Ausente da blogosfera e da actualidade global, local e até pessoal, no último par de meses, aproveito agora o ritmo mais vagaroso das horas para espreitar e, retroactivamente, ler aquilo que fui deixando escapar. Num desses lugares, bem frequentado e com excelente memória, encontrei este excerto que aqui transcrevo e descontextualizo do seu ambiente natural. Parece-me bem, bem demais.
Temos hoje horror ao tédio. A nossa atenção e sentidos são permanentemente convocados, estimulados e titilados por um vendaval ininterrupto de notícias divertidas, vídeos engraçadinhos e outros excitantes palermas. Tudo é programado ao milímetro e ao segundo para impedir o ennui e para eliminar os pensamentos melancólicos do nosso espírito, cada vez mais infantilizado. A principal função do polegar oponível do Sapiens consiste agora em deslizar imagens patetas no ecrã de um smartphone. Nas praias e nos cafés, nos jardins ou nas ruas, tudo agarrado ao telemóvel. A toda a hora, de dia e ou de noite, levamos connosco uma Coney Island de bolso, muito portátil. Com isso evacua-se o tédio, decerto, mas perde-se também o seu enorme valor cultural e civilizacional. Sem falar no "ócio criativo", outrora muito apreciado nas melhores universidades inglesas, eram as tardes lânguidas da puberdade que levavam os adolescentes a ler. A ler horas a fio, sob o incentivo do tédio e da circunstância singela, mas decisiva, de não haver nada para fazer, absolutamente nada. Devoravam-se obras quilométricas, intermináveis mas fundamentais, que hoje amarelecem nas prateleiras, esmagadas pelo pó da ignorância e pela sujidade da desmemória. Para um teenager, entre a gratificação imediata de um like e a lenta e densa trama de Guerra e Paz a escolha é óbvia, irrecusável. Sem tédio, perdendo-se a capacidade de lidar com o tédio, é impossível aprender uma língua morta, estudar com afinco o latim ou o grego antigo, repetir à náusea os exercícios de violino ou harpa, gastar os dias a contemplar as nuvens do céu ou as avezinhas dos bosques. Não é por acaso que a Inglaterra, cinzenta e húmida, sempre foi grande terra de birdwatchers.
Matámos o tédio, muito bem, paz à sua alma. Mas, com essa morte, matámos também o que restava da nossa cultura humanista, baseada no livro e na leitura, na música dos planetas, no espanto da Natureza. Duvidam? Uma em cada cinco das livrarias registadas no Ministério da Cultura já não existe. Das restantes, apenas um terço reúne os requisitos para ser considerada livraria; e 40% dos livros ali expostos acabarão por ser devolvidos às editoras, por falta de compradores. Depois do tédio, as trevas.
António Araújo, in "Entre as brumas da memória", dia 26/12/2018.
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