Num dia de relativo calor, hoje, entro no carro e o cheiro que sinto é idêntico àquele que guardo na memória da velhinha R12. Se há memória boa em mim, essa é a olfactiva. Boa recordação.
---------"Viajar, ou mesmo viver, sem tirar notas é uma irresponsabilidade..." Franz Kafka (1911)--------- Ouvir, ler e escrever. Falar, contar e descrever. O prazer de viver. Assim partilho minha visão do mundo. [blogue escrito, propositadamente, sem abrigo e contra, declaradamente, o novo Acordo Ortográfico]
28 abril 2014
a senhora e o ouro peregrino
Nos longos serões à lareira, abrigados das terríveis geadas e procurando aquecer os ossos antes de enfrentar o desconforto da cama, conversava-se acerca de tudo; daquilo que nos dizia respeito, mas também acerca daquilo que nada era nosso. Aproveitando a presença de alguns familiares e vizinhos, desfiava-se conversa, trocavam-se informações importantes sobre as coisas do lugar, coscuvilhava-se sobre a sorte e o azar dos outros e contavam-se histórias, factos ou ficções, de um tempo passado que só a memória dos mais velhos alcançava.
Uma dessas histórias que repetidamente fui ouvindo relatava acontecimentos dos meados do século XX. Pelos vistos por essa época as mulheres da aldeia e de muitas outras povoações desfizeram-se, se não de todo, pelo menos de grande parte do seu ouro e prata. Sem grandes hesitações ou dúvidas ofertaram-no a Nossa Senhora de Fátima que por esse tempo andou em peregrinação por terras de Trás-os-Montes.
Foi em Junho de 1949, entre os dias 1 e 17, que aconteceu essa peregrinação da imagem da Senhora por toda a diocese de Bragança, depois de ter feito igual viagem pela diocese da Guarda. A Igreja organizou e preparou com os maiores cuidados e pormenores essa visita. Através dos seus elementos (organizações, párocos e religiosos(as)) foi passando a mensagem ao povo. Também através do seu principal órgão de comunicação, o Jornal Mensageiro de Bragança, ia dando instruções acerca dos percursos, das datas e horas das cerimónias, assim como dos comportamentos apropriados para os leigos e devotos da Senhora.
(JMB - 1/5/1949)
(JMB - 10/5/1949)
Estes dois recortes retirados do Jornal Mensageiro de Bragança, exemplificam muito bem a atitude da Igreja naquela ocasião. Num tempo em que a esmagadora maioria da população da diocese vivia numa miséria atroz, a Igreja, passeando a sua "Mãe", sempre rica e oponente, não hesitou, com o seu discurso pedinte e ganancioso, retirar o pouco e o nada dessa gente temerosa. Enfim, outros tempos.
26 abril 2014
avô cantigas
Hoje a matiné foi para assistir um espectáculo do Avô Cantigas. A primeira canção que cantou foi a cantiga do avô Cantigas e no seu fim o artista disse que essa canção era um clássico, pois faz este ano trinta e dois anos de existência. Relembrou aos mais pequenotes que essa mesma música já serviu para entreter os seus pais. Verdade. Bastou esta afirmação para me levar para uma reflexão acerca do assunto.
Os meus filhos vêem os mesmos filmes e desenhos animados, lêem as mesmas histórias e ouvem as mesmas músicas, que eu um dia também pude ver, ouvir ou ler. Mas eu nunca tive acesso às histórias e às brincadeiras que entreteram os meus pais nas suas infâncias. Uma ou outra sobreviveu e serão como que imortais, mas na sua grande maioria desapareceram. A razão principal para tal reside no facto de no intervalo entre a geração dos meus pais, agora avós, e a minha ter-se dado o advento das novas tecnologias e da magia da gravação - cassete, vhs, cd, dvd, disco duro, pen, etc - que contribuíram definitivamente para a perpetuação das memórias. Creio que se chegar a ser avô, irei continuar a propor aos meus netos as cantigas do avô Cantigas. Fungagá.
22 abril 2014
07 abril 2014
a verdade nacional
Numa recente pesquisa ao arquivo digital do Jornal Mensageiro de Bragança, encontrei este parágrafo.
Não querendo descontextualizar, informo que este excerto foi retirado de um artigo intitulado "Nova mascarada trágica e sacrilega" do então Presidente da Câmara Municipal de Vinhais, Padre Firmino Martins, nas páginas 1 e 2 da edição nº 254 de 10 de Janeiro de 1949.
curas...
Aproveitando o facto de hoje se assinalar o Dia Mundial da Saúde:
Ao abrir um velho baú guardado na cave de uma casa desabitada, encontrei uma data de papeis soltos e correspondências de um outro tempo. No meio disso tudo, dei com os olhos numa velha receita para a cura do herpes Zóster - infeccioso e provocado pela reactivação do vírus da varicela, doença popularmente conhecida por zona. Como ainda hoje não há cura eficaz para essa doença, há quem tenha fé em curas alternativas e na boa sorte...
Ao abrir um velho baú guardado na cave de uma casa desabitada, encontrei uma data de papeis soltos e correspondências de um outro tempo. No meio disso tudo, dei com os olhos numa velha receita para a cura do herpes Zóster - infeccioso e provocado pela reactivação do vírus da varicela, doença popularmente conhecida por zona. Como ainda hoje não há cura eficaz para essa doença, há quem tenha fé em curas alternativas e na boa sorte...
04 abril 2014
escritora a sério
Assinalando o centenário de nascimento de Marguerite Duras - 4 de Abril de 1914. Li-a quando jovem, continuo a lê-la quando adulto. Escrita impressionante. Do livro Escrever que utilizei na tese de mestrado, a propósito do acto de escrever:
"Gostava de contar a história que
contei pela primeira vez a Michelle Porte, que tinha feito um filme sobre mim.
