Assinalando o centenário de nascimento de Marguerite Duras - 4 de Abril de 1914. Li-a quando jovem, continuo a lê-la quando adulto. Escrita impressionante. Do livro Escrever que utilizei na tese de mestrado, a propósito do acto de escrever:
"Gostava de contar a história que
contei pela primeira vez a Michelle Porte, que tinha feito um filme sobre mim.
Num dado momento da história, eu encontrava-me naquilo a que se chamava a despensa na «pequena» casa com a qual
comunica a casa grande. Estava só. Esperava Michelle Porte nessa despensa. Fico
muitas vezes assim, sozinha, em lugares calmos e vazios. Durante muito tempo. E
foi nesse silêncio, nesse dia, que, de repente, vi e ouvi contra a parede, muito
perto de mim, os últimos minutos da vida de uma mosca vulgar.
Sentei-me no chão para não a
assustar. Já não me mexi mais.
Estava só com ela em toda a
extensão da casa. Até então não tinha pensado em moscas a não ser, sem dúvida,
para dizer mal delas. Como vós. Fui educada, tal como vós, no horror desta
calamidade que afecta o mundo inteiro, que transmite a peste e a cólera.
Aproximei-me para a ver morrer.
Ela queria escapar à parede onde
se arriscava a ficar prisioneira da areia e do cimento depositados sobre essa
parede com a humidade do parque. Ela debatia-se contra a morte. Aquilo durou
talvez entre dez a quinze minutos e, depois, parou. A vida tinha tido de parar.
Fiquei ainda a ver. A mosca continuou contra a parede, como eu a tinha visto,
como colada a ela.
Enganara-me: ainda estava viva.
Fiquei ainda ali, a olhá-la, na
esperança de que ela fosse recomeçar a ter esperança, a viver.
A minha presença tornava essa
morte ainda mais atroz. Eu sabia-o e fiquei. Para ver. Para ver como essa morte
invadiria progressivamente a mosca. E também para tentar ver de onde viria essa
morte. De fora, ou da espessura da parede, ou do solo. De que noite viria, da
terra ou do céu, das florestas próximas, ou de um nada ainda inefável, muito
próximo, talvez, talvez de mim, que procurava achar os trajectos da mosca em
trânsito para a eternidade.
Já não sei o fim. Sem dúvida que
a mosca, já sem forças, terá caído. As patas ter-se-ão descolado da parede.
Terá caído da parede. Já não sei mais nada, a não ser que me fui embora. Disse
para comigo: «Estás a ficar louca». E fui-me embora dali.
Quando a Michelle Porte chegou,
mostrei-lhe o lugar e disse-lhe que uma mosca tinha morrido ali, às três e
vinte. A Michelle Porte riu-se muito. Teve um ataque de riso. Tinha razão.
Sorri-lhe para acabar com a história. Mas não: continuou a rir. E eu, quando
vo-la estou a contar, assim, de verdade, na minha verdade, é o que acabei de
dizer, o que foi vivido entre mim e a mosca e que ainda não se presta ao riso.
A morte de uma mosca é a morte. É
a morte em marcha em direcção a um certo fim do mundo, que alarga o campo do
último sono. Vemos morrer um cão, vemos morrer um cavalo e dizemos qualquer
coisa, por exemplo, coitado do bicho… mas se uma mosca morre… não dizemos nada,
não tomamos nota, nada.
Agora está escrito. Talvez seja
neste género de derrapagem – não gosto desta palavra – muito sombria, que nos
arriscamos a incorrer. Não é grave mas é um acontecimento único em si mesmo,
total, de um significado enorme: de um sentido inacessível e de um alcance sem
limites. Pensei nos judeus. Odiei a Alemanha como nos primeiros dias da guerra,
com todo o meu corpo, com toda a minha força.
(…)
Também está certo que a escrita
conduza a isso, a essa mosca em agonia, quero dizer: escrever o pânico de escrever.
A hora exacta da morte, consignada, tornava-a já inacessível. Dava-lhe uma
importância de carácter geral, digamos que um lugar determinado no mapa geral
da vida sobre a terra.
Essa exactidão da hora a que ela
tinha morrido fazia com que a mosca tivesse tido exéquias secretas. Vinte anos
depois da sua morte, a prova aqui está, ainda se fala dela.
Eu nunca tinha contado a morte
dessa mosca, a sua duração, a sua lentidão, o seu medo atroz, a sua verdade.
A exactidão da hora da morte
remete para a coexistência com o homem, com os povos colonizados, com a massa
fabulosa dos desconhecidos do mundo, as pessoas sós, aquelas da solidão
universal. A vida está em toda a parte. Da bactéria ao elefante. Da terra aos
céus divinos ou já mortos.
Eu não tinha organizado nada em
torno da morte da mosca. As paredes brancas, lisas, sua mortalha, estavam já
ali e fizeram com que a sua morte se tenha transformado num acontecimento
público, natural e inevitável. Aquela mosca estava, manifestamente, no fim da
vida. Eu não podia impedir-me de a ver morrer. Já não se mexia. Havia também
isso, saber, também, que não é possível contar que essa mosca existiu.
Já passaram vinte anos.
(…)
Sim. É isso, esta morte da mosca,
tornou-se o deslocamento da literatura. Escrevemos som o saber. Escrevemos a
olhar uma mosca morrer. Temos o direito de o fazer.
(…)
À nossa volta todo o escrito, é
isso que é preciso chegar a perceber, todo o escrito, a mosca, ela, escreve,
nas paredes, escreveu muito na luz da sala grande, reflectida pelo tanque. Ela
podia aguentar-se numa página inteira, a escrita da mosca. Então seria uma
escrita. A partir do momento em que ela poderia sê-lo, ela é já uma escrita. Um
dia, talvez, no decorrer dos séculos que hão-de vir, ler-se-ia essa escrita,
seria também ela decifrada e traduzida.
(…)
Podemos também não escrever,
esquecer uma mosca. Olhá-la, apenas. Ver como, por sua vez, ela se debateria."
(Duras, 1994:40 a 48)
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