Na edição do mês de Maio do Le Monde Diplomatique - Edição Portuguesa, Sandra Monteiro escreve um excelente artigo que entendo como explicação para tudo aquilo que tem sido o discurso da "crise" enquanto agenda de uma lógica neoliberal e de perseguição à dimensão pública dos estados e das sociedades ocidentais. Já o li no início do mês, mas para o referir precisava de escrever algumas citações e por isso aguardei até estar disponível na sua integridade. Aqui fica, ou então na sua versão original:
Para os defensores do neoliberalismo, não faz mal acabar com serviços e actividades reconhecidamente eficientes, de qualidade e utilidade social, desde que estejam reunidas pelo menos uma destas condições: que seja um modo de transferir para a esfera do privado recursos que antes pertenciam ao público, promovendo oportunidades de negócio; que seja um modo de eliminar do campo das experiências dos cidadãos formas de fazer em comum que possam favorecer o seu apego a instituições públicas, a finalidades não-lucrativas, a lógicas cooperativas e participativas.
É nesta engenharia de reconfiguração da sociedade que se enquadram o anunciado encerramento da Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, ou o despejo da Es.Col.A. da Fontinha, no Porto. Por muito que a violência demolidora da vida em sociedade a que estamos a assistir o possa sugerir, o que está em causa não é, para o projecto neoliberal, acabar com o Estado, mas antes desviá-lo das suas funções sociais e redimensioná-lo à medida da avidez de mercados instáveis e de interesses privados. Não está também em causa acabar com toda e qualquer iniciativa de cidadãos que se mobilizem autonomamente para intervir na sociedade, mas tão-somente a daqueles que o fazem, até em regime de voluntariado, associando a supressão das falhas dos poderes públicos a propostas transformadoras das comunidades que não sejam redutíveis aos valores do pensamento único, à forma económica da troca mercantil e do lucro, ao formato de gestão do «empreendedorismo social».
O neoliberalismo nada tem contra haver Estado suficiente para parcerias público-privadas desastrosas para o erário público; para tráficos de influências e garantias de proveitosas carreiras; para salvamentos de bancos nacionais impostos por um sistema financeiro internacional que confisca a democracia; para sistemas educativos que formem elites ou para sistemas de saúde que se ocupem dos doentes que não são rentáveis para a medicina privada. O neoliberalismo nada tem contra haver na sociedade autonomia suficiente canalizada para o assistencialismo ou a caridade, desde que essa acção não questione intelectualmente, nem abale através de práticas, o imobilismo trágico das desigualdades socioeconómicas e a irracionalidade de um modelo económico iníquo.
Valores, práticas e finalidades são o que distingue os projectos em confronto nas sociedades. São eles que separam, por um lado, os que concebem uma comunidade como organização em que se afere, de acordo com modalidades democráticas e participadas, quais os bens comuns a prosseguir; e, por outro, os que nela vêem um somatório de interesses individuais e privados em que os mecanismos da competição farão emergir os mais fortes e, supletivamente, obrigarão a encontrar as formas de assistência aos mais fracos que eternizarão a rigidez dos lugares sociais. É neste antagonismo quanto a valores, práticas e finalidades que reside o essencial das escolhas de sociedade. Tudo o mais diz respeito aos actores que dão corpo a essas escolhas e às alianças e contágios entre as diferentes esferas em que os actores se movem; no quadro das relações de força em cada momento existentes, essas alianças e contágios podem ser potenciados ou impedidos.
Se os efeitos que se quer alcançar forem a densificação da democracia, a restauração dos serviços públicos e do Estado social e a reconstrução de comunidades de bem-estar, será que mantém utilidade e capacidade explicativa uma grelha de análise que encerre nos vértices de um triângulo três pólos que não se sobrepõem nem têm afinidades a aproximá-los ou separá-los? Com efeito, a imagem que nos habita tende a ser a de um triângulo − mesmo que o possamos ver equilátero, isósceles ou escaleno. Ele representa três sectores da sociedade separados e estanques: o público, o privado e o terceiro sector (ou economia social). A mesma figura geométrica ressurge se pensarmos em termos de três esferas de actividade traduzidas no Estado, no mercado e na actividade cooperativa ou solidária. Dada a correlação de forças, esta imagem tem estado revestida por uma capa de naturalidade e fixidez, quando ela traduz uma visão que não é neutral, mas política. E tem servido, sobretudo, para permitir que ocorram longe da visibilidade do debate público todas as formas de disputa e de captura que o poder, cada vez mais forte, dos mercados (isto é, dos interesses privados que estes representam) tem vindo a operar em relação aos sectores público e cooperativo.
Há por isso vantagem em encontrar arranjos e parcerias alternativas que estilhacem estas lógicas que se encontram em acção e que, mantendo a noção de que todos estes três pólos são construções em aberto, desloque a aliança estratégica para o lado do público e do cooperativo. As modalidades dessa redefinição de alianças podem ir da simples cedência de espaços públicos até outras mais entrosadas, como por exemplo a extensão dos âmbitos de actividade em que se ensaiam formas económicas não-mercantis e em que se beneficia mutuamente de economias de escala.
A constituição desta aliança, mais ou menos formal, fará com que o campo do público e da cidadania tenha mais condições para disputar ao privado o conjunto de valores, práticas e finalidades que projecta para a sociedade. Talvez seja dos contágios entre racionalidades de serviço público, participação democrática, organização cooperativa, não desbaratamento de recursos com a exploração e o lucro, e prossecução de objectivos de sustentabilidade ecológica e de bem-estar social que possam vir a surgir alianças duradouras entre o Estado e as organizações de cidadãos − movimentos, associativismo, economia social − que fortaleçam ambos em detrimento dos interesses privados. Ocupar este espaço do comum é uma forma de romper com o consenso neoliberal assente no pensamento único, na prática única. É, certamente, uma forma de reapropriação do futuro.
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