29 julho 2025

modas e resistências

É crescente o número de pessoas à minha volta que, ao trocarem de automóvel, têm optado por comprar veículos eléctricos. Numa tendência generalizada e até célere, temos vindo a assistir à substituição da combustão a energias fósseis por energias ditas menos poluentes e menos agressivas para o planeta (greenwashing?). Eu nada tenho contra, apoio essa alteração de paradigma e gostaria de poder contribuir mais para ela, mas no que diz respeito aos automóveis, e pelo que tenho percebido das experiências daqueles que me rodeiam, a coisa não é bem como a pintam, o que só vem reforçar a minha percepção de que esta nova tecnologia (electrificação) não será a definitiva. Vários sintomas contribuem para esta percepção:
- É uma tecnologia cara, muito cara, o que impede a sua socialização, massificação ou democratização;
- As autonomias são uma anedota, impedindo viagens que ultrapassem os limites das grandes cidades;
- Veículos com autonomias interessantes são, de caros, inacessíveis;
- Na estrada permanente e obsessiva atenção com o consumo a cada momento (hi-fi, bluetooth, música, telefone, ar condicionado, velocidade, etc., etc., condicionam fortemente a duração das baterias;
- Rede de abastecimento pública inexistente em parte do território do país e muito reduzida em muitas zonas urbanas, o que significará ausência de investimento (certeza e projecto) nesta tecnologia;
- Durabilidade das baterias eléctricas - prazos de validade (garantia) curtos, obrigando a cada 6, 7, 8 anos, nalguns casos nem tanto, à sua substituição, significando um investimento acrescido (quase o preço de um automóvel), ou então à troca de automóvel com essa periodicidade;
- Muitas marcas de fabricantes automóveis estão já a rever a sua estratégia de produção e comercialização, e algumas marcas que tinham apostado tudo ou quase na electrificação, estão a regressar à produção de motores a combustão;
Curiosa é também a atitude de muitos daqueles que fizeram esta escolha e que apesar de terem alterado substancialmente o seu comportamento (planeamento, duração, disponibilidade, paciência), não reconhecem as fragilidades desta tecnologia e, antes, adaptam o seu discurso às exigências da própria tecnologia, ou seja, reorganizam a sua vida em função das necessidades do seu automóvel. São poucos, mas conheço quem tenha feito esta opção e, rapidamente, se tenha apercebido do passo em falso e da pouca aplicabilidade e razoabilidade desta opção, tendo regressado, ainda que com perdas significativas de dinheiro, aos motores a combustão.
Portanto, e sem querer ser um velho do Restelo, não estou disponível para esta nova realidade. Não faz ainda sentido para mim. A não ser que seja imposta ou evolua significativamente, irei aguardar e, no entretanto, se tiver que trocar de veículo, algo que mais cedo que tarde vai acontecer, irei permanecer no diesel ou na gasolina.

remanso e leituras

Nesta altura aproveito sempre para organizar o meu acervo pessoal (poderia já chamar-lhe biblioteca, mas não quero parecer, ou ser, pretensioso). Já desde o mês de Abril que os livros chegavam e ficavam numa pilha à espera de serem "incluídos" e, por isso, nestes dias tenho estado a tratar disso. O primeiro passo é sempre digitalizar as capas de cada livro e é nesse momento que consigo saber o número de livros que estão à porta, sem entrar... desta vez são cerca de sessenta espécimes, entre Saramagos, Chimamandas, muita Galiza, mais um de Luíz Pacheco e antropologias várias... Mas é também nestes momentos em que volto a olhar, com atenção, para cada um deles, que me apercebo da quantidade crescente de livros que tenho para ler e nem as próximas semanas de remanso permitirão alterar essa situação.

aqui estou

Agora que o ritmo diminui e as obrigações ou compromissos vão desaparecendo da agenda e são substituídos por longos espaços em branco, facto este que tem duas leituras possíveis: a primeira é que estão aí as férias e vão-se ausentando os contactos e a convivência; e a segunda é que estou a entrar naquele período, cíclico, em que perco o chão e fico como que perdido, sem saber muito bem como me comportar ou agir. A ideia de férias é sempre agradável, mas sinto-as como um desconforto e com estúpida ansiedade por regressar ao "tempo normal", aquele em que tenho prazos, compromissos aqui e ali e, não consigo explicar de outra forma, os ponteiros do relógio retomam a sua cadência normal.
Agora, aqui, sentado numa esplanada à beira mar, enquanto o meu adolescente brinca e se diverte com um primo na praia, reflicto sobre tudo isto e, sem conseguir chegar a uma conclusão ou definição da anormalidade que a minha atitude é ou representa, sei, com toda a certeza, que gosto de sombra, de vento, de frescura e de estar à beira mar, tanto de Verão como de Inverno, mas ao mesmo tempo não me sai da cabeça tudo aquilo que tenho e quero ler, tudo o que tenho e quero escrever. Sem o estar a fazer, aqui estou.

23 julho 2025

ao espelho

agradecendo à Cristina...



Apresentação Livro,
IX Congresso da Associação Portuguesa de Antropologia
Viana do Castelo, 16 de Julho de 2025

por Cristina Sá Valentim


Neste livro, o Luís realiza uma etnografia dos processos de nomeação coletiva que têm lugar no nordeste de Portugal, em Trás-os-Montes. Estes processos referem-se a nomes atribuídos a pessoas e que localmente são reconhecidos, de forma consensual ou não, pela comunidade que os atribuiu ou recebeu. Por exemplo, as alcunhas são a tipologia mais conhecida de nomeadas coletivas.
Apesar de serem processos não específicos do território transmontano, adquirem nesta região, segundo o autor, a dimensão de um “particularismo cultural”, ou seja, e cito, “uma manifestação que apesar de não ser exclusiva da região, adquire aí contornos específicos e diferenciadores.” Foi partindo desta hipótese que o Luís fez um levantamento exaustivo e uma reflexão cuidada sobre as tipologias mais representativas das nomeadas coletivas, averiguando onde e como se desenvolvem, e quem as mobiliza e para quê. Recorre à antropologia cultural e social para entender a complexidade dos processos de identidade, de nomeação e de alteridade, como também aos estudos de memória e aos estudos críticos do património.
O Luís partiu para o terreno para tentar responder a várias questões que elenca na página 17 do seu livro. São mesmo muitas questões, e eu vou sintetizar a questão central que o livro me coloca. E que é:
Até que ponto a atribuição de nomeadas coletivas pode ser um ato diferenciador, isto é, uma prática que, inserida em relações de poder desiguais, cria fronteiras para incluir e excluir indivíduos de fazer parte de um coletivo, e assim regula sociabilidades e sociedades. Ao mesmo tempo, de que formas a atribuição e manutenção de nomes coletivos implica a produção de discursos de identidade e de conhecimento distintivos de uma comunidade, e que são transmitidos pela oralidade ao longo de gerações. Por fim, como essa prática social integra processos de memorização coletiva de um património cultural em constante resignificação e reconfiguração.
O Luís mapeia, descreve, interpreta e problematiza tudo isto com muita competência, generosidade e criatividade, como deve ser em Antropologia.
Depois de introduzir o leitor na temática das nomeadas coletivas, o Luís apresenta o enquadramento teórico que mobiliza para a sua reflexão, apresentando alguns conceitos que foram úteis para entender as nomeadas coletivas, entre os quais Cultura, Património, Nomes (ou o processo da Nomeação), a Memória, a Metáfora e a Metonímia, e a Tradução Cultural.
A seguir, através de uma descrição e interpretação etnográfica, ficamos a conhecer os processos de atribuição de nomes a terras, a pessoas, a grupos, a lugares, a pessoas naturais de certas localidades – por exemplo, não sabia que “os de Mirandela” são chamados de “repolhos”; mas sei que os de Mirandela chamam “peleiros” aos de Carção e “narros” aos de Bragança. Também há nomes atribuídos a animais domésticos e de trabalho, e até a objetos e a dias da semana, do mês e do ano.
O livro do Luís diz-nos que nada disto é aleatório. Como o Luís argumenta, tudo isto tem um sentido porque não é mais do que a manifestação da dimensão relacional e processual, e não essencialista, que define as identidades pessoais, coletivas, culturais e sociais. Isto é, as nomeadas coletivas fazem parte do processo da individuação que nos forma enquanto pessoas situadas no mundo. É o que o psicólogo e filósofo norte-americado George Herbert Mead (1934) nos lembra desde a década de 30 através dos seus trabalhos sobre o comportamento social: que as pessoas vão criando e validando o sentido de si (o self) através da interação com “outros significativos” e com o “outro generalizado”, no sentido da sociedade onde estão inseridos. Como também os sujeitos vão definindo as suas pertenças identitárias a grupos através da criação de fronteiras simbólicas mediante lógicas de recriação e manutenção de identidades sociais, vistas por oposição e em dualismos de puro/impuro, limpo/sujo, ordem/desordem, de modo a recriarem o seu lugar no mundo. Ou seja, eu diria que as nomeadas coletivas são uma prática política.

