Não tenho por hábito transcrever para aqui textos escritos e publicados por outras pessoas, mas de tão interessante e tão verdadeira a opinião da autora, achei por bem transcrevê-lo na íntegra. Os negritos são meus, dando destaque às ideias, para mim, centrais neste contexto.
Portugal é um país de escritores ricos
por Alexandra Lucas Coelho, in Público (3/1/16)
1. Há quase 20 anos um poema de Nuno Moura dizia Portugal é um país de poetas ricos. Hoje podemos dizer mais, Portugal é um país de escritores ricos. Ao contrário dos alemães, que não têm onde cair mortos e são pagos sempre que vão fazer uma leitura para poderem continuar a escrever, ou dos pelintras dos ingleses, que em 2015 bateram o recorde de candidaturas a subsídios de escrita, os portugueses são tão ricos que não precisam de dinheiro para pesquisar um livro, nem para viver enquanto o escrevem. Entretanto, dão o seu tempo a câmaras, bibliotecas, festivais, centros e demais instituições cada vez mais envolvidas na promoção da literatura. Em suma, se os escritores portugueses já não precisavam de dinheiro, em 2016 também já não precisam de tempo. Superaram a fase da criação, estão em pleno criacionismo: o livro é um PDF de Deus, vem já revisto e tudo.
2. Eis a ficção que tende a enredar estes abastados imortais que cada vez mais não escrevem a futura literatura portuguesa. Há dois motivos para falar deles agora: primeiro, Portugal voltou a ter Ministério da Cultura, e se o actual Governo fez disso bandeira há que cobrá-la na prática, ver como lidará com a falta de meios e equipas exauridas; segundo, nunca em Portugal tantas câmaras, bibliotecas e instituições com orçamentos se envolveram tanto na promoção da literatura. O Ministério da Cultura pode, por exemplo, retomar de alguma forma as bolsas de criação literária. Câmaras, bibliotecas e instituições com orçamento podem apoiar a criação. E esses apoios devem coexistir com meios novos na Internet, porque não asseguram o mesmo, como explicarei adiante.
3. Começando pelas bolsas. Entre 1997 e 2002, o Ministério da Cultura atribuiu 12 bolsas anuais (poesia, narrativa, banda desenhada, dramaturgia) de 250 contos por mês (o equivalente hoje a 1250 euros, quando os preços eram bem mais baixos). Os júris variavam com os anos, e entre os contemplados contaram-se Al Berto, Armando Silva Carvalho, Maria Velho da Costa, Mário de Carvalho, Luísa Costa Gomes ou Almeida Faria; então desconhecidos como Gonçalo M. Tavares e Dulce Maria Cardoso; ou ainda Pedro Rosa Mendes, Mafalda Ivo Cruz, José Luís Peixoto, Paulo José Miranda, Adília Lopes, Nuno Moura, Rita Taborda Duarte, Carlos Luís Bessa, Filipe Abranches, José Carlos Fernandes, Inês Pedrosa. Quando as bolsas foram suspensas, era já possível contar uma grande maioria de projectos publicados nos três primeiros anos. Para dar ideia da diversidade de opiniões na altura, Inês Pedrosa propôs separar o concurso de estreantes e já publicados, Francisco José Viegas era contra bolsas para primeiras obras, Maria Velho da Costa privilegiava primeiras obras, e Vasco Graça Moura opunha-se a qualquer apoio estatal directo. Chegou a ser feito um novo regulamento em que primeiras obras não podiam concorrer e os escritores tinham de cumprir o prazo, senão devolviam o dinheiro, mas não avançou. De resto, o investimento do Ministério da Cultura na literatura foi diminuindo, mantendo-se só o apoio a alguns prémios e à tradução, com as ajudas à internacionalização a assentarem no Instituto Camões (Ministério dos Negócios Estrangeiros).
