Nesta data particular em que assinalamos 100 anos sobre o 5 de Outubro de 1910, a República não se deve resumir à contemplação estática do passado, enumerando todas as suas virtudes e/ou todos os seus defeitos. Querendo aqui transpor o domínio da retórica fácil das evocações nostálgicas, poderemos iniciar por questionar:
- O que foi a República?
Já Antero de Quental respondeu, advertindo:
“A República não é somente o direito abstracto e filosófico proclamado com paixão aos ventos do vago céu da história; é o direito económico, fiscal, administrativo, prático e palpável, realizando-se palmo a palmo, visivelmente, experimentalmente, na sociedade de cada dia, na vida de cada hora, no indivíduo como na colectividade, encarnando nos factos e movendo-se como a realidade mais palpitante.”
Terá sido um período de desmando, uma vertigem anómica, uma “anarquia” que Portugal vivenciou durante dezasseis anos, ou pelo contrário, um regime cuja obra se apresenta plena de virtudes, com dirigentes veneráveis, misto de visionários e intelectuais cuja acção teria sido tolhida por ventos adversos… Estas têm sido as posições sustentadas, por um lado, pela historiografia estadonovista, e por outro, pelos hagiógrafos da República.
São ângulos de visão que têm hegemonizado a análise do tempo republicano, colocando, naturalmente, escolhos no caminho a percorrer para a compreensão deste riquíssimo período da história de Portugal.
Compreender até que ponto a actual democracia portuguesa é herdeira legítima de uma fibra republicana, é recuperar uma memória identitária forjada na combustão de um ideário que se foi afirmando até ser poder e quando poder se cumpriu e incumpriu, mas se manteve enquanto corpus ideológico, enquanto património político que atravessa todo o século XX português.
A análise da sociedade portuguesa contém marcas indeléveis desta persistência do pensamento republicano no tecido ideológico da democracia.
Da República recebemos o Estado laico, bandeira liberal contra a confessionalidade da Monarquia Constitucional, que outorgava à igreja católica uma omnipresença visível no quotidiano português. Omnipresente no desempenho de funções administrativas, na ascendência que a hierarquia católica, apostólica e romana tinha sobre o Estado, na autoridade eclesiástica que se fazia sentir com o peso e o treino de séculos.
A laicização da sociedade portuguesa era perspectivada como condição sine qua non para a vitória do progresso, da modernidade, meta alcançável apenas quando o país se conseguisse libertar da atávica influência do clero obscurantista, retrógrado, apegado ao atraso e por ele responsável.
Ao Estado laico assacava-se ainda a responsabilidade da completa transformação que a República perseguia, a metamorfose civilizacional do analfabeto, incapaz de protagonizar uma cidadania republicana, num outro sujeito histórico, capaz de ler o mundo, com novos direitos e deveres a traçarem novas formas de vida social. A concretização desta alquimia cultural e cívica ficaria a cargo da educação, uma educação que se queria massiva, generalizada, mensageira de uma nova sociedade, com um papel central no modus vivendi das diferentes comunidades que compunham o grande fresco da sociedade portuguesa do início do séc. XX.
Há já muito que a propaganda do Partido Republicano vinha preparando, e mais que isso, concretizando essa vocação educacional. O destaque ía para a “Educação Nova” que mais tarde, já regime, a República iria levar por diante, ainda que se tenha ficado muito aquém do que era proposto, não só quantitativamente, mas também sob ponto de vista da qualidade do ensino, dado o objectivo minimalista da alfabetização.
Por outro lado, a ética republicana de serviço público ocupará um lugar de destaque na ecologia política deste novo tempo. O primado do público sobre o privado, as regras de rigorosa democratização da vida interna do partido impondo a rotatividade dos cargos, bem como a realização anual de congressos decisórios, vão ser, entre outros, aspectos estruturantes desta ética procedimental de que a democracia portuguesa se reclama, não obstante a efectiva prática política com que hoje nos deparamos.
Haverá, seguramente, outras impressões digitais impressas na substância da democracia que hoje vivemos. É que um projecto global de mudança social e política, como a República pretendeu ser, não se dissipa com facilidade, mesmo com o sopro feroz de uma ditadura.