"ninguém nasceu para ser servil e morrer"

Num destes dias e nas voltas pelas estradas e ruas da urbe, enquanto levava ou trazia alguém, ouvia na Antena 3 a inconfundível voz de Anibal Luxúria Canibal, dos Mão Morta, a cantar repetidamente o refrão de uma das suas mais recentes canções - "Viva La Muerte", com uma tal intensidade e cadência que fiquei eu próprio a cantá-la e, depois, a reflectir sobre o seu alcance e relevância. Sem querer aprofundar ou complexificar muito a questão, não posso deixar de afirmar aqui a minha visceral concordância com essa afirmação cantada em forma de slogan dos direitos humanos. A afirmação simples, é uma ontologia da nossa condição. De facto, há muito que a humanidade foi convencida que o trabalho, que trabalhar a soldo, dignifica a condição humana e que não cumpriremos o nosso devir se assim não nos comportarmos e existirmos, ainda que detestemos aquilo que nos couber. Uma falácia absoluta mas plenamente (universalmente) conseguida, pois vivemos acreditando que ser "servil" é um desígnio ou mesmo um determinismo para a nossa existência. Tenho certo que o trabalho, tal como o capitalismo o transformou e re-significou, não dignifica nada nem ninguém. Dignidade será sempre o respeito pela vida de cada um, sem humilhação, sem exploração e sem liberdade, que é, precisamente, aquilo que o trabalho a soldo foi, é e será.

21 julho 2025

agora sim, o fim

Afinal, saiu mais um número do Jornal de Letras (nº 1429), atrasado e, este sim, mais do que certo, o último. Partilho aqui parte do editorial de José Carlos de Vasconcelos, seu director desde o primeiro número, onde, mesmo não querendo, admite o seu fim e as razões que o trouxeram até aqui.

ler da, ainda, Primavera


Ainda que já na esta estação seguinte, saiu a LER. Irá comigo de férias em Agosto e far-me-á companhia nas sombras possíveis.

17 julho 2025

jornal de letras

Era sabida a dificuldade em que a publicação sobrevivia, mas ainda assim manteve a sua periodicidade sem interrupções. Foram vários os avisos do seu director e de alguns dos seus colaboradores de que o fim estaria próximo. Pois bem, pelos vistos confirma-se, o Jornal de Letras acabou. Há muitos anos que comprava, lia e guardava as edições todas e foi com pena que, ao ir procurar a nova edição (a nº 1429, a partir de 9 de Julho), me foi dito que já não iria sair. Foi, durante muito tempo, o único jornal em papel que eu comprei. Lamento muito, até porque o vazio que deixa não será facilmente recuperado.


(capa do último número nas bancas...)

10 julho 2025

sempre mais escola

Não poderia estar mais de acordo com a afirmação que titula estas palavras. É de uma clareza e firmeza programática que só a posso subscrever, enaltecer, agradecer e ambicionar. Esta afirmação é título de uma crónica de Valter Hugo Mãe no Jornal de Letras e porque é um texto bonito, sentido, mas também responsável e ideológico, não resisto a partilhar os sublinhados que nele fiz...

"A pergunta de saber o que fazer à escola devia ser colocada a todas as pessoas e respondida como se responde à própria vida. Cuidar da escola é cuidar de sermos ainda humanos. [...] Levamos décadas de governos que perigam a imagem do professor. [...] O que me incomoda é o inquinado de se atacar a classe educadora para se criar nas famílias a convicção de que apenas pagando a especulação poderão potenciaríamos nos filhos um futuro capaz. Incomoda-me que se especule com a mais elementar máquina de justiça da sociedade que é a formação intelectual e ética de cada pessoa. Não entender que toda e qualquer vulnerabilização dos professores é um boicote ao futuro dos alunos é ser-se de uma planura de ideias insuportável. O desprestígio da classe dos professores acarreta a desgraça das crianças e dos jovens. [...] São os alunos que deitamos a perder se destruirmos a docência e a solenidade da docência. [...] Não pode haver lógica na predação aos professores, senão a de criar massas humanas sem noção crítica e facilmente manipuláveis. Sem livros não há resistência à tirania. A falta de conhecimento é o dado fundamental da fragilidade social. [...] Povos fortes e longevos são povos de cultura, memória, conhecimento, sabedoria. [...] Não creio que um génio dê no Mundo sem uma nutrição profunda. Sem mestres e seriedade. [...] A escola prestigiada é o mesmo que uma sociedade prestigiada, é o mesmo que a decência. A verdadeira decência com quem somos e com quem virá a ser."
(Valter Hugo Mãe, in Jornal de Letras nº 1428, Junho 2025)

violação de privacidade

Depois de vários meses a adiar o momento, hoje foi dia de ir à procura de óculos e lentes novas. Depois de visitar uma outra óptica, entrei numa outra localizada no centro da cidade do Porto. Tirei senha e, depois de cerca de 10 minutos à espera, ouço chamarem pelo número da minha senha. Sou convidado a sentar-me, explico o que preciso, mostro a prescrição do oftalmologista e a menina, simpática, começa a trazer-me armações para experimentar e escolher. Terei experimentado dez a doze armações e, no fim, fiquei com quatro para escolher entre elas, mas logo referi que iria esperar pela chegada da minha mulher para saber da opinião dela.
Pois bem, quando chegou, comecei a colocar no rosto cada uma dessas quatro armações e, para meu espanto e até espanto da minha mulher, logo uma mulher que estava a ser atendida num outro balcão, se aproximou e começou a opinar sobre cada uma das armações que eu ia colocando. Mas num tom e com uma acertividade que mais parecia ser ela a minha mulher. Opinou, opinou, opinou e deu o seu veredicto final, para logo depois desaparecer, não sem antes comentar... "enfim, mas você é que sabe!", como quem diz, eu, que tenho extremo bom gosto, já decidi o que deve comprar, agora você faça o que entender, mas depois não se queixe.
A sério?!... Na troca de olhares com a minha mulher, pude manifestar a minha estupefacção por aquela inusitada intromissão.

