A personagem central desta narrativa é alguém que me tem acompanhado nos últimos tempos. Posso até considerar que se trata já de um velho conhecido, de quem não sei o nome, nem sequer alguma vez lhe dirigi uma única palavra. Mas a sua presença é permanente e persistente, o que fará com que nos reconheçamos mutuamente. A qualquer hora do dia, seja manhã, tarde ou princípio da noite, durante a semana ou ao fim-de-semana, lá está ele, ou então está para aparecer. Carregando consigo os anos da idade, uma negligente aparência e uma solitária disponibilidade, característica de quem não tem com quem segredar o tempo, nem com quem partilhar o espaço. Ansioso e disponível para qualquer tipo de contacto, chega à fala com quem quer que seja, preferencialmente, com o sexo feminino, a quem dedica especial atenção no contacto visual. A quem, educadamente, dá preferência e prioridade nos esporádicos momentos de proximidade. Quem connosco partilha estes momentos sabe-o: este homem não perde uma oportunidade de meter conversa com uma senhora - mais ou menos jovem, tanto lhe dá… essa atitude chega a impressionar alguns de nós, que por si nutrem tamanha admiração e inveja. Interessante observação é vê-lo actuar, natural e descontraidamente, sob um qualquer pretexto, a interpelar pedindo um pedaço de jornal ou a pedir licença para se sentar na mesa de quem considera capaz de o aceitar. Por vezes, como não poderia deixar de acontecer, acaba por se expor ao ridículo, como quando tenta abordar algumas raparigas ou senhoras, que pura e simplesmente o desprezam ou o deixam a falar sozinho. Outras vezes podemos vê-lo em atitudes menos próprias, tais como deixar-se adormecer, a limpar olimpicamente os orifícios nasais ou cavidades auriculares, a fazer estranhos ruídos, em suculento palitar de dentes, entre outras. Mas ele lá está, sempre e regressando sempre. Com o mesmo sorriso, com o mesmo jeito e com a mesma vontade. Leitor compulsivo, desloca-se pelos espaços sempre acompanhado por uma qualquer fonte de leitura. E não é daqueles que passeia os livros, isso percebe-se. Ele lê. Reconheço a sua voz, o seu jeito andrajoso de bolsa à bandoleira, o seu olhar caído mas atento, o seu discreto mas bom carro, as suas sandálias devidamente forradas com meias precavendo correntes de ar, o som do seu corta-unhas, utensílio que o acompanha e que, orgulhosamente, exibe e utiliza sem pudor em qualquer circunstância, aproveitando a melhor luz possível. Este é o retrato de alguém que apesar de, por vezes, ser inconveniente faz parte do mobiliário do lugar e, concerteza, de outros. Estranharemos o dia em que não regressar.
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