13 maio 2009

concurso cronistas - 1º desafio

Desafio:
Prezado Cronista,
Por certo poderia solicitar o que vou pedir abaixo ao nosso correspondente aí em Jerusalém, mas é provável que o resultado fosse apenas uma reportagem fria e impessoal que não contemplaria o que agora precisamos aqui na redação.
Ocorreu-me que a sensibilidade, ou o lirismo, ou o humor, ou a ironia, ou a visão filosófica de um bom cronista (categoria em que o incluo) seriam mais esclarecedores desse surpreendente fato.
Chegam-nos desencontradas notícias dos incidentes dessa manhã aí na capital da Palestina. Dizem os poucos informantes esclarecidos que um certo nazareno teria feito uma notável entrada na cidade, aclamado pelo povo. Dizem que se trata de mais um desses profetas que às margens dessas estradas hebraicas crescem como a relva... Dizem, ainda, que um tal fato teria graves repercussões junto ao Sinédrio e, principalmente, entre os homens de Roma aí sediados.
Esses parecem fatos; outros, pelo exotismo e bizarrice, mais parecem exageros e boatos de quem ouviu o galo cantar e não sabe onde: dizem que ele teria entrado na cidade triunfalmente montado em um elefante à moda dos Marajás. Dizem que a multidão gritava eufórica o nome de uma certa Rosana da qual não temos nenhuma informação. Dizem, por fim, que as pessoas tiraram as próprias roupas para forrar-lhe o caminho com esse inusitado tapete.
Bem, como notícia é de pouco interesse para o público, mas como crônica pode render uma notável página para este periódico.
Mesmo considerando que, sob a pressão dos fatos e pela urgência da expressão, cronistas são impiedosamente desmentidos pela História, em se tratando de crônica, esse é o nome do jogo, e, mesmo assim, seu testemunho todo pessoal termina por ser mais uma feição do fato; porque o contraponto disso é que, quando acerta, trasveste-se o cronista de profeta e de inventor da História.
Escolha o viés que melhor lhe aprouver e envie-nos até dia 5 pelo e-mail que já conhece a crônica sobre os eventos que há de ter presenciado aí nessa cidade que ora o abriga.
Aguardo ansioso
O Editor