17 junho 2025

num impulso

Conheci-a há pouco tempo, talvez dois ou três anos, e logo simpatizei com ela. Mulher negra, nascida na Nigéria, feminista e activista, bonita e bem falante, assim é Chimamanda Ngozi Adichie. Pouco ou nada li dela, a não ser uma ou outra entrevista, um ou outro texto e uma conferência TED que não só me prendeu os sentidos, como a passei a partilhar com os meus alunos. Um destes dias, e num impulso mais emotivo do que racional, comprei todos os seus livros disponíveis nas livrarias por onde passei. Agora, o mais difícil, encontrar tempo e espaço para ler tudo isto...

16 junho 2025

depois de Auschwitz, Gaza

Encontrei no suplemento Ípsilon, do jornal Público, da passada sexta-feira, dia 13 de Junho, esta opinião sobre a questão de Gaza. Eu que sou um leigo, mas que abomino o Estado Sionista, encontrei aqui uma opinião esclarecida, eloquente e bem fundamentada. Leiam, se fazem o favor.

05 junho 2025

eufemismo de estado

Leio na imprensa de hoje que Luís Montenegro, recém-eleito Primeiro Ministro, apresentou ontem o novo elenco governativo e, num ambiente de monótona continuidade, uma das principais novidades foi a criação de um ministério para a "reforma do Estado". Muito eu gostava de saber que reforma será essa, mas solenemente desconfio que tudo não passa de um eufemismo, que resulta ou é consequência directa da falta de coragem, leia-se cobardia, do Primeiro Ministro e da coligação que o suporta, para utilizarem o termo "privatização". Isto porque qualquer referência à palavra reforma, para os partidos de direita, só é entendida como uma metonímia, essa figura de estilo em que se utiliza uma determinada palavra em vez de uma outra, aquela que verdadeiramente querem significar. Aguardemos e veremos.

pai presente

Eu não sei o que a História dirá de mim, provavelmente nada. Nem sei se estou interessado nisso, ou se isso é realmente importante. O mais que certo será um desaparecimento anónimo e um completo esquecimento com o passar do tempo, tal como acontece à grande esmagadora maioria dos seres humanos, isto é, só haverá memória enquanto aqueles que nos conheceram não desaparecerem também.
Dito isto, e porque foi motivo de introspecção recente, tenho para mim que tenho sido um pai presente na vida dos meus filhos e tenciono continuar a sê-lo. Se mais não for, eles irão guardar de mim essa memória e, isso sim, é, em consciência, superlativo.
(escrito a 29 de Maio de 2025)

04 junho 2025

eu vou lá estar...

29 maio 2025

direito a vaguear

Encontrei esta ideia na "Poucaterra", revista dedicada ao acesso à terra, agroecologia e convivialidade, e que me chamou a atenção numa das últimas visitas à livraria Gato Vadio, na cidade do Porto. De facto, e tal como acontece em países nórdicos, a ideia de consagrarmos na lei o direito a podermos caminhar por todo o lado, seria uma alegre e feliz concretização para a liberdade, o bem-estar e o equilíbrio entre os seres humanos e o território, enquanto casa mãe que nos abriga a todos. Esse direito a podermos caminhar por todo o território, seja em montanha, floresta, monte, planície ou praia, exceptuando terrenos cultivados, traria consigo outras responsabilidades cidadãs, tais como o respeito pelos ecossistemas, não poluir e não estragar ou destruir a biodiversidade existente. Eu participaria activamente nesse esforço de regulamentação legislativa deste direito e votaria em quem o propusesse e defendesse.

27 maio 2025

irritação

Se há coisa que me irrita é a indiferença a que sou, a espaços, votado por quem tem por "obrigação" atender-me em cafés, bares ou esplanadas. Sentar-me e perceber que poucas mesas estão ocupadas, mas que os empregados estão muito atarefados a fazer não sei o quê; entretanto, perceber que à minha volta as mesas vão sendo ocupadas e logo depois, diligentemente, atendidas pelos mesmos empregados, enquanto eu continuo sem merecer essa diligência... é como se não estivesse ali. E o pior é que neste mesmo estabelecimento já não é a primeira, nem sequer a décima vez. Quando assim acontece, como hoje, tenho saído sem dizer nada. Não sei se será hoje, mas um dia destes, hei-de reclamar junto de alguém da gerência. Não é por nada, apenas irritação.

eu vou lá estar...

crescendo

Quando completo cinquenta e dois anos de vida, importa-me dizer que me sinto bem. Não conseguindo, nem querendo, escapar ao inevitável processo de envelhecimento biológico, a percepção é de que continuo a crescer. Sem mazelas físicas ou psicológicas, sem dores na estrutura (finalmente, a reumatologista acertou numa droga eficaz), com uma agenda recheada de desafios e tarefas que me aprazem. Sou um privilegiado, de bem com a vida.


(bilhete que recebi dos meus pais. Todos os anos, nesta data, me entregam ou enviam palavras de celebração e todos os anos eu as guardo. Tenho uma colecção delas que guardarei para sempre)

23 maio 2025

a luta continua

13 maio 2025

camionista, eu?

Se me querem ver tranquilo e satisfeito, ponham-me ao volante de um veículo que eu irei até ao fim do mundo. Não há viagem longa que me desagrade. O enorme prazer que é, ainda hoje, fazer-me à estrada e percorrer quilómetros e mais quilómetros, leva-me à seguinte ponderação: terei eu passado ao lado de uma brilhante e feliz vida de camionista?

09 maio 2025

indiferença e ausência

Estamos a meio do período de campanha eleitoral das eleições legislativas, que vão acontecer no próximo dia 18 de Maio e eu permaneço alheado de tudo, ou quase tudo, quanto se vai passando e não pretendo alterar essa condição de ignorância face ao desenvolvimento desta "corrida" politico-partidária. Claro que irei votar e não me resta qualquer dúvida ou hesitação sobre onde colocar a minha cruz, sendo que a única certeza que posso aqui partilhar é de que não irei votar, uma vez mais, na lista do ainda meu partido (BE). As razões para esta certeza são evidências e factos que em consciência não posso negligenciar ou omitir e, portanto, alguns dos nomes indicados não são dignos da minha confiança política, nem dignos de uma ética pessoal, humana e política que eu preconizo e defendo.
Por outro lado, aproveitando esta oportunidade e porque a talhe de foice, até para não voltar ao mesmo assunto mais tarde, importa-me partilhar a confirmação da percepção que tenho de que não temos um único líder partidário com qualidade. Os partidos são muito pouco exigentes e em todo o espectro partidário é sofrível o perfil e a qualidade dos seus líderes. Teremos o que merecemos.

05 maio 2025

ir aos livros

"Nunca foi tão fácil fugir da manada. Nunca foi tão fácil ser jovem. Basta abrir um livro. Basta entrar numa biblioteca. Basta habituarmo-nos à emoção e ao prazer de procurar e de encontrar. Por enquanto, a Internet é apenas um meio de transporte. Confiar nela é como confiar no que trazem os correios. Trazem muita coisa gira, mas são um acrescento. Não são um substituto. Continua a ser preciso ir aos livros."
Miguel Esteves Cardoso, in jornal Público, 2 Maio 2025.