4. Entretanto, câmaras, bibliotecas e demais instituições multiplicaram iniciativas em que convidam escritores. Por vezes são festivais, por vezes programas ou séries, funcionários, moderadores, entrevistadores ou outros artistas recebem, mas não quem escreve. Presume-se sempre que o escritor está a divulgar os livros e a ganhar pela venda, mesmo quando lhe pedem que fale sobre outro tema, mesmo quando aparece meia dúzia de pessoas e ele não vende nada (e, quando vende, ganha dez por cento). O escritor é, assim, o pretexto de iniciativas que alimentam programações com assalariados e colaboradores, sendo ele o único a deslocar-se para dar o seu tempo e pensamento, quando não textos. Tudo a bem da literatura, mas certamente para mal da literatura que entretanto não está a ser escrita, e dizer isto não menospreza o contacto com os leitores. Para quem o faz com prazer ou por convicção, esse contacto é tão parte do trabalho como dar entrevistas, muitas vezes até um encorajamento ou reajuste. Mas não só o escritor tem o direito, por natureza ou convicção, de apenas escrever, como o prazer e convicção de quem divulga o que escreve não devem ser explorados até ao absurdo de inviabilizar a escrita. Todas estas iniciativas, sempre apertadas de orçamento, têm de buscar alternativas para remunerar o escritor. E as instituições que as programam poderiam pensar em residências, workshops, comunidades de leitores, subsídios, tudo ajudas à criação, através de trabalho pago, de tempo e espaço, ou simplesmente de dinheiro. Uma ressalva: festivais remunerados podem beneficiar leitores e indirectamente a criação, mas os escritores não são malabaristas do sinal vermelho. O escritor escreve; os convites para falar devem partir do seu trabalho; e só ele pode decidir falar de replicantes ou do exílio de Cavaco Silva.
5. Escrever um livro leva meses, anos. Há quem tenha, de facto, livros na cabeça mas entre sustentar casa, filhos e trabalhar no que paga tudo isso, acabe por nunca os escrever (sobretudo mulheres, não tenho espaço agora, mas é todo um tema). E mesmo que roube um par de horas à madrugada não fará esses livros se eles precisarem de pesquisas longas, bibliografia, viagens. Escrever um romance pode custar milhares de euros, e a esmagadora maioria dos escritores portugueses não tem adiantamentos (não sou adepta, mas há quem os ache úteis). Isso também determina a amplitude de livros que uma literatura tem, ou não. No cinema, há apoios para a escrita de argumento, na academia há bolsas para teses, mas em Portugal não há um único fundo regular, sem limite de idade ou âmbito, para escrita de poesia, romance, não-ficção literária, dramaturgia, banda desenhada.
6. Hoje existem meios como a
Unbound ou a
Kickstarter, plataformas de
crowdfunding para criação ou edições que os leitores viabilizam. Um
crowdfunding viabilizou o trabalho fotográfico do Condor, de João Pina, em vários países da América Latina (não a edição). Estes e outros meios permitirão não apenas livros clássicos como formas novas. Mas nada disto, acredito, exclui a necessidade de apoios institucionais à criação. No Reino Unido, onde as plataformas online são vibrantes (pagando livros e revistas como
The White Review, que por sua vez dá trabalho a escritores e organiza encontros), a Sociedade de Autores gasta por ano 100 mil libras em fundos para escrita, mais bolsas de 2000 libras para sócios, e no ano passado bateu o seu recorde de pedidos, incluindo escritores estabelecidos. Ou seja, sim, há cada vez mais meios para viabilizar livros, mas os autores, mesmo com obra, ganham cada vez menos. Para além disso, o apelo junto dos leitores, à partida, não pode ser critério único para um livro existir.
É bom que leitores viabilizem livros, mas também será bom que livros que não sabiam o que iam ser, que não eram sequer “projectos”, muito menos “apelativos”, possam existir, porque houve tempo para o escritor chegar a eles, e isso, sim, será a riqueza de uma cultura. O que quem está no Governo, nas câmaras e por aí fora tem de pensar, creio, é se quer ter ainda algum papel nisso, o fortalecimento de um país pela criação.