Ontem, dia 28 de Fevereiro, pelas 18 horas, na livraria Gato Vadio, no Porto.
(a minha intervenção)
O livro que nos chega agora às mãos é, tal como o seu autor refere logo na introdução da obra, uma veemente denúncia do modo de produção capitalista e da sua avidez, sem olhar a meios, pelo lucro... nas palavras de Alcídio, “um libelo acusatório”.
Mas só à medida que vamos lendo este trabalho e conhecendo a amplitude, a abrangência e a densidade das consequências da precariedade do trabalho na vida dos trabalhadores é que percepcionamos e alcançamos a razão de o autor utilizar o qualificativo da veemência. Estamos, de facto, perante um trabalho aturado e apurado de desconstrução das narrativas hegemónicas da nossa contemporaneidade.
Bem, mas antes de mais...
Agradecendo o convite para aqui estar e me pronunciar sobre este livro, importa desde já fazer a minha declaração de interesses, isto para evitar qualquer mal entendido, ou qualquer incompreensão daquilo que vier a dizer. Este trabalho é, sem dúvida, de cariz social e aí sinto-me confortável; depois, naquilo que é a sua mais que declarada perspectiva marxista, também não me causa qualquer desconforto, mas sendo também um texto em que a economia e a finança são o fio condutor, não só da narrativa, como também das inúmeras etnografias – casos, dados, estatística, projecções, estimativas e afins – devo admitir a minha manifesta incompetência técnica e o meu ontogénico desinteresse por aquilo que, para mim, permanecerão ad eternum ocultas ciências e insondáveis saberes. Claro que a minha sensibilidade, a minha consciência e interesses cidadãos permitem-me perceber a sua relevância social e, assim, outorgar-me vir aqui pronunciar-me sobre tais matérias.
Dito isto...
Numa conferência dada em 22 de Fevereiro de 1969, no Collége de France, Michel Foucault reflectia sobre a questão: “O que é um autor?”, afirmando que este não está morto, constrói-se enquanto tal, enquanto persona, sujeito vivo que está constantemente presente através dos processos objectivos de subjectivação que o constituem e dos dispositivos que o captam e inscrevem nos mecanismos de poder. Alcídio Torres, enquanto autor, partilha de forma assertiva e sem contemplações ou hesitações, a sua visão do mundo, o seu lugar de fala e, tal como eu e, provavelmente, muitos dos aqui presentes, a sua ambição por uma outra existência para a condição humana, que obrigatoriamente se traduziria num mundo mais livre, mais justo e menos desigual. Enfim, num mundo em que se viveria e não se sobreviveria.
Mas olhemos com mais atenção para “Condenados à sobrevivência”. É, nos dias de hoje, um documento importante, pertinente e até seminal, pois não só permitirá conhecer em detalhes muitos aspectos que até agora eram desconhecidos da maioria dos cidadãos, ou então estavam disseminados espacial e temporalmente por diferentes e variados suportes e publicações, o que dificultava a sua leitura e interpretação. Uma das mais-valias e grandes méritos desta obra é esse esforço de reunião de informações, dados, factos e diferentes perspectivas sobre o neoliberalismo, sua história e suas características. Constitui-se ainda como fecunda fonte de informações e conhecimentos para posteriores estudos ou investigações.
Ao longo dos dez capítulos que compreendem esta obra, encontramos um mundo em acelerada transformação e percebemos as metamorfoses que o capital fez ao longo da sua história e, nesta última roupagem do neoliberalismo, vai realizando, sempre com o fito de não perder um centímetro do seu espaço e, se possível, até alargá-lo, que é como quem diz, não só não perder um cêntimo do seu lucro, como sempre que possível maximizar esse seu proveito.
Para uma leitura e compreensão mais eficazes, o autor socorre-se de uma panóplia daquilo que, por (de)formação académica, denomino de etnografias. Aqui, impressiona o conhecimento, a memória e os recursos de pesquisa a que Alcídio Torres se socorre, pois ao referir-se aos diferentes temas ou assuntos, ao longo de todo o texto, ilustra com factos e acontecimentos de geografias variadas e diacronicamente diversos, o que lhe permite, não só ter uma visão geral/macro, como incorporar cada etnografia nessa dimensão mais holística, como ainda apresentar os contraditórios que considera úteis e necessários para sustentar a sua perspectiva ou opinião.
Relembrando, uma vez mais, a minha iliteracia económica e financeira, em vez de debater dialeticamente, anuindo ou contrariando o autor, considero mais seguro e até mais interessante para quem me possa estar a ouvir (ler), referir-me a algumas dimensões da nossa existência a que a leitura deste livro me remeteu.