"território, agressões e resistências"


Aconteceu no Sábado, dia 3 de Maio, em Vinhais e no Auditório do Centro Cultural do Solar dos Condes de Vinhais, a primeira jornada cidadã, organizada pelas associações locais, Uivo, Palombar e Tarabelo. A ideia surgiu no início do ano, em Lisboa, aquando da participação na V Conferência Bienal Internacional de Antropologia do Ambiente. Desafiado(s) pusemos mãos à obra e tratámos de encontrar os protagonistas para a sua concretização. Por pretendermos que este evento se realizasse o mais breve possível, construímos uma comissão organizadora com representantes de cada uma destas associações. Foi, por isso, um processo rápido e que se pretendia ágil. Conseguimos estabelecer 3 de Maio como a data de realização do evento e, portanto, tivemos pouco mais de dois meses para preparar tudo, desde o programa, convidar oradores, comunicação, parceiros, imagem e toda a logística. Importa referir que não tivemos qualquer apoio financeiro. A expectativa era alta, mas ao mesmo tempo, alguma incerteza existia quanto à receptividade das pessoas e, consequentemente, quanto ao sucesso da iniciativa.
Chegado o dia, desde cedo se percebeu que a nossa mensagem tinha chegado a muita gente, pois inscreveram-se perto de oitenta pessoas, não só da região, como de outras regiões e do país vizinho. Depressa o magnífico espaço do solar ficou bem composto com a moldura humana que se interessa e está preocupada com aquilo que nos propusemos debater e partilhar.
Algumas notas que considero relevantes sobre o evento:
- todos os oradores convidados compareceram;
- os painéis e suas comunicações motivaram a plateia a intervir e participar;
- o tempo de cada painel foi curto para as intervenções pretendidas;
- as "forças vivas" da região fizeram-se representar e, algumas, quiseram associar-se ao evento;
- curiosidade, os candidatos autárquicos desta próxima eleição, ainda em 2025, inscreveram-se e participaram nas jornadas;
- fomos felicitados, não só pela iniciativa, como pela qualidade da estrutura do programa e das comunicações realizadas;
Em jeito de balanço, agora que já algum tempo passou, eu diria que esta iniciativa foi um tremendo sucesso, não só pelo número de pessoas que participaram, como pela qualidade e pertinência dos temas abordados, como ainda pela representatividade dos problemas que os territórios têm enfrentado e que se traduzem na quantidade e variedade de manifestações, oposições e protestos dos cidadãos e organizações.
No imediato, a minha intenção será conseguir produzir os vídeos do evento para que possam ser partilhados por todos nas redes sociais e, depois, reunir todas as intervenções para tentar construir e editar umas actas das jornadas. Para além disto, considero que face ao sucesso do evento, teremos todas as condições para voltar a pensar num evento do género, claro que com mais tempo de preparação, com outro orçamento e com a colaboração de mais parceiros e com mais apoios institucionais.

[ comissão organizadora: Luis Vale, Sara Freire, Daniel Vale, Sílvia Vale, Ricardo Vale, Sara Riso ]

29 abril 2025

soberania energética

Tal como a esmagadora maioria dos meu concidadãos, fui surpreendido pelo apagão de ontem. Estava em casa e, no imediato, não relevei a situação e só quando comecei a interagir com familiares e amigos, que se encontravam noutras geografias do país, percebi a dimensão da coisa. Pessoal e até familiarmente, este inesperado acontecimento não foi problemático, nem causou grande perturbação nas rotinas quotidianas, a não ser o lanche improvisado, por impossibilidade de aquecer ou confeccionar a refeição da noite.
Mas atento e consciente da dimensão do problema, a reflexão que me importa sobre o sucedido tem duas dimensões. A primeira, de cariz ontogénico, recorda-nos a condição vulnerável e totalmente dependente da energia eléctrica de cada um de nós, das comunidades e das organizações, sem termos plena consciência disso e pensando que, por defeito, ela faz parte da nossa existência. Só que não faz. A sociedade actual vive, literalmente, agarrada e dependente dessa fonte de energia e só nos momentos de ressaca, como o de ontem, porque surpresos, é que, algumas consciências se aperceberam dessa condição.
A segunda dimensão, diz respeito à noção de comunidade e à do próprio Estado, na medida em que o apagão de ontem foi consequência de uma situação que nós não controlámos, nem decidimos. O facto de estarmos conectados internacionalmente com outras redes eléctricas é um facto positivo, mas isso não deveria significar a nossa demissão na produção e distribuição de energia. Por outras palavras, o sucedido ontem foi uma amostra e demonstração daquilo que poderá um dia acontecer (distopia, ou não), pois o Estado português optou por encerrar algumas das centrais produtoras de energia e trocá-las pela importação de energia porque "mais barata", ao mesmo tempo que privatizou empresas do sector - EDP e REN, perdendo assim a soberania nacional neste sector.

18 abril 2025

bolo de bolacha

"...É a mais sublime sobremesa da doçaria nacional. Não o digo de ânimo leve. [...] Que se evapora das ementas à medida que o preço do cardápio aumenta, desaparecendo por completo nos restaurantes dos grandes chefs. Um bom bolo de bolacha não se deita em cama de coisa nenhuma, nenhum rio verde percorre o seu topo, nem é susceptível a desconstruções. Não se faz acompanhar de nada nem ninguém, assobiando solitária e alegremente pelos caminhos. Um bom bolo de bolacha é, aliás, indistinguível de um bolo de bolacha medíocre. Ergue-se muito quieto e direito na sua torre Mariana até que salta de uma base de papel rendilhado para o prato de sobremesa e caminha despreocupada e humildemente para nós, que o recebemos como a um velho conhecido, sem o contemplarmos, sem o comentarmos, sem o fotografarmos, sem pensarmos na sorte que temos por o frágil ecossistema de que a sua sobrevivência depende não ter ainda derretido. Comemo-lo como se nunca o fôssemos perder e, quando ainda vamos a meio da ingestão, fazemos, saciados, um gesto inefável na direcção do empregado de mesa a pedir o café, a conta ou o aguardente. Não mais pensamos nele até à próxima vez em que uma saudade estranha o convocar de novo à nossa presença."
João Pedro Vala, in revista LER (Inverno 2024/2025: pág. 100).

16 abril 2025

a quem possa interessar...


Eu vou lá estar. Apareçam.

ainda sobre os livros...

"Mas os livros não são objectos decorativos: é preciso tirá-los e abri-los sempre que nos apetece, e poder devolvê-los com facilidade ao lugar onde estavam. Daí que a coisa mais importante para um livro seja o acesso."
Miguel Esteves Cardoso, in jornal Público, 16 Abril 2025.

15 abril 2025

eu ainda acredito

Hoje, no início da tarde, resolvi actualizar o meu registo do acervo de livros que se vão acumulando cá por casa e relembrei este texto magnífico, sensível e lindo, considero eu, de Herberto Helder, republicado agora, na última edição do Jornal de Letras (nº 1422, Abril de 2025). Tanto neste texto com o qual eu me identifico...


03 abril 2025

Jornadas Cidadãs


A quem possa interessar. Motivados pelas recentes iniciativas extractivistas na região, vamos falar sobre "Território, Agressões e Resistências". Em breve programa detalhado.

