Para início de conversa, podemos lançar a questão: a quem pertence a cultura e os seus patrimónios? Pois bem, ainda que sem certezas, poderei responder à questão, afirmando o património cultural como relacional, dinâmico e interactivo, neste mundo cada vez mais balizado pelas interseções globalizantes. Também por isso, a cultura e o património cultural transformaram-se numa arena de poderes – político, económico, social, financeiro, simbólico – na qual os diferentes agentes buscam a dominação, ou seja, ambicionam alcançar o poder da hegemonia.
A recente e crescente valorização do património cultural foi manifesta e perceptível aos olhos de todos nós, mas essa evidência trouxe consigo um conjunto de ambivalências que interessa não negligenciar ou desvalorizar:
a) A industrialização da produção daquilo que era artesanal;
b) A massificação dos consumos e dos turismos;
c) A mercantilização dos patrimónios, ou seja, a sua transformação em valor monetário e mercantil;
d) A cristalização da memória, naquilo que foi/é a disseminação de museus e de centros interpretativos;
e) A ressignificação ontológica do património edificado;
Num tom mais confessional, não tenho qualquer pudor em reconhecer o meu desagrado e até desconforto com o paradigma vigente até ao evento da pandemia. Aquilo que assistimos até há bem pouco tempo foi a completa e perversa transformação do património de bem cultural a bem turístico, numa espécie de rapto patrimonial em que o refém apenas pode existir para servir ao turismo. Situação possível, também, pelas referidas ambivalências e que significou uma autêntica adulteração dos caracteres culturais e uma intensa predação nos diferentes territórios, com especial incidência nas grandes cidades, como Lisboa e Porto.
Pelo que até aqui está escrito, poderão deduzir alguma má vontade para com o sector do turismo, mas não é esse o móbil deste exercício. Por outro lado, não estou particularmente optimista ou esperançoso, mas este intervalo extraordinário à escala global deveria permitir uma reflexão sobre todo este universo que, com implicações a vários níveis nas nossas vidas, carece de ponderação, reestruturação e redimensionamento. Por outras palavras, e arriscando uma sugestão, deveríamos apostar num novo paradigma (emergente) para o património cultural, no qual este se pudesse libertar do jugo explorador e destruidor do turismo. Digo, desturistifiquemos o nosso património.
Tentando ilustrar aquilo que quis significar nestas linhas, termino com um exemplo que todos, ou quase todos nós, conhecemos: A livraria Lello no Porto que, de livraria de referência, com um vasto catálogo temático, por artes “harrypoteanas”, se transformou num altar de peregrinação turística, visitada anualmente por milhares de visitantes, disponíveis para esperarem nas enormes filas na bilheteira e, depois, à entrada da “livraria”, apenas e só pela experiência pós-moderna do consumo efémero, da selfie, ou do Tik-Tok. A cidade perdeu uma livraria, um lugar aprazível e tranquilo, onde se podia ir e ficar. Eu era cliente habitual e, pelas mesmas artes feiticeiras do universo Hogwarts, deixei de o ser e nunca mais lá voltei.
Este exemplo servirá também para reflectir sobre aquilo que sucederá no futuro próximo, depois da pandemia: se não há qualquer dúvida de que a Lello irá sobreviver e reabrir as suas portas, resta saber que estratégia irá adoptar para compensar a mais que previsível lenta recuperação do turismo de massas e globalizado, que tanto beneficiaram o seu negócio. Às tantas, quererá voltar a vender livros aos portuenses!?...
Adenda: Na mesma cidade, a pandemia revelou mais duas situações análogas, ainda que com diferentes dimensões: o café Magestic e o café Guarany.
[ Escrito a 8 de Março de 2021 ]
Publicado também em www.planeamentoterritorial.blogspot.com