto a olhar, com atenção, para cada um deles, que me apercebo da quantidade crescente de livros que tenho para ler e nem as próximas semanas de remanso permitirão alterar essa situação.
aqui estou
Agora que o ritmo diminui e as obrigações ou compromissos vão desaparecendo da agenda e são substituídos por longos espaços em branco, facto este que tem duas leituras possíveis: a primeira é que estão aí as férias e vão-se ausentando os contactos e a convivência; e a segunda é que estou a entrar naquele período, cíclico, em que perco o chão e fico como que perdido, sem saber muito bem como me comportar ou agir. A ideia de férias é sempre agradável, mas sinto-as como um desconforto e com estúpida ansiedade por regressar ao "tempo normal", aquele em que tenho prazos, compromissos aqui e ali e, não consigo explicar de outra forma, os ponteiros do relógio retomam a sua cadência normal.
Agora, aqui, sentado numa esplanada à beira mar, enquanto o meu adolescente brinca e se diverte com um primo na praia, reflicto sobre tudo isto e, sem conseguir chegar a uma conclusão ou definição da anormalidade que a minha atitude é ou representa, sei, com toda a certeza, que gosto de sombra, de vento, de frescura e de estar à beira mar, tanto de Verão como de Inverno, mas ao mesmo tempo não me sai da cabeça tudo aquilo que tenho e quero ler, tudo o que tenho e quero escrever. Sem o estar a fazer, aqui estou.
23 julho 2025
ao espelho
agradecendo à Cristina...
Apresentação Livro,
IX Congresso da Associação Portuguesa de Antropologia
Viana do Castelo, 16 de Julho de 2025
por Cristina Sá Valentim
Neste livro, o Luís realiza uma etnografia dos processos de nomeação coletiva que têm lugar no nordeste de Portugal, em Trás-os-Montes. Estes processos referem-se a nomes atribuídos a pessoas e que localmente são reconhecidos, de forma consensual ou não, pela comunidade que os atribuiu ou recebeu. Por exemplo, as alcunhas são a tipologia mais conhecida de nomeadas coletivas.
Apesar de serem processos não específicos do território transmontano, adquirem nesta região, segundo o autor, a dimensão de um “particularismo cultural”, ou seja, e cito, “uma manifestação que apesar de não ser exclusiva da região, adquire aí contornos específicos e diferenciadores.” Foi partindo desta hipótese que o Luís fez um levantamento exaustivo e uma reflexão cuidada sobre as tipologias mais representativas das nomeadas coletivas, averiguando onde e como se desenvolvem, e quem as mobiliza e para quê. Recorre à antropologia cultural e social para entender a complexidade dos processos de identidade, de nomeação e de alteridade, como também aos estudos de memória e aos estudos críticos do património.
O Luís partiu para o terreno para tentar responder a várias questões que elenca na página 17 do seu livro. São mesmo muitas questões, e eu vou sintetizar a questão central que o livro me coloca. E que é:
Até que ponto a atribuição de nomeadas coletivas pode ser um ato diferenciador, isto é, uma prática que, inserida em relações de poder desiguais, cria fronteiras para incluir e excluir indivíduos de fazer parte de um coletivo, e assim regula sociabilidades e sociedades. Ao mesmo tempo, de que formas a atribuição e manutenção de nomes coletivos implica a produção de discursos de identidade e de conhecimento distintivos de uma comunidade, e que são transmitidos pela oralidade ao longo de gerações. Por fim, como essa prática social integra processos de memorização coletiva de um património cultural em constante resignificação e reconfiguração.
O Luís mapeia, descreve, interpreta e problematiza tudo isto com muita competência, generosidade e criatividade, como deve ser em Antropologia.
Depois de introduzir o leitor na temática das nomeadas coletivas, o Luís apresenta o enquadramento teórico que mobiliza para a sua reflexão, apresentando alguns conceitos que foram úteis para entender as nomeadas coletivas, entre os quais Cultura, Património, Nomes (ou o processo da Nomeação), a Memória, a Metáfora e a Metonímia, e a Tradução Cultural.
