23 julho 2018

mediascape: contramão

Aconteceu um destes dias. Vários condutores que circulavam na A12, perante o cenário de um grande incêndio próximo da auto-estrada, que provocava imenso fumo, resolveram fazer inversão de marcha e circular em contramão.
Não sei qual teria sido a minha reacção numa situação destas, mas apesar de saber que tal atitude é muito perigosa, parece-me extemporânea a reacção da Protecção Civil, ao condenar esses condutores. Para além disto, não me restam dúvidas que tal comportamento só aconteceu porque na memória de todos nós estão ainda todos aqueles que morreram nas estradas portuguesas, vítimas dos incêndios do último Verão. É muito preocupante percebermos que, apesar de todas as promessas por parte das autoridades, os cenários de pânico, de perigo eminente, de reacções extemporâneas, permanecem, estão latentes. Sorte ainda não ter vindo calor a sério.

17 julho 2018

as identidades que matam


Não recordo o dia, nem a hora, mas sei que foi numa conversa com o cantor José Mário Branco, nas últimas semanas, que ouvi da boca do cantor que um dos livros que mais o marcaram foi este "Identidades Assassinas" de Amin Maalouf. Fiquei curioso, até porque já conhecia o autor, de um outro seu trabalho magnífico em que vai em busca das suas "Origens". Procurei-o nas lojas do costume e logo me apercebi que não seria fácil encontrá-lo. Trata-se de uma edição de 1999 da extinta Difel e, por isso, só em alfarrabistas ou na internet o poderia encontrar. Numa busca na internet e contactando vários alfarrabistas, apenas consegui que dois me respondessem afirmativamente. Finalmente o livro cá me veio parar às mãos e foi com alguma expectativa que depressa o li.
Trata-se de uma reflexão do autor - franco-libanês - acerca da importância das identidades individuais, da importância dos sentimentos de pertença a um determinado grupo e da relevância dessas dimensões identitárias na evolução das sociedades, no confronto de ideologias, na sobrevivência das comunidades, nas disputas religiosas e origens dos movimentos extremistas, radicais e fundamentalistas, e no enorme hiato que existe entre as civilizações ocidental e oriental/muçulmana.
Perfeitamente datado e contextualizado - final do século XX (antes do 11 de Setembro de 2001, entre outros) - poderemos até considerá-lo ultrapassado em várias das suas afirmações, mas em todo o caso, parece-me pertinente atentar nalgumas das questões suscitadas:

Porquê estes véus, estes tchadors, estas barbas severas, estes apelos ao assassínio? Porquê tantas manifestações de arcaísmo, de violência? Será tudo isto inerente a estas sociedades, à sua cultura, à sua religião? Será o Islão incompatível com a liberdade, com a democracia, com os direitos do homem e da mulher, com a modernidade?

As respostas não são simples e o autor afirma que não acredita no exagero da influência das religiões sobre os povos, enquanto se negligencia a influência dos povos sobre as religiões, exemplificando, com o caso europeu. Se o cristianismo modelou a Europa, a Europa também modelou o cristianismo. Este é hoje o que as sociedades fizeram dele. Elas transformaram-se, material e intelectualmente, e transformaram consigo o seu cristianismo (p.74). Reforça esta ideia, escrevendo que a sociedade ocidental inventou a Igreja e a religião que tinha necessidade, tal como no mundo muçulmano, a sociedade produziu constantemente uma religião à sua imagem e que quando os muçulmanos atacam violentamente o Ocidente, não é só por serem muçulmanos e por o Ocidente ser Cristão, é também por serem pobres, dominados, ridicularizados e por o Ocidente ser rico e poderoso.
Um pouco mais à frente, o autor dedica-se à explicação/justificação da tal enorme diferença que podemos verificar entre o mundo ocidental e o resto do mundo, afirmando:

Esta primavera formidável da humanidade criadora, esta revolução total, científica, tecnológica, industrial, intelectual e moral, este longo trabalho “de buril” efectuado por povos em plena mutação, que todos os dias inventavam e inovavam, que sem cessar faziam tremer as certezas e sacudiam as mentalidades, não foi um acontecimento entre outros, foi único na História, foi o acontecimento fundador do mundo tal como o conhecemos hoje, e produziu-se no Ocidente - no Ocidente e em nenhum outro lugar. (...) Será que esta mutação se produziu graças ao cristianismo, ou apesar do cristianismo? (...) A emergência, no Ocidente, durante os últimos séculos, de uma civilização que iria tornar-se, para o mundo inteiro, a civilização de referência, tanto no plano material como no plano intelectual, de tal modo que todas as outras se encontraram marginalizadas, reduzidas a um estado de culturas periféricas, ameaçadas de extinção. (...) A partir de que momento se tornou esta predominância da civilização ocidental virtualmente irreversível? A partir do século XV? Nunca antes do século XVIII. Do ponto de vista que hoje é o meu, pouco importa. O que é certo, e fundamental, é que um dia uma civilização resoluta tomou as rédeas da carruagem planetária nas suas mãos. A sua ciência tornou-se a ciência, a sua filosofia tornou-se a filosofia, e este movimento de concentração e de “estandardização” nunca mais parou, pelo contrário, não deixa de acelerar, alargando-se ao mesmo tempo a todos os domínios e a todos os continentes. (p.81 e 82)

Uma crise de identidade é associada à causalidade de vários sentimentos de repulsa, aversão e repúdio face ao mundo ocidental...