Que a República viva.
(intervenção Sessão Solene da República - Assembleia Municipal de Bragança - 5 de Outubro de 2010)
- O que foi a República?
Já Antero de Quental respondeu, advertindo:
“A República não é somente o direito abstracto e filosófico proclamado com paixão aos ventos do vago céu da história; é o direito económico, fiscal, administrativo, prático e palpável, realizando-se palmo a palmo, visivelmente, experimentalmente, na sociedade de cada dia, na vida de cada hora, no indivíduo como na colectividade, encarnando nos factos e movendo-se como a realidade mais palpitante.”
Terá sido um período de desmando, uma vertigem anómica, uma “anarquia” que Portugal vivenciou durante dezasseis anos, ou pelo contrário, um regime cuja obra se apresenta plena de virtudes, com dirigentes veneráveis, misto de visionários e intelectuais cuja acção teria sido tolhida por ventos adversos… Estas têm sido as posições sustentadas, por um lado, pela historiografia estadonovista, e por outro, pelos hagiógrafos da República.
São ângulos de visão que têm hegemonizado a análise do tempo republicano, colocando, naturalmente, escolhos no caminho a percorrer para a compreensão deste riquíssimo período da história de Portugal.
Compreender até que ponto a actual democracia portuguesa é herdeira legítima de uma fibra republicana, é recuperar uma memória identitária forjada na combustão de um ideário que se foi afirmando até ser poder e quando poder se cumpriu e incumpriu, mas se manteve enquanto corpus ideológico, enquanto património político que atravessa todo o século XX português.
A análise da sociedade portuguesa contém marcas indeléveis desta persistência do pensamento republicano no tecido ideológico da democracia.
Da República recebemos o Estado laico, bandeira liberal contra a confessionalidade da Monarquia Constitucional, que outorgava à igreja católica uma omnipresença visível no quotidiano português. Omnipresente no desempenho de funções administrativas, na ascendência que a hierarquia católica, apostólica e romana tinha sobre o Estado, na autoridade eclesiástica que se fazia sentir com o peso e o treino de séculos.
A laicização da sociedade portuguesa era perspectivada como condição sine qua non para a vitória do progresso, da modernidade, meta alcançável apenas quando o país se conseguisse libertar da atávica influência do clero obscurantista, retrógrado, apegado ao atraso e por ele responsável.
Ao Estado laico assacava-se ainda a responsabilidade da completa transformação que a República perseguia, a metamorfose civilizacional do analfabeto, incapaz de protagonizar uma cidadania republicana, num outro sujeito histórico, capaz de ler o mundo, com novos direitos e deveres a traçarem novas formas de vida social. A concretização desta alquimia cultural e cívica ficaria a cargo da educação, uma educação que se queria massiva, generalizada, mensageira de uma nova sociedade, com um papel central no modus vivendi das diferentes comunidades que compunham o grande fresco da sociedade portuguesa do início do séc. XX.
Há já muito que a propaganda do Partido Republicano vinha preparando, e mais que isso, concretizando essa vocação educacional. O destaque ía para a “Educação Nova” que mais tarde, já regime, a República iria levar por diante, ainda que se tenha ficado muito aquém do que era proposto, não só quantitativamente, mas também sob ponto de vista da qualidade do ensino, dado o objectivo minimalista da alfabetização.
Por outro lado, a ética republicana de serviço público ocupará um lugar de destaque na ecologia política deste novo tempo. O primado do público sobre o privado, as regras de rigorosa democratização da vida interna do partido impondo a rotatividade dos cargos, bem como a realização anual de congressos decisórios, vão ser, entre outros, aspectos estruturantes desta ética procedimental de que a democracia portuguesa se reclama, não obstante a efectiva prática política com que hoje nos deparamos.
Haverá, seguramente, outras impressões digitais impressas na substância da democracia que hoje vivemos. É que um projecto global de mudança social e política, como a República pretendeu ser, não se dissipa com facilidade, mesmo com o sopro feroz de uma ditadura.
Que a República viva.
(intervenção Sessão Solene da República - Assembleia Municipal de Bragança - 5 de Outubro de 2010)
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