A seguir, através de uma descrição e interpretação etnográfica, ficamos a conhecer os processos de atribuição de nomes a terras, a pessoas, a grupos, a lugares, a pessoas naturais de certas localidades – por exemplo, não sabia que “os de Mirandela” são chamados de “repolhos”; mas sei que os de Mirandela chamam “peleiros” aos de Carção e “narros” aos de Bragança. Também há nomes atribuídos a animais domésticos e de trabalho, e até a objetos e a dias da semana, do mês e do ano.
O livro do Luís diz-nos que nada disto é aleatório. Como o Luís argumenta, tudo isto tem um sentido porque não é mais do que a manifestação da dimensão relacional e processual, e não essencialista, que define as identidades pessoais, coletivas, culturais e sociais. Isto é, as nomeadas coletivas fazem parte do processo da individuação que nos forma enquanto pessoas situadas no mundo. É o que o psicólogo e filósofo norte-americado George Herbert Mead (1934) nos lembra desde a década de 30 através dos seus trabalhos sobre o comportamento social: que as pessoas vão criando e validando o sentido de si (o self) através da interação com “outros significativos” e com o “outro generalizado”, no sentido da sociedade onde estão inseridos. Como também os sujeitos vão definindo as suas pertenças identitárias a grupos através da criação de fronteiras simbólicas mediante lógicas de recriação e manutenção de identidades sociais, vistas por oposição e em dualismos de puro/impuro, limpo/sujo, ordem/desordem, de modo a recriarem o seu lugar no mundo. Ou seja, eu diria que as nomeadas coletivas são uma prática política.
"ninguém nasceu para ser servil e morrer"
Num destes dias e nas voltas pelas estradas e ruas da urbe, enquanto levava ou trazia alguém, ouvia na Antena 3 a inconfundível voz de Anibal Luxúria Canibal, dos Mão Morta, a cantar repetidamente o refrão de uma das suas mais recentes canções - "Viva La Muerte", com uma tal intensidade e cadência que fiquei eu próprio a cantá-la e, depois, a reflectir sobre o seu alcance e relevância. Sem querer aprofundar ou complexificar muito a questão, não posso deixar de afirmar aqui a minha visceral concordância com essa afirmação cantada em forma de slogan dos direitos humanos. A afirmação simples, é uma ontologia da nossa condição. De facto, há muito que a humanidade foi convencida que o trabalho, que trabalhar a soldo, dignifica a condição humana e que não cumpriremos o nosso devir se assim não nos comportarmos e existirmos, ainda que detestemos aquilo que nos couber. Uma falácia absoluta mas plenamente (universalmente) conseguida, pois vivemos acreditando que ser "servil" é um desígnio ou mesmo um determinismo para a nossa existência. Tenho certo que o trabalho, tal como o capitalismo o transformou e re-significou, não dignifica nada nem ninguém. Dignidade será sempre o respeito pela vida de cada um, sem humilhação, sem exploração e sem liberdade, que é, precisamente, aquilo que o trabalho a soldo foi, é e será.
21 julho 2025
agora sim, o fim
Afinal, saiu mais um número do Jornal de Letras (nº 1429), atrasado e, este sim, mais do que certo, o último. Partilho aqui parte do editorial de José Carlos de Vasconcelos, seu director desde o primeiro número, onde, mesmo não querendo, admite o seu fim e as razões que o trouxeram até aqui.
ler da, ainda, Primavera
Ainda que já na esta estação seguinte, saiu a LER. Irá comigo de férias em Agosto e far-me-á companhia nas sombras possíveis.
17 julho 2025
jornal de letras
Era sabida a dificuldade em que a publicação sobrevivia, mas ainda assim manteve a sua periodicidade sem interrupções. Foram vários os avisos do seu director e de alguns dos seus colaboradores de que o fim estaria próximo. Pois bem, pelos vistos confirma-se, o Jornal de Letras acabou. Há muitos anos que comprava, lia e guardava as edições todas e foi com pena que, ao ir procurar a nova edição (a nº 1429, a partir de 9 de Julho), me foi dito que já não iria sair. Foi, durante muito tempo, o único jornal em papel que eu comprei. Lamento muito, até porque o vazio que deixa não será facilmente recuperado.
(capa do último número nas bancas...)
10 julho 2025
sempre mais escola
Não poderia estar mais de acordo com a afirmação que titula estas palavras. É de uma clareza e firmeza programática que só a posso subscrever, enaltecer, agradecer e ambicionar. Esta afirmação é título de uma crónica de Valter Hugo Mãe no Jornal de Letras e porque é um texto bonito, sentido, mas também responsável e ideológico, não resisto a partilhar os sublinhados que nele fiz...