Crónica:
Jerusalém – refundação de uma teogonia
As notícias que iam chegando à grande cidade, através de viajantes, de comerciantes, de militares e de mensageiros enviados pelos governantes, não só iam alimentando a curiosidade e a agitação popular, como eram recebidas e percebidas pelo poder vigente como potenciais focos de desestabilização social e de ameaça real às instituições estabelecidas. Era com crescente agitação e ansiedade que Jerusalém recebia as novas vindas do lado de fora das suas muralhas e de geografias distantes. Nas adegas, nas tabernas e nos prostíbulos por onde eu deambulava não se falava de outra coisa, num misto de curiosidade e de assombramento, mas com o devido cuidado e desconfiança. Com facilidade percebi esse ambiente intimidatório e de censura, imposto por uma legião de detractores pagos a soldo. A custo de algumas canecas de vinho, fui conseguindo sussurrar com alguns viajantes que diariamente chegavam à cidade. Foi através deles que ouvi falar pela primeira vez de um messias, filho de Deus. Foi também assim que pude perceber que o seu caminho viria a cruzar-se, em breve, com a cidade que eu também visitava.
Os testemunhos desses nómadas, viajantes e negociantes, de carácter duvidoso e com discursos mais ou menos fantasiosos, com os quais fui falando ao longo das últimas semanas relatavam-me experiências formidáveis, nunca antes vistas: da cura de enfermos à promessa de um reino no céu, da ressurreição de mortos ao despojamento de bens terrenos, da simplicidade dos modos e do verbo ao convívio e defesa dos proscritos. Práticas e discursos que facilmente atraíam indigentes, foragidos, bandidos, miseráveis e todas as hordas de marginalizados pelas sociedades, que em tumulto e anarquia o recebiam, ouviam e seguiam. Tudo isto me parecia estranho, muito estranho e, por isso, a minha curiosidade inicial deu lugar a um entusiástico interesse. Praticamente abandonei aquilo que me trouxera a esta magnífica cidade e resolvi aguardar mais uns tempos na expectativa de poder conhecer tal personagem. Assim fui ficando, adiando sine die o meu regresso ao Norte e à rotina de meu ofício.
Neste tempo de espera pude conhecer uma cidade fervilhante, agitada e confusa. Ruas inundadas de rotinas seculares e impregnadas de panóplias de odores. O dia-a-dia de Jerusalém desenrolava-se assim e, condicionado pelo meu saber, em cada olhar, em cada gesto ou palavra descobria um entendimento que se assemelhava a uma grande conspiração na qual eu interessado participava. Mas se a rua assim vivia, quem governava a cidade não se reprimia ao manifestar o seu desconforto com a eminente chegada do profeta. Os rumores que chegavam à rua e a mim, vindos do Sinédrio, esse Olimpo dos senhores de Israel, onde se sentam os juízes a conversar, a discutir e a decidir sabiamente as leis para a cidade, eram de um ambiente radicalmente tenso e de afrontamento de opiniões e perspectivas. O consenso estava dali arredado e, sendo o coração do poder simbólico da cidade, naturalmente os seus guardiões tentavam reagir e proteger o seu poder, preparando-se para a chegada do auto-denominado filho de Deus. Foi com enorme repressão que a ordem foi mantida, tentando distrair o povo com festas e oferendas.
Enfim o grande dia. Ao contrário do que é meu hábito e sem sentir qualquer maleita, tivera uma noite agitada. Acordei ainda antes da aurora. Sem nenhum afazer resolvi sair das muralhas e passear sem destino pelos campos e pomares que rodeiam ao longe a grande muralha urbana. Estava uma manhã fresca, razão pela qual estendi por mais tempo o meu passeio matinal, afastando por completo da mente a turbulência que vivenciara nesses últimos dias. Num recanto do caminho, perto de um pequeno ribeiro, decidi parar para descansar um pouco e refrescar-me. Em tranquilo silêncio e debruçado sobre o fio de água fresca, sem me aperceber, ouço uma voz perto, muito perto, perto demais e que apesar de estranha logo reconheci. Num sobressalto levantei-me e dirigi o olhar na direcção dessa voz. Num calmo e claro tom aquele indivíduo, rodeado por uma dezena de homens e mulheres, perguntou-me se podiam beber daquela água e descansar um pouco perto de mim. Estremeci e a custo consegui reagir ao deslumbramento daquela visão. Não tive qualquer dúvida, logo percebi que estava perante o profeta, aquele de quem todos falavam e acerca de quem todos especulavam. Ali, à minha frente, e a pedir-me algo…
Estupefacto fiquei durante largos minutos a observá-los e a tentar refazer-me do espanto inicial. Instalaram-se confortavelmente na erva incerta, como quem se deita na melhor das camas e assim ficaram em silêncio. Depois, remexeram nas sacolas, retiraram delas pão que distribuíram, incluindo a mim e, mesmo antes de o ingerirem, puseram-se a olhar o céu e, num murmúrio, disseram várias palavras que não percebi. Enquanto comemos aquele saboroso pão, conversámos muito. Simpatizei com ele, com seus modos calmos e tranquilos, mas não tive coragem para o confrontar com as histórias que dele ouvira e que tanto me intrigavam.
Num movimento suave e calmo todos se levantaram e se prepararam para seguir viagem. Convidou-me para o acompanhar naquele pequeno percurso. Acedi e pusemo-nos a caminho. À medida que nos aproximávamos das portas da cidade consegui perceber que o grupo crescia. Eu seguia-o de perto, apenas à distância do perímetro dos seus fiéis acompanhantes. Mesmo antes de entrarmos na cidade, fui engolido pelo mar de gente que se abeirava nos caminhos e não mais consegui aproximar-me. Segui no mesmo sentido, atropelado, empurrado e comprimido pela força centrífuga daquele movimento, mas percebia que cada vez me afastava mais e regressava à minha condição inicial. Aquilo que se passou a seguir foi indescritível: a cidade em peso nas ruas, num completo caos e desordem. Por um lado, a vontade popular de chegar perto e tocar o profeta. Por outro, a repressão das forças militares que, sem pudor ou senso, maltratavam os seus concidadãos, numa desesperada tentativa de contrariar aquela genuína vontade e manter qualquer réstia de ordem.
Enquanto cronista que continuará a vaguear por este mundo, que a cada dia parece maior, tenho por desejo conseguir transmitir-vos aquilo que os meus sentidos, com veracidade, experimentaram. Espero eu, e que os deuses me auxiliem, que tudo aquilo que o meu olhar testemunhou, nestes dias, chegue até vós e que, através da minha humilde condição e arte, consigais ter uma pequena ideia da loucura que os dias de hoje viveram. Garanto-vos que, em vários momentos, cheguei a desconfiar da minha sanidade mental, pois estas experiências foram por demais intensas, eu diria mesmo, de pura excitação individual e exaltação colectiva. Os dias de amanhã não me pertencem, não os poderei inventar, mas gostava muito de os conseguir antever e de saber o que acontecerá a este “louco”, que em nome de um Deus único, tem revolvido os paradigmas instituídos e, acima de tudo, tem posto em causa os fundamentos éticos, morais e religiosos das comunidades por onde tem passado. Tal como esse filho de Deus tem ensinado a quem o segue e escuta: a partir de agora o futuro a Deus pertence, apenas e só.

Avaliação e comentários: (até 10 valores por júri)
Betty Vidigal - Nota 6,5;
Marco Antunes - Bem escrito e interessante, pude perceber o homem de imprensa em cada palavra do cronista, construir um tal retrato e prcorrer com segurança as armadilhas do enredo proposto é tarefa para raros. Nota: 10
Lorenza Costa – É um texto correto, mas falha na transmissão daquilo que, segundo o cronista no último parágrafo, teria sido seu desejo transmitir. O encontro casual com Jesus num ambiente campestre, fora das muralhas, depois de uma noite anormal, lembra demais os clichês da literatura romântica. Nota: 8
Luci Afonso – Texto irretocável, narrativa envolvente. Nota: 9,5
Oswaldo Pullen Parente - Bem escrito e bem desenvolvido, talvez com uma erudição desnecessária para o gênero. Nota:9

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