01 abril 2025

ser transmontano

"Boa gente, estranha gente, vivendo presa aos anseios dum tempo que passou. Pertenço-lhe, nela me revejo, incapaz de distinguir entre a bênção e o castigo, apenas certo de que ser transmontano, tanto como uma origem é um destino."
José Rentes de Carvalho, in Tempo Contado, 18 Março 2025
(ligação para texto completo aqui)

quarto episódio do podcast

28 março 2025

entrudo

Há mais de uma década que não ia ao entrudo de Vila Boa. Recordo-o com nostalgia dos tempos de meninice e juventude, no qual participava e colaborava activamente na sua preparação. O entrudo na minha aldeia era um momento único de reunião e folia em comunidade. Um tempo de excepção e de tolerância para com os excessos, com momentos e tempos próprios e diferenciados, protagonizados pelos locais e para o público local, ou seja, para a própria comunidade.
Regressei este ano e o contraste com esse entrudo recordado não poderia ser maior. Aquilo que hoje acontece, e pelos vistos já acontece há muitos anos, nada tem de parecido com esse entrudo da minha juventude. Agora, trata-se acima de tudo de uma performance que os locais e não só dão a quem visita a aldeia nesse dia. Centenas ou mais de milhar de pessoas invadem a aldeia e percorrem-na em ronda com os referidos actores, máscaras, marafonas e madamas, povo abaixo, povo acima. São inúmeras as diferenças que não poderei aqui referi-las a todas, mas o que mais me impressionou foi o batalhão de fotógrafos profissionais e amadores, jornalistas e outros especialistas que acompanharam durante todo o dia os diferentes momentos deste entrudo que se diz ainda genuíno. Eu e mais algumas pessoas sabemos que de genuíno já pouco ou nada tem, mas enfim.
Nunca fui máscara, nem nunca me fantasiei de marafona ou madama, foi com surpresa e muita alegria que vi o meu filho, com treze anos a querer mascarar-se e a chocalhar miúdas e graúdas, activa e efusivamente ao ponto de ser noite, ter que regressar ao Porto e ele não querer sair de lá... Assim ele queira, regressarei anualmente a Vila Boa para que ele possa "deitar o entrudo fora".
Partilho algumas fotografias que fui tirando com o telemóvel, pedindo desde já desculpa pela fraca qualidade das mesmas.









ecossistema dos mortos

A propósito da sociedade a que dá o nome de transparente, o filósofo José Gil escreve um artigo no número actual do Jornal de Letras, no qual alerta para os perigos dessa sociedade que se afastará da igualdade e da liberdade democráticas e criará mais desigualdades, terror e injustiças. Mas aquilo que escreve sobre os ecossistemas e, em particular, sobre a erosão do ecossistema dos mortos, foi aquilo que me fez reflectir.

"A erosão de um outro ecossistema, o ecossistema dos mortos, que há muito recebe golpes profundos, contribui para este quadro apocalíptico. Quando falamos do 'passado', raramente nos lembramos de que é feito de antepassados. Referimo-nos a ele como o 'tempo passado', 'a tradição', um bloco de tempo que 'deixamos para trás', desbotado, cada vez mais desvanecido e amortecido. Não vemos no passado um presente que já foi, com vida e pessoas que perduram agora como personagens espectrais. Muitas das casas, muros, pontes e ruas das cidades e aldeias da Europa e do Oriente têm séculos e milénios de existência. A pedra e o espaço moldados pelos antepassados dirigem os nossos passos, perspectivam o nosso olhar. Vivemos à tona do passado, no meio dos mortos e dos sinais que nos deixaram. Mas tudo isso está a acabar."
José Gil, in Jornal de Letras nº 1421, Março 2025.

obesidades

 Leio sempre com atenção e prazer este senhor...

26 março 2025

45 anos de jornal de letras

"Cada vez mais me apetece ler o que há e barafustar contra o estado do mundo, de suas opções assustadoras perante as quais temos de erguer mais livros e mais consciência, mais informação e mais verdade. Mais resistência. Mais convicção na denúncia do quanto nos querem arrebanhar para interesses das elites financeiras, contra a dignidade dos povos todos."
Valter Hugo Mãe, in Jornal de Letras nº 1421, Março 2025.

caminho






Nunca fui caminheiro, peregrino ou turiperegrino, nem nunca senti qualquer chamamento para essa experiência física e/ou espiritual, sensorial e de superação. Fui desafiado uma ou outra vez para o fazer, mas sempre desconfiei das minhas capacidades físicas para tal empreendimento e, por isso, fui rejeitando tal hipótese.
Pois bem, agora e com esta idade, aconteceu aquilo que jamais imaginei ser possível, tentar fazer jornadas do caminho de Santiago. Isto aconteceu, não por qualquer epifania ou chamamento, mas quase por obrigação, ou comprometimento profissional. Faço parte de uma equipa de três antropólogos que se propuseram realizar a avaliação do potencial do caminho jacobeu Zamorano-Transmontano, uma alternativa ao caminho da Via da Plata. Este trajecto que inicia em Zamora, passa por Alcanices, Bragança, Vinhais e chega a Verín por Segirei, não está certificado, nem tem grande procura daqueles que se dirigem a Santiago. Contudo, sempre foi utilizado e existe um conjunto de caracteres ou manifestações patrimoniais, materiais e intangíveis, que dão conta ou comprovam essa utilização. Este projecto, premiado pelo CEI - Centro de Estudos Ibéricos, em 2024, implica percorrer a pé esse caminho, enquanto metodologia para conhecermos o seu trajecto, os patrimónios, as comunidades, a sinaléctica, etc. Assim, no início deste mês de Março, o Xerardo Pereiro, colega e amigo, agendou percorrermos o trajecto entre Alcanices e Segirei (Chaves), em quatro etapas: 1ª (1 de Março) Alcanices-Quintanilha; 2ª (2 de Março) Quintanilha-Bragança; 3ª (3 de Março) Bragança-Vinhais; 4ª (4 de Março) Vinhais-Segirei.
Com muitas dúvidas, mas cheio de mim, apresentei-me no Albergue de Alcanices na véspera da primeira etapa. Dormimos nesse albergue e saímos cedo em direcção a Quintanilha. Devida e exageradamente equipado (mochila a mais), caminhei lado a lado com o Xerardo e sem sentir qualquer incómodo ou dor durante cerca de 15 quilómetros. Quando nos aproximávamos de Trabazos o meu joelho direito começou a queixar-se, numa impressão que rapidamente passou a dor. Parámos para descansar um pouco, comer qualquer coisa, aproveitando eu para me drogar, numa vã tentativa de conseguir prosseguir caminho. Bem, a muito custo ainda consegui percorrer mais cerca de 8 quilómetros e meio e foi quando, depois de passar a fronteira "a salto" e já avistava Quintanilha, tive que desistir e colocar-me na berma da estrada com o polegar para cima. O segundo carro que passava parou e, para espanto de ambos, era um rapaz da minha aldeia que se dirigia para Bragança e me deu boleia até Quintanilha, onde esperei pelo Xerardo.
Mal chegámos ao albergue só quis descansar. Tomei um banho quente e deite-me até à noite e à hora de ir jantar. No dia seguinte, bem cedo, acordei à hora combinada para início da segunda jornada, mas não conseguia mexer-me... todo partido. O Xerardo prosseguiu caminho sozinho e cumpriu as quatro etapas inicialmente previstas.
Enfim, gostei muito da experiência e, pelo menos, tentei e fui solidário com o colega, mas ainda hoje estou a recuperar e tenho o joelho esquerdo a queixar-se sempre que caminho mais do que meia-dúzia de metros. Não voltarei a repetir tal ousadia, não vale a pena lutar contra o meu corpo e sua degeneração.