a) O neoliberalismo – altar sagrado do capitalismo contemporâneo, acessível apenas aos Super-Homens, aqueles que, nas palavras de Nietzshe, “realizam conscientemente a religião capitalista”, ou ao “bando soberano” da parábola Kafkiana. Um modelo sagrado de exercício de poder, que no seu radicalismo se propõe criar um “absolutamente improfanável” (Agamben, 2006) para o comum “Homem-Massa”, conceito criado por Ortega Y Gasset na sua reflexão sobre a “Rebelião de Massas” e o poder do anonimato, referindo-se ao “Homem-Massa” como alguém que em civismo deixava muito a desejar. Pois bem, o verbo necessário é então “profanar”, desactivar esses dispositivos de poder e restituir ao uso comum todos os espaços, todos os lugares e todos os tempos;
b) O Estado de Excepção – em que vivemos é agora, e desde há algum tempo, a regra permanente, que coacta ou elimina, de forma temporária, mas preferencialmente em definitivo, os direitos e a dignidade política aos cidadãos. É um tempo e espaço de anomia (suspensão ou fim da ordem social), ideal para a imposição das vontades e interesses dos mais fortes...;
c) A Persona – através da qual o indivíduo adquire um papel e uma identidade social, ou seja, uma capacidade jurídica e a dignidade política do homem livre (Agamben, 2010). Não esquecer que a luta pelo reconhecimento é uma luta por uma Persona, pois só existo se a “Grande Máquina me reconhece” no desempenho dos meus papeis sociais (Goffman, 1973);
d) A Biopolítica – implicação crescente da vida natural (biológica) do homem nos mecanismos e nos cálculos do poder (Foucault). Num mundo global, profundamente desigual, onde o Norte Global, paternalista, hipócrita, oportunista e usurpador, teima em perpetuar as dinâmicas e as narrativas de controlo e poder sobre o Sul Global, nunca como nas últimas décadas assistimos a tantas calamidades e catástrofes naturais e humanitárias, que, para além de toda a miséria, dor e morte, provocaram a deslocação de massas, milhões de seres humanos numa fuga e busca por uma condição de vida minimamente digna. Essa massa de indivíduos – refugiados, deslocados, apátridas, prisioneiros, migrantes religiosos e económicos – habitam uma terra de ninguém, sem lei nem roque, e sem qualquer cobertura do direito internacional. Nunca como na nossa contemporaneidade, os indivíduos foram tão despidos da sua condição humana e, reduzidos à sua vida nua, habitam uma zona indeterminada, um limbo existêncial;
e) Objectivação Participante – conceito de Pierre Bourdieu (2011), no seu trabalho sobre o Poder Simbólico, que se refere à implicação sobre um objecto de estudo muito particular, neste caso, a condição da precariedade do proletariado mundial, universo no qual se encontram alguns dos mais poderosos determinantes sociais da história das sociedades modernas e dos indivíduos que as constituem. Fala-se, entre outros, do sistema simbólico de poder, que é intrinsecamente hierarquizante, criando categorias de percepção de distinção social;
f) Determinismo Social - poderemos também ficar com uma ideia de que afinal estamos sujeitos, enquanto espécie, enquanto seres humanos e, depois, enquanto cidadãos e trabalhadores, a uma espécie de determinismo social, como que condenados a um destino sobre o qual não temos qualquer poder de influência ou decisão. Estamos presos espacial e temporalmente a um determinado contexto social e cultural, do qual não nos conseguimos livrar. O próprio Marx, numa das citações aqui presentes, se refere a algo deste género, quando afirma: “Os homens não são livres para escolher as suas forças produtivas, pois estas são adquiridas , produtos de uma actividade anterior.” E ainda: “O facto de cada geração posterior se deparar com forças produtivas adquiridas pela geração precedente [...] cria na história dos homens uma conexão, cria uma história da humanidade”.
Ainda uma última nota para os três documentos que são partilhados em anexos. Heterogéneos no formato, no propósito e até na idade, todos eles contribuem informando e complementando a essência do texto e, julgo eu, do pensamento do autor. No anexo um, a entrevista de Julian Assange, em 2014, pelo jornalista Eric Schmidt, é um excelente testemunho acerca da hegemonia tecnologia e digital e do seu poder simbólico e efectivo sobre a informação, a formação e até a condução e doutrinação das massas anónimas, nas diferentes dimensões da sua existência social. É também um alerta para os reais perigos e ameaças destes poderes desmaterializados e despersonificados sobre as liberdades de pensamento, de expressão, de denuncia e de contraditório. Mas é também uma landmark de esperança para um futuro mais transparente, mas consciente e mais livre, no qual se ambiciona que a evolução tecnológica permaneça como resultado ou consequência dos valores humanos então existentes e mais ou menos consensualizados, e não o seu contrário, ou seja, que o futuro da humanidade seja determinado pela evolução tecnológica.
O anexo dois é um relatório resultado de um estudo do governo chinês sobre as hegemonias ocidentais e, em particular, as dos EUA. Esse documento refere-se a cinco hegemonias: a política, a militar, a económica, a tecnológica e a cultural, o que resulta ainda num predomínio efectivo na geo-política à escala global dos EUA. Será este o diagnóstico que importará à China combater e, de alguma forma, tentar relativizar e equilibrar a influência e o estabelecimento de políticas que defendam os seus interesses no xadrez das relações e da diplomacia internacionais.
No anexo três podemos encontrar um trabalho teórico de Andrés Piqueras, no qual sistematiza a sua perspectiva de análise sobre a actualidade do capitalismo neoliberal à escala global em vinte pontos estruturantes. Aqui podemos encontrar o poder hegemónico do paradigma capitalista, que ainda que possa estar em crise, mantém-se como o grande sistema ideológico e político na organização dos Estados e das sociedades humanas.
Tão longe já de Abril e tão perto da sua quinquagésima celebração, importa não esquecer que a democracia não é, nem nunca será um destino, é e será sempre uma viagem, um processo em construção, um compromisso. E mentem aqueles que afirmam que os ideais de Abril estão já alcançados e cumpridos. Não, não estão.
Caro Alcídio, termino regressando e parafraseando Michel Foucault (1997: 8):
“Eu teria gostado que existisse por trás de mim (tendo tomado a palavra há muito tempo) uma voz que dissesse: - É preciso continuar, eu não posso continuar, é preciso continuar, é preciso pronunciar palavras enquanto as houver, é preciso dizê-las até que elas [nos] encontrem, até que elas [nos] digam.”
Parabéns Alcídio e muito obrigado pelo teu trabalho e dedicação.
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