27 dezembro 2024

disforia e avatar

"A mitologia irrealista que sempre tem alimentado as representações identitárias nacionais, celeremente se transferiu para outros horizontes externos, embora mais próximos. A nossa integração europeia foi feita soba mesma fantasia de excecionalidade, antes associada aos sonhos imperiais, revestindo agora a camisola do "bom aluno" europeu. O nosso "europeísmo" revelou um excesso de paixão e um défice de reflexão estratégica. Quisemos fazer parte do "pelotão da frente" do euro, sem discutir as regras do jogo.
E aqui nos encontramos, talvez no período mais crítico desde o Ultimato britânico (1890), em estado de permanentes espera e expectativa. Continuando sem incluir organicamente o nosso território como parte essencial dessa liberdade mínima, sem a qual um povo perde o direito a existir como realidade histórica.
Essa disforia nacional, em que a própria noção de identidade se dispersa para um exterior distante, agravou-se com a passagem hodierna a um processo de auto-identificação alucinadamente simbólico. A actual elite considera-se hoje forte por ter representantes em lugares chave das Nações Unidas ou da União Europeia, mas perante o perigo de uma guerra que poderá destruir existencialmentne o país, limita-se a seguir aquilo que as ordens alheias ditam, sem um pingo de hesitação e ainda menos de reflexão.
No passado, a nossa disporia era física e real. Durante mais de meio milénio lutámos por uma dimensão imperial, enfraquecendo, por vezes, a retaguarda. Hoje, a nossa disforia é da ordem da febre digital. Portugal transformou-se num avatar, que oferece descuidadamente o seu corpo físico às balas, ao serviço do crepuscular império dos outros."
Viriato Soromenho-Marques, in jornal de Letras nº 1414, Dezembro 2024.

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