24 março 2025

incomodado e envergonhado

(imagem roubada do sr. google)

Eu não simpatizo e, como já aqui escrevi, não considero Luís Montenegro compatível com o desempenho das funções para as quais tem sido investido, mas o meu espanto e imediato incómodo quando dei de caras com este outdoor do Chega foi perturbador. Eu estou nos antípodas da visão do mundo deste senhor, nunca votei, nem votarei no seu partido (PSD), mas isto não se faz. Nem ao Luís Montenegro, nem à democracia portuguesa. Poderia dizer que o que sinto é vergonha alheia, mas não, aquilo que senti e sinto é vergonha pessoal e intransmissível, por haver a possibilidade de um partido político ter sucesso eleitoral com este tipo de agenda política e comunicação.

16 março 2025

zeitgeist tuga

"A nossa sorte depende, não só da competência dos respectivos dirigentes (partidários), mas, também do seu sentido ético. Desgraçadamente, competência e ética são atributos em falta no tempo que estamos a viver."
(António Galopim de Carvalho, in jornal Público, 16 Março 2025)

Sirvo-me das palavras do Professor Galopim de Carvalho para registar algo que já há algumas semanas queria fazer, mas outros afazeres me foram afastando desta tábua de escrevinhar. Refiro-me à actualidade política nacional e ao suicídio político de Luís Montenegro, fenómeno vertiginoso que tem acontecido, diante dos nossos olhos, ao longo das últimas semanas e que culminou com a queda do Governo e da Assembleia da República.
Muito se tem escrito, falado e gritado sobre o que aconteceu e já cansa a tiróide tanta informação, opinião, imputação de culpas (algo inacreditável) e oportunismo mediático em redor deste caso. Eu não preciso de mais informação para formar a minha opinião sobre o sucedido e sobre o perfil do nosso primeiro dos ministros. Tudo isto aconteceu porque, de facto, Luís Montenegro terá tido um comportamento incorrecto e impossível de tolerar nos dias de hoje. Sem querer entrar nos meandros de tudo o quanto foi dito e desdito, considero que o primeiro-ministro remeteu-se ao silêncio porque sabe que não pode falar sobre o seu comportamento e actividades dos últimos meses e anos. Ele não dá esclarecimentos porque não os pode dar. Numa atitude claramente desesperada e egocêntrica, mentindo e omitindo, ele preferiu deixar cair o seu governo, o seu partido e coligação, do que admitir publicamente o seu carácter não compatível com o exercício de funções de Estado.
Não me restam dúvidas, Luís Montenegro não tem carácter, nem qualquer ética republicana, é um lobista e um oportunista dos meandros partidários, que sempre foi bom e esteve mais disponível para se servir do Estado do que para servir o Estado.
Se acrescentarmos a isto, a realidade dos dirigentes partidários que têm lugar na Assembleia da República, que já mais do que demonstraram a fraca qualidade política, constatamos que, na verdade, a realidade político-partidária é tragicamente degenerativa. Independentemente da nossa posição, simpatia ou militância, percorremos o espectro partidário representado na Assembleia da República e não temos um líder partidário sério e competente. Dá pena constatar. Ainda assim, e não decorrendo da sua condição de líder, devo dizer que considero Rui Tavares o deputado mais bem preparado para a sua função, a grande distância da restante mediania e até incompetência política e desqualificação cidadã.
Assim vamos (sobre)vivendo, enganados pela promoção da incompetência e incivilidade. Há quem diga que é apenas o espírito da época.

despojados de sentido crítico

Elísio Estanque, no Sábado, dia 8 de Março escreveu um artigo de opinião no jornal Público ao qual deu o título de "Da força do poder ao poder da Força". Como gostei do texto e logo sublinhei as passagens mais relevantes, guardei esse jornal para mais tarde voltar a ele. Aconteceu hoje. Uma das suas principais ideias é que "num mundo cada vez mais complexo, são, paradoxalmente - ou talvez não -, as ideias mais simplistas, as narrativas mais primárias, que tomam a dianteira." Isto é de tal forma evidente que custa a crer que os poderes instituídos e seus representantes não se apercebam e não consigam contrariar e derrotar este ideário, mas mais do que comentar o texto, importa-me apenas partilhá-lo, naquilo que são, na minha opinião, os pontos-chave.

"Assistiu-se nas últimas décadas a um preocupante recuo da racionalidade e dos valores ilusionistas que projectaram a Europa como o principal baluarte da modernidade. Após o descrédito das ideologias que animaram a acção política ao longo do século XX: perante a falência do socialismo e do comunismo como sistemas alternativos ao capitalismo; com a erosão do sentido republicano e da social-democracia; o desgaste da cultura democrática em benefício dos identitarismos; são, todas elas, tendências que parecem empurrar-nos para um vazio de valores, de referências, de visão estratégia e, num certo sentido, para a rejeição da própria política na sua acepção mais nobre."
[...]
"Cada vez mais gente adere a posturas arrogantes dos poderosos e foge das personagens mais cultas e inteligentes. Porquê? Estão em marcha poderosos mecanismos psicossociais que se difundem na sociedade, reformatando as mentalidades dos cidadãos - ou pelo menos contigentes cada vez maiores -, tornando-os seguidores incondicionais de líderes autoritários e potenciais súbditos de futuros tiranos. A revolução informática e digital, dominada pela lógica neoliberal, está a tornar-se um poderoso instrumento no desmantelamento da cultura política democrática. Em vez de uma democracia electrónica, em vez de se usar esses meios como ferramentas ao serviço da transparência e da participação cidadã, eles são cada vez mais apropriados pelos interesses dos grandes negócios que manobram influenciares, sistemas algorítmicos e redes digitais com vista a maximizar lucros e docilizar públicos massificámos e alienados."
[...]
"Cresce uma vontade indómita de obediência dos fracos e ignorantes em relação aos ricos e poderosos. Nesse contexto, o líder salvífico surge travestido de uma linguagem exultante, estimulando nos seus incautos apoiantes uma projecção identitária que é tanto mais incondicional quanto mais emocional e radical contra o "inimigo" (o sistema, a elite política, o que for). São principalmente essas camadas mais vulneráveis que aderem ao discurso de ódio, e que recusam a retórica intelectualizada e incompreensível do campo político da esquerda."
[...]
"O actual paradoxo da humanidade é que tende a acomodar-se na ideia fictícia de que a IA e o mundo digital virão repor a ordem e distribuir oportunidades a todos. Esses equipamentos incidem no cidadão comum criando uma vertigem descontrolada de deslumbramento, a qual esconde o lado sombrio desta brilhante inteligência. Ela obedece a programas que, sob a capa de um acesso fácil ao conhecimento, promovem indivíduos intelectualmente limitados e despojados de sentido crítico, subtilmente conduzidos a aderir a modelos de consumo pré-formatados, seja no plano material, seja na oferta discursiva que dá expressão às grandes frustrações de pessoas ressentidas.
A revolução digital é suportada pelo poder do algoritmo, que é estrategicamente orientado; destina-se, por um lado, a suprimir o trabalho humano numa imensa variedade de sectores, mas, por outro lado, contribui objectivamente para moldar o nosso gosto, as nossas escolhas e servir os grandes centros de poder que controlam esses meios e as redes digitais em geral."

um enigmático estrangeiro


Há anos que ambicionava e ia procurando este livro. Trata-se de um relato de um estrangeiro, súbdito de Sua Majestade Britânica, sobre a sua curta estadia e vivência numa pequena aldeia (Coleja) do Alto Douro transmontano, nos finais da década de 1930. Um dia destes o meu amigo Rui Leonardo, de Torre de Moncorvo, enviou-me mensagem dizendo: "Luís. Escrevo só para te dizer que arranjei-te hoje a revista (nº 7 da revista Memória Rural) e o livro do Gibbons. Depois faço-tos chegar. Abraço." Depressa arranjei maneira de nos encontrarmos e, para além de receber esses presentes, ainda pudemos almoçar e pôr a conversa em dia. Bem hajas Rui.

