23 março 2021

niilismo ecológico

A humanidade moderna, armada pela desmesura tecnocientífica, transformou-se na maior força plástica operante na Terra. Uma força tão irracional, primitiva e moralmente neutra como um furacão, um terramoto, ou um asteróide atraído pelo campo gravitacional do nosso planeta. Ninguém pensou a verdade do nosso tempo. Longe de ser um processo cultural milenar, associado à filosofia idealista e ao monoteísmo, o niilismo transformou-se no ponto de convergência da história humana.
A humanidade ocidental, que nas suas representações culturais e tecnológicas hoje se confunde com a humanidade inteira, transformou a religião do progresso na febril vertigem da destruição de uma Terra que lhe foi dada graciosamente no misterioso e lento processo de constituição natural do mundo a que chamamos nosso. Possuídos por um ímpeto imparável e uma arrogância cega dedicámo-nos, com afinco, a transformar o Jardim do Éden num deserto global. Trasportámos o nada, como valor, para o coração físico das coisas. O nosso niilismo de tipo novo, não se limita a ser um niilismo objectivo. É um niilismo ontológico. A história humana parece tender, inexoravelmente, para desaguar no grande estuário do Nada.
Viriato Soromenho-Marques, in Jornal de Letras nº 1316, Março 2021.

22 março 2021

a quem interessar...

21 março 2021

Et après?

- Que escrever agora? Seríeis ainda capazes de escrever alguma coisa?

- Escreve-se com o desejo, e eu não paro de desejar.

( Roland Barthes, 1975 )

20 março 2021

no meu quarto: uma distopia


Na passada 2ª feira, ao final da noite e enquanto aguardava que o sono chegasse, fui saltando de canal em canal, à procura de algo interessante para me entreter e embalar, quando dei neste estranho filme, que passava na RTP2. Não vi o seu início, mas cena que me prendeu a atenção foi a de um casal de jovens, num quarto exíguo dotado de casa-de-banho, que se percebia ser dele. O diálogo versava sobre a necessidade que ela teve de lavar os dentes naquele momento, e do peculiar pedido para que ele lhe emprestasse a sua escova, mas que ele recusou, justificando que a boca dela, tal como a de toda a gente, teria mais germes do que o anûs. Por isso, ofereceu-lhe uma escova nova. Entretanto, ela vai-se embora e não regressa à narrativa.
A história centra-se nele e na sua aventura solitária no contexto de uma distopia não explicada ou justificada durante o filme. In my room é um filme alemão, de 2018, realizado por Ulrich Kohler e exibido no Festival de Cannes desse mesmo ano. Eu adorei o filme e, esta tarde, acabei de o ver pela terceira vez, aproveitando as maravilhas da tecnologia que nos permitem andar para trás no tempo e recuar até sete dias atrás na programação dos diferentes canais. Ainda que estranho, distópico e cruel, senti-me muito atraído por aquela realidade, por aquele ambiente e pela perspectiva de uma solidão perene e definitiva.

15 março 2021

epitafista


Chegou-me agora às mãos, pela volta do correio, este retrato da Fundação Francisco Manuel dos Santos e como quem não sente, não é filho de boa gente, cá estou eu a reagir após uma leitura transversal deste pequeno texto. Também porque já por aqui ando há catorze anos, acompanhei a evolução deste fenómeno criativo e comunicacional e apesar de concordar com a ideia de que a blogosfera portuguesa já teve dias de maior fôlego e alegria, parece-me exagerada a declaração do seu ocaso. A Ágora dos tempos modernos, como a designa Filipe Barreto Costa, perdeu protagonismo e muitos dos seus arautos migraram para as redes sociais, principalmente para o Facebook ou para o Twitter, mas ainda assim, a blogosfera manifesta uma resiliência singular. Naquilo que me diz respeito, mantenho este meu recanto com a vivacidade possível, ou seja, dependente dos meus humores e da minha disponibilidade.
Curioso, este texto soa demasiado a epitáfio.

14 março 2021

um ano de confinamento (7)

Assiná-lo hoje, dia 14 de Março de 2021, um ano de confinamento motivado pela pandemia que teima em manter-nos neste isolamento físico forçado e afastados do convívio daqueles com quem partilhávamos a nossa vida. Nesse dia partilhei aqui o primeiro de vários textos que me propus escrever sobre essa nova e inesperada experiência individual, familiar e social. Chamei-lhe "abertura" e nessas poucas linhas de texto manifestei o caldo de sentimentos e sensações que me assaltavam nesse momento. Passado um ano desde esse dia, na verdade, muitos desses sentimentos permanecem e as incertezas quanto ao que nos espera são demasiadas e, por vezes, angustiantes. No entretanto, ao longo destes 365 dias, aquilo que mais custou foi a gestão das emoções e o esforço por manter os equilíbrios entre 4 pessoas a viver 24 sobre 24 horas num espaço limitado. Houve um pouco de tudo - disputas, zangas, brincadeiras, berros, birras e afins, mas não me posso queixar, pois estamos todos bem de saúde, física e mental, permanecemos família e continuamos a acreditar e a fazer planos para o momento seguinte à pandemia. É claro que pudemos sair daqui, esticar as pernas, espairecer e houve alguns momentos muito bons, passeios e visitas a lugares magníficos.
Hoje, ainda assim, perspectivando este último ano das nossas vidas, não considero que tenha sido um tempo desperdiçado, pois serviu-me para conseguir dar resposta a algumas solicitações, projectos e ideias que se vinham a acumular e perpetuar no fundo das minhas alforges. Para além disso, julgo que esta experiência individual e colectiva servirá de exemplo para o resto da vida de cada um de nós. Jamais esqueceremos o ano de 2020 e aquilo que nos aconteceu.
Por aqui continuaremos, apesar dos movimentos impostos e sucessivos de confinamentos e desconfinamentos. Pacientes, aguardaremos a nossa vez para sermos vacinados e desejamos que possamos chegar ao fim deste processo são e salvos.

11 março 2021

desturistificar o património: alterar paradigmas

Para início de conversa, podemos lançar a questão: a quem pertence a cultura e os seus patrimónios? Pois bem, ainda que sem certezas, poderei responder à questão, afirmando o património cultural como relacional, dinâmico e interactivo, neste mundo cada vez mais balizado pelas interseções globalizantes. Também por isso, a cultura e o património cultural transformaram-se numa arena de poderes – político, económico, social, financeiro, simbólico – na qual os diferentes agentes buscam a dominação, ou seja, ambicionam alcançar o poder da hegemonia.
A recente e crescente valorização do património cultural foi manifesta e perceptível aos olhos de todos nós, mas essa evidência trouxe consigo um conjunto de ambivalências que interessa não negligenciar ou desvalorizar:
a) A industrialização da produção daquilo que era artesanal;
b) A massificação dos consumos e dos turismos;
c) A mercantilização dos patrimónios, ou seja, a sua transformação em valor monetário e mercantil;
d) A cristalização da memória, naquilo que foi/é a disseminação de museus e de centros interpretativos;
e) A ressignificação ontológica do património edificado;
Num tom mais confessional, não tenho qualquer pudor em reconhecer o meu desagrado e até desconforto com o paradigma vigente até ao evento da pandemia. Aquilo que assistimos até há bem pouco tempo foi a completa e perversa transformação do património de bem cultural a bem turístico, numa espécie de rapto patrimonial em que o refém apenas pode existir para servir ao turismo. Situação possível, também, pelas referidas ambivalências e que significou uma autêntica adulteração dos caracteres culturais e uma intensa predação nos diferentes territórios, com especial incidência nas grandes cidades, como Lisboa e Porto.
Pelo que até aqui está escrito, poderão deduzir alguma má vontade para com o sector do turismo, mas não é esse o móbil deste exercício. Por outro lado, não estou particularmente optimista ou esperançoso, mas este intervalo extraordinário à escala global deveria permitir uma reflexão sobre todo este universo que, com implicações a vários níveis nas nossas vidas, carece de ponderação, reestruturação e redimensionamento. Por outras palavras, e arriscando uma sugestão, deveríamos apostar num novo paradigma (emergente) para o património cultural, no qual este se pudesse libertar do jugo explorador e destruidor do turismo. Digo, desturistifiquemos o nosso património.
Tentando ilustrar aquilo que quis significar nestas linhas, termino com um exemplo que todos, ou quase todos nós, conhecemos: A livraria Lello no Porto que, de livraria de referência, com um vasto catálogo temático, por artes “harrypoteanas”, se transformou num altar de peregrinação turística, visitada anualmente por milhares de visitantes, disponíveis para esperarem nas enormes filas na bilheteira e, depois, à entrada da “livraria”, apenas e só pela experiência pós-moderna do consumo efémero, da selfie, ou do Tik-Tok. A cidade perdeu uma livraria, um lugar aprazível e tranquilo, onde se podia ir e ficar. Eu era cliente habitual e, pelas mesmas artes feiticeiras do universo Hogwarts, deixei de o ser e nunca mais lá voltei.
Este exemplo servirá também para reflectir sobre aquilo que sucederá no futuro próximo, depois da pandemia: se não há qualquer dúvida de que a Lello irá sobreviver e reabrir as suas portas, resta saber que estratégia irá adoptar para compensar a mais que previsível lenta recuperação do turismo de massas e globalizado, que tanto beneficiaram o seu negócio. Às tantas, quererá voltar a vender livros aos portuenses!?...

Adenda: Na mesma cidade, a pandemia revelou mais duas situações análogas, ainda que com diferentes dimensões: o café Magestic e o café Guarany.

[ Escrito a 8 de Março de 2021 ]
Publicado também em www.planeamentoterritorial.blogspot.com