A felicidade do mundo e a sua infelicidade, tudo isto veio do Ocidente.
Onde quer que se viva neste planeta, toda a modernização é, daqui em diante, ocidentalização. Uma tendência que os progressos técnicos não fazem senão acentuar e acelerar. Um pouco por todo o lado encontramos, evidentemente, monumentos e obras que trazem consigo a marca de civilizações específicas. Mas tudo o que se criou de novo - quer se trate de construções, instituições, instrumentos de conhecimento, ou modos de vida - foi criado à imagem do Ocidente. (...) Esta realidade não é vivida da mesma maneira pelos que nasceram no seio da civilização dominante e por aqueles que nasceram fora dela. Os primeiros puderam transformar-se, avançar na vida, adaptar-se, sem deixar de serem eles mesmos; poderíamos mesmo dizer que, para os ocidentais, quanto mais se modernizam, mais se sentem em harmonia com a sua cultura, somente os que recusam a modernidade se encontram desfasados. Para o resto do mundo, para todos aqueles que nasceram no seio de culturas desfeitas, a receptividade à mudança e à modernidade coloca-se em termos muito diferentes. Para os chineses, para os africanos, os japoneses, os indianos ou os ameríndios, assim como para os gregos e os russos, para os iranianos, os árabes, os judeus ou os turcos, a modernização implicou constantemente o abandono de uma parte de si mesmos. Mesmo quando ela suscitava por vezes o entusiasmo, nunca se desenrolava sem uma certa amargura, sem um sentimento de humilhação e de renúncia. Sem uma interrogação dolorosa sobre os perigos da assimilação. Sem uma profunda crise de identidade. (p.83 e 84)

Pode-se bem imaginar o sentimento que poderão experimentar os diferentes povos não ocidentais, para quem, desde há numerosas gerações, cada passo na sua existência se acompanha de um sentimento de capitulação e de negação de si próprios. Foi-lhes necessário reconhecer que o seu saber estava ultrapassado, que tudo o que produziam nada valia comparado com o que se produzia no Ocidente, que a sua manutenção da medicina tradicional resultava da superstição, que o seu valor militar não passava de uma reminiscência, que os seus grandes homens que tinham aprendido a venerar, os grandes poetas, os sábios, os militares, os santos, os viajantes, não contavam para nada aos olhos do resto do mundo, que a sua religião era suspeita de barbárie, que a sua língua era estudada apenas por meia-dúzia de especialistas… (…) Sim, a cada passo da sua vida, encontram uma decepção, uma desilusão, uma humilhação. Como não ter uma personalidade mortífera? Como não sentir a sua identidade ameaçada? Como não ter o sentimento de viver num mundo que pertence aos outros, que obedece a regras ditadas pelos outros, um mundo onde se sentem órfãos, estrangeiros, intrusos ou párias? (p.86 e 87)

O autor termina a sua reflexão partilhando aquilo que considera serem as inquietações da mundialização actual:

a) uniformização pela mediocridade - a ideia segundo a qual a efervescência actual, mais do que conduzir a um enriquecimento extraordinário, à multiplicação dos meios de expressão, à diversificação de opiniões, conduz paradoxalmente ao inverso, ao empobrecimento: assim, esta multiplicidade desenfreada de expressões musicais apenas desembocará, no final de contas, numa espécie de música de ambiente, afectada e adocicada. Assim, o formidável cadinho de ideias terá como resultado uma opinião unanimista, simplista, um menor-denominador-comum intelectual, a tal ponto que toda a gente, à excepção de um punhado de excêntricos, acabará por (…) engolir o mesmo caldo informe de sons, de imagens e de crenças;
b) uniformização pela hegemonia - Será a mundialização algo mais do que uma americanização? Não terá ela como consequência principal o impor ao mundo inteiro uma mesma língua, um mesmo sistema económico, político e social, um mesmo modo de vida, uma mesma escala de valores, os dos Estados Unidos da América? A acreditar em algumas pessoas, o conjunto do fenómeno da mundialização não passaria de um disfarce, de uma camuflagem, de um cavalo de Tróia, sob o qual se dissimularia uma empresa de dominação. É legitimo interrogarmo-nos se a mundialização não irá reforçar a predominância de uma civilização ou a hegemonia de uma potência. Isto apresentaria dois perigos graves: o primeiro, o de vermos, pouco a pouco, desaparecer línguas, tradições, culturas; o segundo, o de vermos os membros dessas culturas ameaçadas adoptarem atitudes cada vez mais radicais, cada vez mais suicidas.
Os riscos de hegemonia são reais. (p.126 a 129)

um homem bom


A notícia chegou madrugadora. Morreu João Semedo, dirigente e ex-coordenador do BE. Notícia esperada, mas sempre triste. Foi uma enorme honra ter conhecido e ter privado com o João.





Alguns dos momentos em que o acompanhei por terras de Trás-os-Montes.