15 março 2025

ao espelho

Ontem, dia 14 de Março, entre as 18 e as 20 horas, no edifício da Câmara Municipal de Bragança, numa iniciativa da UNED (Universidade Nacional de Ensino à Distância - Zamora), convidado para falar sobre Memória, Imaginários e Patrimonialização Jacobeia. Partilho alguns momentos "roubados" das redes sociais" da autarquia brigantina.




13 março 2025

dizem que vou lá estar


Convite

Exmo.(a) Senhor(a)
No âmbito do Curso “Caminhos de Santiago: o Caminho Português da Via da Prata por Zamora, Trás-os-Montes e Orense”, o Presidente da Câmara Municipal de Bragança, Paulo Xavier, incumbe-me de convidar V. Ex.ª para assistir ao evento, que decorrerá amanhã, sexta-feira, 14 de março de 2025, na Sala de Formação do Município de Bragança (Portugal), das 18h00 às 20h00 (Hora portuguesa) / 19h00 às 21h00 (Hora española).
Se não puder estar presente, pode acompanhar este curso ao vivo, através do seguinte link de streaming:
O curso é de acesso livre por ser gratuito, bastando no momento do início da conferência (18h00 em Portugal, 19h00 em Espanha) clicar no botão “play” e terá acesso ao vídeo. Caso queira aceder ao chat para interagir ou enviar alguma dúvida é necessário fazer login, o que significa que deve estar inscrito no curso (diretamente neste link:https://extension.uned.es/actividad/idactividad/43347 ou entrando em www.unedzamora.es) e estar cadastrado no portal UNED INTECCA (anexamos um pequeno guia de ajuda para conexão). 
Mais me incumbe de solicitar a vossa melhor divulgação junto de potenciais interessados.

27 fevereiro 2025

ainda, sempre, a luta

21 fevereiro 2025

abortar já a lei dos solos

Ouvi esta manhã no rádio do carro, enquanto dava as voltas da rotina matinal, que o ministro Castro Almeida também tinha uma quota numa sociedade imobiliária e que só a vendeu na semana passada. Diz ele que o fez, porque percebeu que essa participação poderia ser associada a qualquer benefício com a nova Lei dos Solos e, portanto, tratou logo de resolver o assunto.
Esta gente deve pensar que somos todos parvos. Se não queria ter problemas teria vendido essa participação quando aceitou fazer parte do governo. Esta atitude de esperar para ver se ninguém repara é uma desonestidade e, digo eu, prática corrente tanto no presente como em governos pretéritos.
Depois querem que alguém acredite que esta Lei dos Solos não foi promovida para beneficiar alguns deles?! Claro que foi e percebe-se isso muito nitidamente com estes manifestos conflitos de interesses entre governantes e negócios privados. A hipocrisia de venderem a ideia de que esta lei resolveria o problema da habitação em Portugal é um crime que lesa o Estado, mas jamais alguém será responsabilizado por ele.
A estratégia da extrema-direita com a moção de censura ao Governo não é aceitável e percebe-se o objectivo de desviar a atenção dos problemas que a bancada do Chega, pejada de criminosos, está a ter com a justiça, mas estas atitudes dos nossos governantes só fazem crescer a desconfiança dos cidadãos e atiram-nos para os braços de todos os populismos.
Esta lei dos Solos deveria ser abortada já.

20 fevereiro 2025

assim, sem limites

"Em escassas décadas, a democracia norte-americana foi capturada por uma oligarquia possuída por uma avidez predatória sem limites. As instituições pioneiras da democracia representativa transformaram-se em instrumentos de forças poderosas, que ameaçam o futuro dos EUA e a sobrevivência de sociedades organizadas à escala planetária."
Viriato Soromenho-Marques, in jornal de Letras nº 1418, Fevereiro 2025.

14 fevereiro 2025

vigiar e punir


Aí está, ao bom estilo Foucaultiano, temos o governo da nação a anunciar, com pompa e circunstância, a construção de "centros de detenção para migrantes ilegais". E nada mais solene do que um ministro da Presidência gritar para o mundo: "É importante que o mundo saiba que acabou a política de portas escancaradas". Muito bem senhor ministro, o mundo fica não só a saber, como fica absolutamente rendido a tamanha sapiência e determinação. De facto, nada mais decente e eficaz do que prisões para resolver o não-problema das migrações. Será o pretexto ideal para retirar da nossa vista a diferença que tanto incomoda a alguma gente. Esta deriva securitária é mais uma vitória para a extrema direita nacional, que consegue indelevelmente influenciar a este ponto a política do governo do PSD.
Ao alto, fotografia da notícia do jornal Público desta Sexta-feira.

em suporte talão

Um agradecimento especial ao pequeno Manuel por este registo, artístico e que desde logo se transformou numa recordação, ainda que esbatida, mas sei, plena de carinho.

boa e má consciência

É de lixo que se trata e da boa e má consciência em relação à sua produção. Há muitos anos que faço reciclagem do lixo que fazemos cá em casa e essa é a boa consciência de quem percebe que essa é uma responsabilidade individual e cidadã. Mas esta boa consciência traz consigo, inevitavelmente, o lado mau e que tem trazido problemas de consciência crescentes. A quantidade de plásticos, vidros e papeis/cartões que se acumulam diariamente, numa habitação em que moram quatro pessoas, é um absurdo. Nem sequer vou referir a questão financeira, ou seja, quanto dinheiro se gasta nessas embalagens, materiais e formatos que nos vendem agarrados aos bens que realmente precisamos? O que mais me preocupa é mesmo a dimensão da coisa. Apesar de não ser tarefa fácil, aqui sim, precisamos de um decrescimento.

13 fevereiro 2025

evolução no feminino

"Os corpos femininos dos mamíferos são exactamente onde a evolução acontece, são estes os corpos que criam os bebés, é este o verdadeiro motor da evolução. É muito estranho [a mulher] ter sido uma personagem secundária durante tanto tempo em quase todas as histórias sobre a evolução."
Cat Bohannon, in jornal Público, 10 Fevereiro 2025.

07 fevereiro 2025

a quem possa interessar...


Eu ainda não decidi, mas estou a ponderar participar.

prioridade para as nossas cabeças governativas

Ontem, dia 6 de Fevereiro, no jornal Público, Luísa Semedo coloca questões importantíssimas para a nossa existência actual e possíveis futuros. Para quem possa interessar-se, deixo a digitalização do artigo na íntegra.