"A pergunta de saber o que fazer à escola devia ser colocada a todas as pessoas e respondida como se responde à própria vida. Cuidar da escola é cuidar de sermos ainda humanos. [...] Levamos décadas de governos que perigam a imagem do professor. [...] O que me incomoda é o inquinado de se atacar a classe educadora para se criar nas famílias a convicção de que apenas pagando a especulação poderão potenciaríamos nos filhos um futuro capaz. Incomoda-me que se especule com a mais elementar máquina de justiça da sociedade que é a formação intelectual e ética de cada pessoa. Não entender que toda e qualquer vulnerabilização dos professores é um boicote ao futuro dos alunos é ser-se de uma planura de ideias insuportável. O desprestígio da classe dos professores acarreta a desgraça das crianças e dos jovens. [...] São os alunos que deitamos a perder se destruirmos a docência e a solenidade da docência. [...] Não pode haver lógica na predação aos professores, senão a de criar massas humanas sem noção crítica e facilmente manipuláveis. Sem livros não há resistência à tirania. A falta de conhecimento é o dado fundamental da fragilidade social. [...] Povos fortes e longevos são povos de cultura, memória, conhecimento, sabedoria. [...] Não creio que um génio dê no Mundo sem uma nutrição profunda. Sem mestres e seriedade. [...] A escola prestigiada é o mesmo que uma sociedade prestigiada, é o mesmo que a decência. A verdadeira decência com quem somos e com quem virá a ser."
(Valter Hugo Mãe, in Jornal de Letras nº 1428, Junho 2025)
violação de privacidade
Depois de vários meses a adiar o momento, hoje foi dia de ir à procura de óculos e lentes novas. Depois de visitar uma outra óptica, entrei numa outra localizada no centro da cidade do Porto. Tirei senha e, depois de cerca de 10 minutos à espera, ouço chamarem pelo número da minha senha. Sou convidado a sentar-me, explico o que preciso, mostro a prescrição do oftalmologista e a menina, simpática, começa a trazer-me armações para experimentar e escolher. Terei experimentado dez a doze armações e, no fim, fiquei com quatro para escolher entre elas, mas logo referi que iria esperar pela chegada da minha mulher para saber da opinião dela.
Pois bem, quando chegou, comecei a colocar no rosto cada uma dessas quatro armações e, para meu espanto e até espanto da minha mulher, logo uma mulher que estava a ser atendida num outro balcão, se aproximou e começou a opinar sobre cada uma das armações que eu ia colocando. Mas num tom e com uma acertividade que mais parecia ser ela a minha mulher. Opinou, opinou, opinou e deu o seu veredicto final, para logo depois desaparecer, não sem antes comentar... "enfim, mas você é que sabe!", como quem diz, eu, que tenho extremo bom gosto, já decidi o que deve comprar, agora você faça o que entender, mas depois não se queixe.
A sério?!... Na troca de olhares com a minha mulher, pude manifestar a minha estupefacção por aquela inusitada intromissão.
17 junho 2025
num impulso
Conheci-a há pouco tempo, talvez dois ou três anos, e logo simpatizei com ela. Mulher negra, nascida na Nigéria, feminista e activista, bonita e bem falante, assim é Chimamanda Ngozi Adichie. Pouco ou nada li dela, a não ser uma ou outra entrevista, um ou outro texto e uma conferência TED que não só me prendeu os sentidos, como a passei a partilhar com os meus alunos. Um destes dias, e num impulso mais emotivo do que racional, comprei todos os seus livros disponíveis nas livrarias por onde passei. Agora, o mais difícil, encontrar tempo e espaço para ler tudo isto...
16 junho 2025
depois de Auschwitz, Gaza
Encontrei no suplemento Ípsilon, do jornal Público, da passada sexta-feira, dia 13 de Junho, esta opinião sobre a questão de Gaza. Eu que sou um leigo, mas que abomino o Estado Sionista, encontrei aqui uma opinião esclarecida, eloquente e bem fundamentada. Leiam, se fazem o favor.
