Tenho esta aguarela emoldurada e exposta numa parede de casa. Já tem uns anitos, mas continuo a gostar dela e da paisagem que retrata e eu reconheço. Foi pintada pela Ia e vai permanecer por perto. Estou a tratar de a fazer perdurar para lá da minha existência.
---------"Viajar, ou mesmo viver, sem tirar notas é uma irresponsabilidade..." Franz Kafka (1911)--------- Ouvir, ler e escrever. Falar, contar e descrever. O prazer de viver. Assim partilho minha visão do mundo. [blogue escrito, propositadamente, sem abrigo e contra, declaradamente, o novo Acordo Ortográfico]
26 setembro 2023
21 setembro 2023
insofismável
"O desfecho histórico de qualquer choque entre deuses foi determinado por aqueles que empunhavam as melhores armas e não por aqueles que possuíam os melhores argumentos."
(Berger e Luckmann, in A construção Social da realidade, 2004:117)
15 setembro 2023
O melindre dos ilustres trinta e sete
Esta notícia saiu ontem, dia 14, no jornal Público e, quase de imediato, me motivou a escrever o texto que se segue. Depois, fui contactado para ceder o texto para uma petição a apresentar ao executivo da Câmara Municipal do Porto, o que aceitei com a condição de ser subscrita apenas por trinta e oito "não-ilustres". A ver vamos.
O sobressalto cívico ao ler a notícia da edição de hoje do jornal Público - “Estátua de Camilo deve ser removida após petição que invoca questões de gosto e moral” de Lucinda Canelas, não poderia ser maior. Então porque há trinta e sete indivíduos que não gostam de uma obra colocada num espaço público da cidade, o Presidente da Câmara Municipal decide, unilateralmente, retirá-la e remetê-la ao pó e ao esquecimento dos depósitos municipais?
Estamos, de facto, perante mais uma manifestação de um poder discricionário e arbitrário que não revela mais do que o tique da soberba elitista que gere e governa os destinos do município. Não importa quem são os trinta e sete signatários de tal petição, na medida em que se tratando de uma petição entregue na Câmara Municipal, ela carece de representatividade na manifestação de uma proposta, reclamação ou indignação da população do município. Quantas petições não terão sido já entregues na autarquia com bem mais signatários que não mereceram qualquer atenção do executivo e do Sr. Presidente? Mais, pelo que se percebe da notícia, a petição não foi merecedora de debate em sede de Assembleia Municipal ou, sequer, de executivo, apenas uma decisão de “mande-se retirar” porque há trinta e sete “tão ilustres cidadãos” que a consideram um “desgosto estético” e uma “desaprovação moral”. Tanto haveria a dizer sobre a tormenta e o constrangimento destas trinta e sete almas por causa da referida estátua, mas aquilo que importa é, uma vez mais, a atitude sobranceira de Rui Moreira. A autarquia, num determinado momento, promoveu ou apenas aceitou a instalação deste monumento escultório da autoria de Francisco Simões, o que significou liberdade de expressão e de criação para um artista. Trata-se de uma representação, de uma abstracção e não, como garante o autor, de um retrato de Ana Plácido ou de Camilo Castelo Branco. Citado nesta peça, o mesmo afirma que “cada um tem direito à sua interpretação, à sua subjectividade. Não tenho a pretensão de agradar a todos. A unanimidade em arte não existe.” Reforçando esta ideia de Francisco Simões, mau, muito mau sintoma é quando assistimos a unanimidades culturais. Por outro lado, o gosto individual - o meu, o teu, o dele e o do presidente da autarquia - não deve ser critério para escolhas ou decisões políticas e de gestão autárquica. Parafraseando os signatários desta peculiar petição eu diria que “favor higiénico” para a cidade e seus cidadãos seria respeitar a diversidade e a criatividade das manifestações artísticas e culturais. O “gosto estético” e a “aprovação moral” devem-na reservar para os espaços próprios, privados e íntimos, onde, aí sim, nem sequer são necessárias petições ou signatários.
12 setembro 2023
falar e escrever o outro
"Antropologia é vida, diz-nos Ingold, convidando-nos a pensar desde uma epistemologia inclusiva que nos 'deveria' obrigar a pensar a realidade conjugada num gerúndio incompleto, processual e circunstancial. Afinal, durante o trabalho de campo (em rigor, em qualquer investigação que implica relação entre pessoas) há pessoas que se encontram e que tentam fazer sentido uma da outra sem que necessariamente tudo caiba dentro das categorias de entendimento comuns. [...] Os textos académicos 'matam' os sujeitos como pessoas de carne e osso, objectivando-os e adjectivando-os segundo grelhas que reduzem tanto de tanta vida e de tanta coisa que fica para contar e que é merecedora de ser contada. [...] Falar menos de alguém porque é de um lugar, de uma cultura, de uma sociedade e falar mais com alguém que também faz um lugar, uma cultura e uma sociedade. E falar a partir de uma possibilidade de tornar essoutros, que muitas vezes nos chegam diluídos em categorias analíticas, em interlocutores de carne e osso que tornam os antropólogos tão humanos quanto eles, tão humanos quanto nós."
Humberto Martins, in prefácio de exercícios de antropologia narrativa, 2022 - pp. 11 e 12.
05 setembro 2023
01 setembro 2023
consciência rural vs urbana
O antropólogo franco-brasileiro Júlio Sá Rêgo dedicou-se a percorrer as serras do Norte de Portugal e os trilhos e caminhos do pastoreio de cabras e ovelhas. O resultado desse esforço é este pequeno livro que, aproveitando este final de Verão à beira-mar, li de um fôlego só. Por ambientes que reconheço e me são familiares, este trabalho deverá ser entendido, acima de tudo, como um grito de alerta para a situação precária e, nalguns contextos, em vias de extinção destas raças ovinas e caprinas, assim como do modo de vida de muitos indivíduos e suas famílias. O despovoamento do interior do país resulta também desta triste realidade, desconhecida da maioria da população. A quem se interesse por estes universos, reais e anti-distópicos, aconselho a sua leitura.
"Populações rurais têm a consciência dessa sua relação com o ambiente, elas o habitam, enquanto populações urbanas apenas o ocupam. A cidade vive em dicotomia com o ambiente que se torna um mero receptáculo de vidas ocupadas e de infra-estruturas acimentadas; no rural a consciência é de que as trajectórias de vida estão interligadas ao ambiente. [...] O vínculo com o lugar é uma das especificidades da identidade camponesa." (páginas 120 e 121)
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