05 fevereiro 2025

gaza, a Reviera do Médio Oriente

Já estamos habituados às travessias, aos desvarios e aos inusitados pronunciamentos do actual presidente dos EUA, mas as suas declarações mais recentes sobre Gaza são uma plena aberração, um manifesto hostil e um pronunciamento sobre o ímpeto imperialista que com esta administração ganhou alento e se instalou na Casa Branca. Donald Trump afirmou, estando ao lado do primeiro-ministro israelita, que os EUA querem assumir o controlo da Faixa de Gaza, querem expulsar definitivamente de lá os palestinianos, obrigando "países amigos e solidários" a criar as condições necessárias para os receber, e reconstruir o enclave, um lugar magnífico e com vistas para o mar, para o transformar num resort de luxo "a Reviera do Médio Oriente", para vender ao turismo.
Para além da estratégia comunicacional, mais do que conhecida, de entrar a pés juntos para chocar e escandalizar quem o ouve e, depois, parecendo que está a recuar, efectivar um outro plano atenuado, mas mais ou menos semelhante, estas declarações de Trump são uma apologia do extermínio e genocídio do povo palestiniano. Mas mais, são a concretização de um plano que há muito o governo sionista de Israel tem vindo a seguir e a praticar, numa atitude paradigmática daquilo que Hannah Arendt denominou de banalização do mal. Resta saber se o resto do mundo vai permitir, ou se vai reagir?

04 fevereiro 2025

magnífico locus etnográfico


Não é novidade, nem surpresa. É algo sabido, previsível e até expectável, mas resulta sempre em algo novo, singular e peculiar.Vir a uma repartição pública, em especial à Segurança Social, logo pela manhã é uma experiência pela qual todo o cidadão deveria ser obrigado a passar. Eu, nestes meses entre Dezembro e Fevereiro, conto já cinco visitas e em todas elas fui obrigado a esperar mais de duas horas para ser atendido (hoje já estou à espera há cerca de uma hora e meia e ainda tenho 22 pessoas à minha frente), mas eu sou paciente e consigo, de alguma forma, transformar em útil e rentável este tempo "morto". Entre leituras, sublinhados e comentários, pequenas notas e apontamentos, o que mais gosto é estar atento à polifonia, nalguns momentos caótica, que existe sempre, como que uma música de fundo que não nos deixa dormir ou abstrair deste lugar, protagonizada muitas vezes por personagens caricaturais.
Hoje fui arrancado da leitura do jornal diário por uma voz grossa e estranha que, exaltada e proveniente das mesas de atendimento, se fez ouvir em todo o piso. Só pude ver o segurança a dirigir-se ao local e, a partir desse momento, uma discussão de tolos, entre alguém a falar numa língua estranha entremeada com algumas palavras em português e alguém a tentar acalmar a situação. Passados não mais de 10 minutos aparecem na sala de espera dois polícias acompanhados por um indivíduo que, pela aparência, terá proveniência, como agora se diz, no Indostão. Os polícias interrogavam-no, pediam identificação, documentos e ele, evasivo, não apresentava nada, apenas mexia no telemóvel querendo mostrar algo, pelos vistos sem qualquer interesse para a autoridade, que insistia em pedir-lhe identificação do país de origem (depois acabou por dizer que era indiano), e o papel da residência temporária. Não mostrou nada, nem houve sequer uma comunicação mínima entre eles. Os polícias, já fartos, pediram-lhe para os acompanhar para a rua e levaram-no não sei para onde.
Conto este episódio, porque este incidente foi motivo, de imediato, para uma intensa e animada discussão, em voz alta, entre alguns dos mais de quarenta utentes que, tal como eu, aguardavam na sala de espera a sua vez. Infelizmente, não registei a conversa e apenas me esforcei por reter aquilo que mais gostei.

Senhora A (meia-idade, diria eu com sessenta e poucos anos, que passou o tempo para trás e para a frente, a fazer e a receber chamadas, muito ocupada, com certeza): 
"- isto é uma pouca-vergonha! Vem esta gente de fora e chegam cá e têm tudo. Trabalho, casa, dinheiro, subsídios... e depois ninguém os consegue tirar de cá!"

[ fez-se silêncio na sala, algumas pessoas acenaram positivamente com a cabeça, outras assobiaram para o lado e eu, eu hesitei em pegar ou no telemóvel, ou no caderno, mas este dava muito nas vistas e com o telemóvel, seria só mais um... comecei a escrever estas linhas ]

Senhora A:
"- e digo-lhe mais (já a dirigir-se para uma outra senhora que lhe tinha dado atenção com a expressão corporal), dão tudo a essa gente que vem de fora, muitos deles nem querem trabalhar, e nós, e os nossos, não temos direito a nada."

[ mais silêncio e mais concordância ]

Senhora A:
"- Mas eu não tenho nada contra pessoas que venham para cá, coitados, para viver melhor, mas olhe... eu, se depender de mim, voto no Chega e no André Ventura que, vocês vão ver, manda logo esta escumalha para a sua terra. Acaba logo com esta pouca-vergonha."

[ aqui o silêncio incómodo transformou-se numa indignada e caótica altercação entre diferentes perspectivas sobre o assunto, com algumas vozes femininas e de travo exótico a insurgirem-se perante tais afirmações ]

Senhora B (jovem, negra, pelo timbre de origem africana, atrás de mim):
"- que conversa é essa?! Mas quem é que me manda embora?! Isto é seu? Isto é tanto seu como meu. Deixa de conversa!"

Senhora C (quase idosa, pelas vestes, cigana, que foi anuindo ao que a senhora A foi dizendo):
"- andam sempre atrás de nós, temos de andar sempre a correr para aqui e para ali, para conseguirmos aquilo que temos direito. Depois, chegam estes e não respeitam ninguém..."

Senhora D (jovem, negra, também de origem africana, que se levanta porque foi chamada, e ao passar pela senhora A, atira):
"- tu és muito inteligente caramba. Nunca vi ninguém como tu. Parabéns! Tem vergonha!..."

Senhor E (meia-idade, ou melhor, idade de reforma ou pré-reforma, baixa estatura, bigodaço russo, talvez pelo excesso do cigarro, e cara carcomida pelos consumos e pela vida, casaco de cabedal, brinco na orelha, cabelo raro escovado e molhado para trás - "cabelo à foda-se", portanto - que levantando-se e aproximando-se da senhora A, comenta):
"- não vale a pena... não são os portugueses, ou os chineses, ou os indianos, são alguns indianos, ou alguns chineses, ou alguns portugueses. A senhora não pode falar assim. Deixe lá essa merda."

[ enquanto estas falas aconteciam, várias outras pessoas entabularam conversas paralelas, o que fez vir o segurança espreitar e, sorrindo, pedir calma. Mas ninguém lhe ligou patavina e continuaram alegremente a desdizer-se, até que uma voz feminina, tranquila e com sabor do Brasil, sentada ao meu lado, disse: ]

"- Calma minha gente. Até Jesus emigrou!"

[ olhei de lado para ela e registei logo a frase, pois percebi de imediato o seu potencial para terminar este instante urbano ]

Post-Scriptum: são 11:15 horas, estou à espera há mais de duas horas para ser atendido e ainda tenho 10 pessoas à minha frente. Paciente e satisfeito pelo proveito da manhã, aguardarei a minha vez.