09 junho 2009

concurso cronistas - 5º desafio

Desafio:
Prezado Cronista,
Nem só de grandes fatos se faz a crônica do nosso tempo, aliás, os pequenos acontecimentos têm o condão de simbolizarem melhor o homem e seus impasses nestes nossos conturbados dias que as grandes manchetes dos jornais,
Gosto de dizer que a crônica expressa o que foi manchete na alma do cronista naquele dia,
Pois bem... Abaixo relacionei 32 acontecimentos dos nossos tempos. Qual deles daria uma boa manchete em sua alma?
Escolha um dos temas e envie como de costume para esta redação!
Aguardo ansioso!
O Editor

Escolhi:
Idosos acusados de feitiçaria estão a ser "enterrados vivos" na província angolana da Lunda-Norte, denunciou esta terça-feira o bispo D. José Imbamba .
Em declarações à Lusa, o bispo da Lunda-Norte disse que o número de casos envolvendo estas práticas não é ainda "alarmante", mas é "muito preocupante", adiantando que "em alguns casos", estas pessoas são enterradas "com os cadáveres daqueles a quem acusam de ter morto por feitiço". "O último caso ocorreu há 15 dias, mas graças à intervenção de um grupo de catequistas, o velho, que já se encontrava preso e a caminho do cemitério, foi salvo", informou o prelado.

Crónica:
áxis mundi
A sociedade ocidental, fortemente influenciada pelo positivismo, ainda hoje vive agarrada à ciência convencional, que na sua pressa pelas descobertas e na sua voracidade pelo conhecimento, objectivo santo e sacro da “boa” ciência, esquece com facilidade tudo ou parte daquilo que a precedeu, fundou ou fundamentou e permitiu evoluir até ao estado presente.
Quando somos confrontados com notícias como esta vinda do coração de África, normalmente apresentadas em notas de rodapé jornalístico e consideradas, pelos órgãos de comunicação social, bizarrias de um outro e imaginário mundo, o nosso primeiro impulso emotivo, mas acima de tudo racional (porque somos formatados positivamente) é rejeitar liminarmente tais ritos. Logo somos obrigados a adjectivá-los e a remetê-los para tempos depositados nos negros anais da nossa história e/ou a enquadrá-los com outras e estranhas civilizações que habitam geografias distantes e as quais remetemos para um estado como que pré-moderno – naquilo que é entendido por estádios de desenvolvimento civilizacional experimentamos já três paradigmas diferentes: a pré-modernidade que contempla todo o tempo anterior à revolução industrial, ao iluminismo e ao positivismo; a modernidade, que surgiu nessa época e nos acompanhou até meados do século XX; e a pós-modernidade, que supostamente experimentamos desde então e até aos dias de hoje.
Nessas civilizações ou culturas tradicionais pré-modernas, resistentes e sobreviventes, que coabitam connosco o mesmo espaço (mundo) e o mesmo tempo (contemporaneidade), o passado é respeitado e os símbolos são valorizados porque contêm e perpetuam a experiência de gerações. É a tradição que lhes permite, reflexivamente, compreender a sua própria organização e comunidade, como é o meio ideal para lidar com o tempo e o espaço, onde se insere cada actividade ou experiência na continuidade de passado, presente e futuro. Nestas comunidades, mormente organizadas em tribos e chefados, o conhecimento e o domínio das suas técnicas estão concentradas e são monopólio de poucos, normalmente, oligarcas, chefes, xamãs ou feiticeiros, homens mais velhos e experimentados, que assim e com esses equipamentos exercem o seu poder e a sua magistratura, mantendo os demais vitaliciamente dependentes da sua influência e existência.
Aspecto importante e que convém ter em consideração quando ouvimos ou lemos histórias destas é o conceito de sagrado e de profano, dicotomia bem presente na organização dos espaços e dos lugares, como por exemplo o caos profano associado ao exterior da aldeia ou comunidade e à selva, e a sacralidade da própria aldeia, no centro da qual estará o áxis mundi, exprimido pela casa do chefe, ou pela presença de uma grande vara, que simbolicamente une o mundo dos deuses, o dos homens e o das trevas. Por outro lado, os detentores do poder imbuem-se da sacralidade necessária para manterem e protegerem o seu status e importância no seio da comunidade ou grupo.
Neste ambiente “naturalista” a Terra é sempre transparente, como se se oferecesse continuamente como mãe nutridora universal com os seus ritmos cósmicos geradores da ordem e da harmonia, que permitem a fertilidade e a permanência. Mas para estes indivíduos e comunidades também é verdade que a Natureza é sagrada e na sua convivência com esse sagrado existe, intrinsecamente, o elemento sobrenatural, que será o factor derradeiro de esperança e de garantia de tudo aquilo que os seus conhecimentos empíricos não conseguem explicar. Porque, a jeito de foice, uma Natureza dessacralizada é algo recente, típica de uma vivência moderna e, tendencialmente, ocidental, na qual os homens da ciência no referido e abismal percurso se perderam.
A morte é, por excelência, um dos momentos cuja compreensão será inatingível para todos os seres humanos. A cada experiência de morte está associada um ritual, uma moral e um preceito. Podemos encontrar por esse mundo fora mil e uma manifestações diferentes, mas a verdade é que não há uma única cultura ou civilização conhecida que não tenha o seu culto aos mortos. É algo de universal. Nestas comunidades tradicionais, mesmo os “carismáticos” e os “eleitos” não conseguem controlar e perceber a morte, portanto será sempre importante para a sua condição encontrar uma justificação, ainda que através de um bode expiatório ou tendo por base uma falsidade. A recorrência a práticas de magia negra e vodun são comuns nesta África Ocidental. Vividas como autênticas religiões, arrastam consigo a crença e a consciência social destas comunidades.
Da leitura que faço, este caso não será mais do que a procura de justificação para algo que ultrapassa em muito o entendimento desses indivíduos e, por isso nada melhor para empolgar e manter a fidelidade das multidões do que construir uma culpa, por mais absurda que pareça ou seja. E aí, quando essa culpa é formalizada e pronunciada, no seio da comunidade, não há lei civil nem religiosa, ainda que impostas pela diplomacia, pela força ou pela guerra da ocidental civilidade dos colonialismos, dos pós-colonialismos e dos neo-colonialismos, que consiga calar essa secular vivência e contrariar essa mundivisão.Sem querer de alguma forma desculpabilizar ou justificar tais práticas, que em nada dignificam o ser humano, considero importante e pedagógica uma leitura e uma atitude relativistas, no sentido de conhecer, perceber e traduzir correctamente as diferentes expressões culturais com as quais, inevitavelmente, continuaremos a partilhar este mundo. A estratégia para se erradicar de vez este tipo de ritos passará obrigatoriamente pela educação e formação, o que requer tempo e disponibilidade. Mais do que agir através da força e da imposição de normas e padrões estranhos aos indígenas, importa implicá-los num processo de reflexão e reavaliação sobre as suas próprias tradições. Talvez assim, possam manter as suas práticas e rituais fidedignos à sua herança cultural e, ao mesmo tempo, preservar os mais básicos e fundamentais valores da vida humana.

