"A sucessão das crises financeiras conduziu à emergência de uma figura subjectiva que ocupa agora todo o espaço público: a do homem endividado."
Assim começa o artigo de Maurizio Lazzarato, intitulado "A dívida ou o roubo do tempo" e publicado na edição do mês de Fevereiro do Jornal Le Monde Diplomatique - edição portuguesa. De facto, uma das consequências das sucessivas crises que temos vindo a experimentar é a consciencialização generalizada de uma real existência (vida) endividada. A reflexão deste sociólogo e filósofo incide sobre a relação entre credor (proprietário) e devedor (não-proprietário) e como esta relação é extremamente assimétrica e intensifica os mecanismos de exploração e dominação próprios do capitalismo. A "dívida" é entendida não só como uma manifestação económica, mas também como elemento operatório de uma tripla despossessão: despossessão de poder político, despossessão de uma parte da riqueza e o seu regresso à acumulação capitalista e despossessão do futuro, enquanto tempo como portador de escolha, de possíveis. Para além disso, "a dívida produz uma moral que lhe é própria, (...) complementar à moral do trabalho. O par esforço-recompensa oriundo da ideologia do trabalho é reforçado pela moral da promessa (a de honrar a dívida) e da culpa (a de a ter contraído)".
No fundo, e tristemente, digo eu, o devedor comportar-se-á sempre por relação à sua dívida e ao respectivo pagamento e só se poderá considerar livre na medida em que o seu modo de vida - consumos, trabalho, pagamento de impostos, etc., lhe permite fazer face aos compromissos assumidos. E assim, o todo poderoso sistema capitalista esmaga e reduz o que será, o futuro e os seus possíveis não serão mais do que as relações de poder da actualidade. Esta ideia remete-me para uma aproximação ao conceito de sociologia das emergências, de Boaventura de Sousa Santos (2002) e àquilo que ele identifica como o "Ainda-Não" (proposto por Ernst Bloch, 1995), ou seja, o modo como o futuro se inscreve no presente e o dilata. Não é um futuro indeterminado nem infinito, mas sim uma possibilidade e uma capacidade concretas.