Ao ler o texto de António Pires(AP), publicado por este jornal na semana passada, para além do assombro e do sobressalto, ficamos a conhecer um pouco melhor o cidadão António Pires, ilustre colaborador do Jornal Nordeste. Não que esteja aqui em questão a liberdade de opinião ou o direito a juízo outro. Facto este, aliás, não contemplado por AP no seu pedaço de prosa. O que importa, neste caso, é a atitude manifesta e declaradamente indigna, preconceituosa e homofóbica com que o autor se refere a concidadãos seus.
Por considerar que este assunto, o do direito ao casamento homossexual, é, actualmente e ainda, uma questão socialmente fracturante e que, também por isso, merece uma atenção maior e carece de uma discussão séria e calma, não tinha ainda (até 21 de Outubro) suscitado o meu interesse enquanto activista. Contudo, depois da leitura do pedaço de prosa de AP não posso ficar quedo e mudo. A melhor forma que encontrei para manifestar a minha indignação foi enviar este texto ao Director desta digníssima publicação, solicitando a sua publicação nem que seja em jeito de “direito de resposta”.
Exmo. António Pires de facto fica bem fazer citações (como tal, irei fazer algumas suas), tal como importa saber que não quer ser excluído da comunidade à qual pertence, mas ao escrever da forma que escreve, está a excluir todos(as) aqueles(as) que não partilham dos seus valores de crença, de cidadania e de civilidade. Estranha forma esta de... Depois, ficamos também a saber que para AP esta questão é, tal qual, uma guerra, na qual os homossexuais (maus, vilões, bandidos, depravados, insultuosos da moral e dos bons costumes – pelo menos de AP, enfim, cidadãos de 2ª ou 3ª categoria), são “opositores” dos heterossexuais (essa superior casta de defensores do Ethos e do Pathos nacional - cidadãos bem formados e educados (aos quais AP faz questão em manifestar a sua pertença e fidelidade) para o fim último da espécie humana que é a sua continuidade.
Felizmente hoje os homossexuais não vivem clandestinamente, mas o estigma social, económico e cultural permanece bem vivo e bem presente na sociedade portuguesa e o contributo de AP não passa disso mesmo, de um reforço dessas estigmatizações. Por outro lado e ao contrário do que parece ser o pensamento de AP, todos os princípios consagrados na Constituição da República Portuguesa, incluindo o da diferença, são para levar à letra e para serem respeitados. A sua condição de heterossexual não é mais do que isso, não lhe confere nenhum estatuto de superioridade, autoridade, soberania ou outro, relativamente aos demais e por isso não lhe fica bem o ar altivo com que se afirma como tal, nem tão pouco se percebe a necessidade de tal afirmação (…poderá ser difícil saber o que é ser homossexual ou heterossexual sem entendermos as nossas ideias e a interligação das imagens que representam essas realidades. As identidades são construídas – como este texto, pelos sistemas representacionais, como por exemplo a linguagem).
Também seria importante que AP revisse o conceito de casamento, pois parece haver alguma confusão quanto ao conceito… porque na República dos(as) portugueses(as) o casamento não é mais do que um contrato social. Para além disto, há também e para aqueles(as) que professam uma qualquer religião, melhor dizendo, para aqueles(as) que professam algumas religiões, a possibilidade de assumirem perante a lei da sua igreja essa pretensão. Da leitura da sua prosa surgem, igualmente, dúvidas quanto à representação pretendida, por exemplo quando diz que “os casais propriamente ditos” (…) “casais normais” – conhece outra forma de expressão de casal!?... Talvez casais não propriamente ditos, ou talvez casais propriamente não ditos!?... Talvez casais anormais!?... Casais são aos pares!
Não deveria adjectivar a pretensão dos homossexuais como uma “exigência”, mas sim socorrer-se da ideia do direito à diferença. A imagem demagogicamente apresentada de uma união heterossexual como garantia de procriação e de continuidade da espécie, aliada ao elemento religioso – a dádiva, traz para esta discussão não a naturalidade da origem da vida de cada indivíduo (cientificamente demonstrada e humanamente por demais experimentada), mas sim o princípio prodigioso e dogmático desses momentos primeiros. Depois, a recorrência a personagens míticas ou bíblicas – que nos remetem obrigatoriamente para um mundo fantástico e metafísico ao qual nem todos aderem, só servirá para radicalizar o discurso e extremar posições.
No que à adopção diz respeito, apenas direi o seguinte: Desvirtuar o milenar conceito de família é não perceber que as sociedades evoluem, a ciência evolui, a civilização evolui, logo a família, enquanto instituição social, evolui. Não adianta ficar agarrado àquilo que já não é, porque trata-se de um processo dinâmico, sem data e tempo de origem definidos. Se afirma que a natureza humana dita as suas próprias leis, entenderá como aberração da natureza, por exemplo, os métodos alternativos de procriação, ou de inseminação artificial, ou os métodos de contracepção com que a ciência, e não o prodigioso, nos presenteou… Aquilo que, ao fim e ao cabo, importaria era que este fosse tema de conversa, de reflexão e de discussão, através de uma abordagem séria e positiva (leia-se construtiva), que fosse capaz de se centrar no essencial e desprezasse todo o acessório. Estamos perante uma questão de grande melindre e de grande pertinência social que justifica, sem qualquer dúvida, a existência de legítimas reservas, que são perceptíveis na sociedade portuguesa. Mas isso não pode invalidar, nem prejudicar a reflexão e a discussão.
Curiosa é também a sua perspectiva sexista dos papéis sociais esperados dos géneros feminino e masculino. A sua verdade sobre a intrínseca condição humana remete-o para o desígnio animalesco da maternalidade feminina e do viril cobrimento machista.
Quanto ao demais apresentado nesta prosa parece-me inócuo e sem sentido. Confundem-se alhos com bugalhos sem qualquer nexo ou senso, chegando ao ponto de verbalizar que os seus concidadãos transmontanos vivem num “recatado pudor provinciano”. Peremptoriamente, este texto representa, para mim, uma atitude tremendamente misantropa e irracional, geracionalmente perigosa e anti-pedagógica, religiosamente dogmática e fundamentalista e socialmente injusta e discriminatória.
Este pedaço de prosa parece produto não das Novas, mas das Velhas Oportunidades que povoam, ainda, o consciente e o inconsciente de muitos dos nossos cidadãos. Exmo. António Pires, nada contra a sua opinião, que será tão válida quanto a minha e a de qualquer outro cidadão. No entanto, não posso deixar passar este insulto à dignidade de cidadãos que em nada diferem de si e de mim. Iguais em direitos, deveres e obrigações. A forma homofóbica, eu diria mesmo, provocatória como se dirigiu aos cidadãos homossexuais foi injuriosa ao designá-los por “estranhas parelhas” e “parelhas homossexuais”. Se se dá ao direito de se sentir “profundamente ofendido”, “não o defenda em vão, nem o use apenas em proveito próprio”!...
Por fim, uma palavra para as minhas palavras, naquilo que o meu escrever quer dizer: Retrate-se.
(texto publicado no Jornal Nordeste de Hoje (28 de Outubro de 2008 - consequência do post "Homofobias Transmontanas" de 24 de Outubro de 2008)