05 junho 2025
eufemismo de estado
Leio na imprensa de hoje que Luís Montenegro, recém-eleito Primeiro Ministro, apresentou ontem o novo elenco governativo e, num ambiente de monótona continuidade, uma das principais novidades foi a criação de um ministério para a "reforma do Estado". Muito eu gostava de saber que reforma será essa, mas solenemente desconfio que tudo não passa de um eufemismo, que resulta ou é consequência directa da falta de coragem, leia-se cobardia, do Primeiro Ministro e da coligação que o suporta, para utilizarem o termo "privatização". Isto porque qualquer referência à palavra reforma, para os partidos de direita, só é entendida como uma metonímia, essa figura de estilo em que se utiliza uma determinada palavra em vez de uma outra, aquela que verdadeiramente querem significar. Aguardemos e veremos.
pai presente
Eu não sei o que a História dirá de mim, provavelmente nada. Nem sei se estou interessado nisso, ou se isso é realmente importante. O mais que certo será um desaparecimento anónimo e um completo esquecimento com o passar do tempo, tal como acontece à grande esmagadora maioria dos seres humanos, isto é, só haverá memória enquanto aqueles que nos conheceram não desaparecerem também.
Dito isto, e porque foi motivo de introspecção recente, tenho para mim que tenho sido um pai presente na vida dos meus filhos e tenciono continuar a sê-lo. Se mais não for, eles irão guardar de mim essa memória e, isso sim, é, em consciência, superlativo.
(escrito a 29 de Maio de 2025)
04 junho 2025
29 maio 2025
direito a vaguear
Encontrei esta ideia na "Poucaterra", revista dedicada ao acesso à terra, agroecologia e convivialidade, e que me chamou a atenção numa das últimas visitas à livraria Gato Vadio, na cidade do Porto. De facto, e tal como acontece em países nórdicos, a ideia de consagrarmos na lei o direito a podermos caminhar por todo o lado, seria uma alegre e feliz concretização para a liberdade, o bem-estar e o equilíbrio entre os seres humanos e o território, enquanto casa mãe que nos abriga a todos. Esse direito a podermos caminhar por todo o território, seja em montanha, floresta, monte, planície ou praia, exceptuando terrenos cultivados, traria consigo outras responsabilidades cidadãs, tais como o respeito pelos ecossistemas, não poluir e não estragar ou destruir a biodiversidade existente. Eu participaria activamente nesse esforço de regulamentação legislativa deste direito e votaria em quem o propusesse e defendesse.
27 maio 2025
irritação
Se há coisa que me irrita é a indiferença a que sou, a espaços, votado por quem tem por "obrigação" atender-me em cafés, bares ou esplanadas. Sentar-me e perceber que poucas mesas estão ocupadas, mas que os empregados estão muito atarefados a fazer não sei o quê; entretanto, perceber que à minha volta as mesas vão sendo ocupadas e logo depois, diligentemente, atendidas pelos mesmos empregados, enquanto eu continuo sem merecer essa diligência... é como se não estivesse ali. E o pior é que neste mesmo estabelecimento já não é a primeira, nem sequer a décima vez. Quando assim acontece, como hoje, tenho saído sem dizer nada. Não sei se será hoje, mas um dia destes, hei-de reclamar junto de alguém da gerência. Não é por nada, apenas irritação.
crescendo
Quando completo cinquenta e dois anos de vida, importa-me dizer que me sinto bem. Não conseguindo, nem querendo, escapar ao inevitável processo de envelhecimento biológico, a percepção é de que continuo a crescer. Sem mazelas físicas ou psicológicas, sem dores na estrutura (finalmente, a reumatologista acertou numa droga eficaz), com uma agenda recheada de desafios e tarefas que me aprazem. Sou um privilegiado, de bem com a vida.
(bilhete que recebi dos meus pais. Todos os anos, nesta data, me entregam ou enviam palavras de celebração e todos os anos eu as guardo. Tenho uma colecção delas que guardarei para sempre)
23 maio 2025
13 maio 2025
camionista, eu?
Se me querem ver tranquilo e satisfeito, ponham-me ao volante de um veículo que eu irei até ao fim do mundo. Não há viagem longa que me desagrade. O enorme prazer que é, ainda hoje, fazer-me à estrada e percorrer quilómetros e mais quilómetros, leva-me à seguinte ponderação: terei eu passado ao lado de uma brilhante e feliz vida de camionista?
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