Avaliação e comentários: (até 10 valores por júri)
Betty Vidigal - Artigo acadêmico até o último parágrafo, quando adquire tom de sermão. Não é crônica.
Não diz a que fato ou notícia se refere. O leitor que não tiver lido a lista de “fatos” não tem como adivinhar o que motivou as considerações do autor. Nota: 6,0
Cida Sepúlveda - Mini ensaio. Nota: 6,0
Lorenza Costa - Duas menções a uma "história" e um "caso" que não são ventilados no texto. O cronista esquece que a crônica é dirigida aos que leram e aos que não leram o noticiário inteiro dos dias precedentes. Algumas passagens são exageradamente explicativas e, no final, temos a opinião de alguém pisando em ovos: um autor que não se decide entre o relativismo moral e a necessidade de defender valores "básicos e fundamentais" (usar outras palavras para "universais" já denuncia seu pouco à-vontade). Da minha parte pode ser excesso de rigor; mas rigor é o que o próprio cronista se impôs ao adotar o estilo didático. Nota: 8,5
Luci Afonso - Muito bem escrito. Nota: 8,5
Marco Antunes - Trata-se de um ensaio, um ensaio arrastado e pouco interessante em que o autor não sai de cima do muro, mas um ensaio. Nota: 6,0
Oswaldo P. Parente - “Desculpabilizar”? O parágrafo que contém esta preciosidade é antológico. Nota: 7,0
Total - 42

Sem comentários: