Na edição do mês de Julho do jornal Le Monde Diplomatique (Portugal), um texto muito interessante de Pierre Musso sobre o olhar antropológico que o Ocidente tem sobre si próprio e que remete para o processo de industrialização ocorrido a partir de 1800. Diz-nos este Professor jubilado que para que uma tal revolução industrial fosse concretizada foi preciso construir previamente uma visão do mundo partilhada e excludente de qualquer referente transcendente para celebrar a humanidade criadora e produtora. (...) Esse processo ocorre no interior da matriz cristã e estabelece as bases de uma religião secular.
Esta religião industrial ter-se-á desenvolvido no Ocidente em resultado de três momentos fracturantes, a saber:
1º - A Reforma Gregoriana, que conduz a uma primeira revolução industrial nos séculos XII e XIII, ligada à mudança do processo de trituração, com moinhos colocados ao longo dos rios a prefigurar as fábricas;
2º - O renascimento da ciência moderna e o programa de René Descartes destinado a "tornar-nos mestres e possuidores da natureza" em nome do progresso;
3º - A escolha industrialista de 1800 e a formulação simultânea de um "novo cristianismo" terrestre e científico;
Em cada um destes momentos, a industriação metamorfoseia-se e a instituição de produção que a encarna reorganiza-se: mosteiro, manufactura, fábrica e empresa. Cada uma destas instituições articula uma fé que dá sentido e uma lei que organiza uma comunidade de trabalho.
É estabelecida uma relação entre as ordens monásticas (S. Bento e S. Francisco) e seus mosteiros com a origem dessas comunidades de trabalho, argumentando-se que:
O monaquismo reconhece o "valor do trabalho" como complemento da oração e da contemplação. O trabalho representa ao mesmo tempo um instrumento de ascese, um meio de combater a ociosidade, uma actividade produtora e uma resposta à obrigação da caridade. Ainda hoje a regra de S. Bento é vista como um modelo de gestão. (...) O monge beneditino Hugues Minguet declara: "O monaquismo beneditino é sem dúvida a mais velha multinacional do mundo"...
No fim do século XI, a aceleração da circulação monetária e a multiplicação das trocas comerciais transformam a organização monástica e aí defrontam-se dois modelos: Cluny e Cister. Em Cluny vive-se na opulência, em Cister recusa-se o luxo. Nos seus mosteiros são implantadas todas as infra-estruturas da produção - rede de escoamento, moinhos, caminhos de serventia, oficinas, forja, lagar, celeiro, casa dos conversos - que fazem da abadia uma fábrica.
No século XVI ocorre uma segunda grande transformação, com a Reforma e em seguida com a revolução científica. A natureza torna-se o novo "grande Ser" que acolhe o mistério da Encarnação. Até então associada a Deus, a própria ideia de natureza modifica-se: o homem já não está "na", mas "perante" a natureza, e dedica-se a conhecê-la matematizando-a.
A terceira bifurcação da industrialização completa-se nos séculos XIX e XX, em dois momentos: por volta de 1830, com a revolução industrial, e entre 1880 e 1940 , com a revolução da gestão. A primeira formula a lei tecno-científica e a segunda fixa a lei da organização do trabalho. A fábrica-empresa liga-as solidamente. A crença num novo "grande Ser", a saber, a humanidade, reinveste o mistério da Encarnação tal como ele é instituído pelo filósofo Auguste Comte. Em 1848 o jovem Ernest Renan deseja "organizar cientificamente a humanidade..."
O criador todo-poderoso já não é um Deus supra-celeste, mas o próprio homem que se auto-realiza. Esta visão Faustiana de uma religião terrestre e racional tem por guia o progresso e a promessa de um bem-estar futuro.
(...) Depois de uma longa gestação nos claustros, a religião industrial manifesta-se de maneira fulminante por ocasião das revoluções industriais, atingindo o seu apogeu com a actual revolução digital.
Para lá da importação da novilíngua da gestão em política, o que triunfa é a religião industrial.