Num dado momento da história, eu encontrava-me naquilo a que se chamava a despensa na «pequena» casa com a qual
comunica a casa grande. Estava só. Esperava Michelle Porte nessa despensa. Fico
muitas vezes assim, sozinha, em lugares calmos e vazios. Durante muito tempo. E
foi nesse silêncio, nesse dia, que, de repente, vi e ouvi contra a parede, muito
perto de mim, os últimos minutos da vida de uma mosca vulgar.
Sentei-me no chão para não a
assustar. Já não me mexi mais.
Estava só com ela em toda a
extensão da casa. Até então não tinha pensado em moscas a não ser, sem dúvida,
para dizer mal delas. Como vós. Fui educada, tal como vós, no horror desta
calamidade que afecta o mundo inteiro, que transmite a peste e a cólera.
Aproximei-me para a ver morrer.
Ela queria escapar à parede onde
se arriscava a ficar prisioneira da areia e do cimento depositados sobre essa
parede com a humidade do parque. Ela debatia-se contra a morte. Aquilo durou
talvez entre dez a quinze minutos e, depois, parou. A vida tinha tido de parar.
Fiquei ainda a ver. A mosca continuou contra a parede, como eu a tinha visto,
como colada a ela.
Enganara-me: ainda estava viva.
Fiquei ainda ali, a olhá-la, na
esperança de que ela fosse recomeçar a ter esperança, a viver.
A minha presença tornava essa
morte ainda mais atroz. Eu sabia-o e fiquei. Para ver. Para ver como essa morte
invadiria progressivamente a mosca. E também para tentar ver de onde viria essa
morte. De fora, ou da espessura da parede, ou do solo. De que noite viria, da
terra ou do céu, das florestas próximas, ou de um nada ainda inefável, muito
próximo, talvez, talvez de mim, que procurava achar os trajectos da mosca em
trânsito para a eternidade.
Já não sei o fim. Sem dúvida que
a mosca, já sem forças, terá caído. As patas ter-se-ão descolado da parede.
Terá caído da parede. Já não sei mais nada, a não ser que me fui embora. Disse
para comigo: «Estás a ficar louca». E fui-me embora dali.
Quando a Michelle Porte chegou,
mostrei-lhe o lugar e disse-lhe que uma mosca tinha morrido ali, às três e
vinte. A Michelle Porte riu-se muito. Teve um ataque de riso. Tinha razão.
Sorri-lhe para acabar com a história. Mas não: continuou a rir. E eu, quando
vo-la estou a contar, assim, de verdade, na minha verdade, é o que acabei de
dizer, o que foi vivido entre mim e a mosca e que ainda não se presta ao riso.
A morte de uma mosca é a morte. É
a morte em marcha em direcção a um certo fim do mundo, que alarga o campo do
último sono. Vemos morrer um cão, vemos morrer um cavalo e dizemos qualquer
coisa, por exemplo, coitado do bicho… mas se uma mosca morre… não dizemos nada,
não tomamos nota, nada.
Agora está escrito. Talvez seja
neste género de derrapagem – não gosto desta palavra – muito sombria, que nos
arriscamos a incorrer. Não é grave mas é um acontecimento único em si mesmo,
total, de um significado enorme: de um sentido inacessível e de um alcance sem
limites. Pensei nos judeus. Odiei a Alemanha como nos primeiros dias da guerra,
com todo o meu corpo, com toda a minha força.
(…)
Também está certo que a escrita
conduza a isso, a essa mosca em agonia, quero dizer: escrever o pânico de escrever.
A hora exacta da morte, consignada, tornava-a já inacessível. Dava-lhe uma
importância de carácter geral, digamos que um lugar determinado no mapa geral
da vida sobre a terra.
Essa exactidão da hora a que ela
tinha morrido fazia com que a mosca tivesse tido exéquias secretas. Vinte anos
depois da sua morte, a prova aqui está, ainda se fala dela.
Eu nunca tinha contado a morte
dessa mosca, a sua duração, a sua lentidão, o seu medo atroz, a sua verdade.
A exactidão da hora da morte
remete para a coexistência com o homem, com os povos colonizados, com a massa
fabulosa dos desconhecidos do mundo, as pessoas sós, aquelas da solidão
universal. A vida está em toda a parte. Da bactéria ao elefante. Da terra aos
céus divinos ou já mortos.
Eu não tinha organizado nada em
torno da morte da mosca. As paredes brancas, lisas, sua mortalha, estavam já
ali e fizeram com que a sua morte se tenha transformado num acontecimento
público, natural e inevitável. Aquela mosca estava, manifestamente, no fim da
vida. Eu não podia impedir-me de a ver morrer. Já não se mexia. Havia também
isso, saber, também, que não é possível contar que essa mosca existiu.
Já passaram vinte anos.
(…)
Sim. É isso, esta morte da mosca,
tornou-se o deslocamento da literatura. Escrevemos som o saber. Escrevemos a
olhar uma mosca morrer. Temos o direito de o fazer.
(…)
À nossa volta todo o escrito, é
isso que é preciso chegar a perceber, todo o escrito, a mosca, ela, escreve,
nas paredes, escreveu muito na luz da sala grande, reflectida pelo tanque. Ela
podia aguentar-se numa página inteira, a escrita da mosca. Então seria uma
escrita. A partir do momento em que ela poderia sê-lo, ela é já uma escrita. Um
dia, talvez, no decorrer dos séculos que hão-de vir, ler-se-ia essa escrita,
seria também ela decifrada e traduzida.
(…)
Podemos também não escrever,
esquecer uma mosca. Olhá-la, apenas. Ver como, por sua vez, ela se debateria."
(Duras, 1994:40 a 48)
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