...de artesanato estigmatizado poveiro a produto gourmet originário do México...
Por diversas razões, das quais apenas referirei o interesse estratégico-temporal, só agora consigo escrever sobre este paradigmático exemplo de difusão, em jeito de apropriação, cultural. Todo o processo despertou o meu interesse e mereceu-me alguma reflexão, pois é um caso peculiar, riquíssimo para a análise cultural, e até pedagógico, naquilo que poderá ser o seu desenvolvimento no tempo.
Desde logo, a dimensão económica que é quem provocou toda a celeuma. O momento em que uma estilista norte-americana resolve transformar uma camisola de cariz popular e de preço modesto, em produto de moda, com status, carisma e prestígio, com preço elevado, eu diria mesmo proibitivo, que logo passa a ser alvo da cobiça e desejo daqueles que seguem e consomem "marcas", "estilos" e "modas". Neste caso também encontramos todos os defeitos congénitos do tal (neo)capitalismo, que não consegue deixar de ser predador de territórios e devorador de culturas.
Depois, a dimensão identitária, pois importa saber: de quem é esta manifestação cultural?, trata-se de facto de um saber-fazer local?, existiu ou não usurpação identitária? Também, a dimensão cultural, naquilo que são os evidentes indícios de um difusionismo cultural, ou seja, ainda que neste caso por usurpação e não "inspiração", trata-se de mais um exemplo de como a cultura se difunde e vai adquirindo novos contornos, novos valores, novos protagonistas e se vai moldando consoante o contexto social, económico e cultural das comunidades de chegada.
Acima de tudo, todo este imbróglio é o resultado directo da profunda ignorância destas elites cosmopolitas que, ao mesmo tempo que habitam o mundo inteiro, não têm mundo, ou seja, não conhecem mais do que o centímetro e meio que rodeia os seus umbigos e para quem a Póvoa de Varzim, naturalmente, situa-se em nenhures a Sul do espectacular muro que separa o México dos EUA.
Ao contrário do que se apregoou por todo o lado, a narrativa indignada dos poveiros e, nomeadamente, dos seus representantes institucionais, nem sequer é verdadeira, pois em nenhum momento houve qualquer dano - simbólico ou efectivo - para a "cultura local", ou para os "poveiros", ou para a Póvoa de Varzim. Muito pelo contrário, como bem sabe o sr. Presidente da Câmara, esta publicidade e promoção gratuitas foi o melhor que poderia ter acontecido a este produto artesanal das suas gentes, que até então nem regionalmente era reconhecido e agora, de um dia para o outro, globalizou-se graças a uma estúpida e ignorante acção por parte do capital e das lógicas globalizantes que, com despeito e arrogância, se acham donos do mundo.
Aquilo que aconteceu nos últimos dias com a dita camisola, foi o momento cosmogónico de um novo caracter cultural, com ambições desmedidas e cujo valor patrimonial poderá e deverá ser questionado. Estivemos perante o surgimento de um novo processo de tentativa de patrimonialização. Desde o primeiro momento, a reacção dos responsáveis políticos locais e até nacionais, ao apropriarem-se deste elemento cultural como seu, como representativo de uma qualquer identidade local ou nacional, foi uma manifesta tentativa de institucionalização cultural. Dito de uma forma mais gráfica, foi uma parolada pegada. Não hesito sequer em afirmar que nos próximos tempos iremos testemunhar esforços - promoção, marketing, institucionalização e inventariação - para o reconhecimento e interesse da camisola poveira como património de interesse nacional. Será uma questão de tempo até encontrarmos essa camisola como candidata às mil e uma maravilhas de Portugal... aguardaremos com atenção e manifesto interesse.
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