28 fevereiro 2023

a vida do escritor maldito

Terminei por estes dias a leitura da biografia de Luiz Pacheco, escrita por António Cândido Franco, e não posso deixar de reafirmar o fascínio, pelas piores e pelas melhores razões, que este indivíduo provoca em mim. Sou um fiel leitor e consumidor de tudo quanto possa existir de e sobre Luiz Pacheco. Tenho uma profunda admiração pessoal e literária pela sua coragem, pela sua alteridade, pela sua originalidade e genialidade. Um dos maiores e mais ricos personagens da literatura portuguesa do século XX.


O autor termina assim o texto:
"Deu de barato as ambições sociais do tempo, o respeito das convenções, a obediência às regras, o acatamento dos limites. Lutou por ser livre como ninguém da sua geração e a sua vida teve um lado escabroso, o da experiência funda da abjecção, que foi o alto preço que pagou pelo seu combate. Só aquele que como ele vai ao fundo do fundo da noite está pronto para saudar a luz heróica mas falsa do dia. Não batalhou por bens materiais - foi 'um cafre da Europa', um 'cão sem coleira' como de si disse -, mas para afirmar a sua vida. Quis e conseguiu viver livre numa sociedade de escravos e por isso a sua existência teve um sentido épico. Foi dos raros escritores portugueses do seu século que se bateu por ter biografia, que construiu uma vida, que não se satisfez com a vidinha programada que lhe deram - a mesquinha existência dos liceus, das proibições familiares, do funcionalismo, do ordenado mensal, das férias pagas. Transgrediu e arriscou. Fez da vida uma obra, embora a sua arte mais viva, a sua obra-prima, não fosse a vida que viveu mas a vida que escreveu - uma literatura vital, em que a escrita lateja, está viva, e as palavras têm carmim e o sabor a sangue. Escreveu verdades que ninguém sabia escrever."
(Franco, 2023: 456)

19 fevereiro 2023

irritação da amígdala

"A democracia está a ser tão esvaziada de conteúdo que pode ser defendida instrumentalmente pelos que servem dela para a destruir, enquanto os que servem a democracia para a fortalecer contra o fascismo são considerados esquerdistas radicais." (Boaventura de Sousa Santos, in Jornal de Letras nº 1366, Fevereiro de 2023)

As palavras de Boaventura de Sousa Santos (BSS), num excelente artigo do referido jornal, avivam em mim uma profunda irritação, que não é de agora, mas que teima em durar e que poderei traduzir em palavras no raciocínio que se segue:
Eu, que pago os meus impostos, como a maioria dos cidadãos portugueses, acredito e defendo que o Estado, fiel depositário ou, se preferirem, cobrador desses impostos, deve ser responsável pela providência e prestação dos serviços básicos, em qualidade, equidade e gratuitidade, à totalidade da população do país. Falo da educação, da saúde, da justiça e dos sectores estratégicos da economia, como a energia, os transportes e as comunicações. Acredito no acesso universal e gratuito à saúde (SNS), acredito na escola pública, acessível e com qualidade para todas as crianças e jovens do país, acredito numa justiça independente, justa e de proximidade às populações e desejo uma maior e melhor distribuição das mais-valias ou riqueza que o país consegue produzir. Por que raio esta minha perspectiva do que defendo para o meu país é considerada radical e extremista? Sim, convivo bem e até me orgulho de perspectivar a sociedade e o meu país deste lugar "de esquerda", mas não aceito e combaterei sempre a ideia de que aquilo em que acredito não é sensato, ponderado ou desejável para todos e não só para mim ou para alguns, naquilo que podemos e devemos designar de democracia plena.
A minha amígdala sofre horrores com esta teimosia em designar os democratas de radicais de esquerda. Não o são, e quem assim os adjectiva, tal como escreve BSS, serão os primeiros a destruí-la e a impor os fascismos da "gente de bem".

fartos disto, hora de agir


Participei hoje na vigília “estamos fartos disto, é hora de agir”, em frente à Câmara Municipal do Porto, que começou pelas 19 horas. Participei enquanto organizador do evento, enquanto subscritor do manifesto que motivou a vigília, mas acima de tudo, participei porque estou farto da condição em que grande parte da população portuguesa existe. É, de facto, hora dessa população agir e exigir aquilo a que tem direito, mas que persistente e abusadamente lhe tem sido sonegado.
Apesar de termos conseguido uma divulgação interessante, através das redes sociais, dos media e, principalmente, no contacto directo com a população, através da distribuição em mão do manifesto nos locais de maior afluência e circulação na Invicta, não conseguimos reunir mais do que três dezenas de pessoas em frente à Câmara Municipal neste final de tarde de Sexta-feira.
Quando abandonei a vigília, por volta das 20:30 horas e porque era hora de dar de comer à minha criança, caminhámos por algumas das artérias da baixa da cidade até ao local onde o carro estava estacionado. Saindo da Praça General Humberto Delgado, entrámos na rua de Rodrigues Sampaio em direcção à Praça de D. João I, descemos o primeiro, ou último, troço pedonal da rua do Bonjardim, espreitámos para a Sampaio Bruno, continuámos a descer a Sá da Bandeira e subimos a 31 de Janeiro. Durante todo este percurso não pude deixar de constatar a elevada frequência nos cafés, bares, restaurantes e hotéis, suas esplanadas e seus foyeurs, contrastando de forma clara e até ofensiva com aquilo que me levou ao centro cívico da cidade. Nada me opõe a essa movida urbana e noturna e sei-a importante e até necessária para a cidade, mas aquilo que não consigo evitar, ao passar e observar esta realidade, de aparentes sociabilidades e consumos abundantes e despreocupados, sempre sob a batuta da sagrada Francesinha e do globalizado Vinho do Porto, é a percepção de que este brilho cosmopolita ofusca completamente a realidade de milhares de famílias e indivíduos que estão remetidos à sua parca condição de vida, silenciados pelas obrigações e compromissos financeiros assumidos e esmagados pela carestia generalizada dos bens e produtos básicos e essenciais para sua sobrevivência.
É para essa grande massa (ainda) silenciosa que promovemos esta iniciativa. É com a esperança de os motivar e implicar que temos e devemos dar voz às dificuldades e carências que muitos sentem. É, e será sempre, na rua, no espaço público e de todos nós, que deveremos persistir e insistir naquilo que são as nossas reivindicações, as nossas lutas e as nossas ambições.

(escrito a 17 de Fevereiro de 2023 e publicado no blogue https://convergencia-porto.blogspot.com/)

14 fevereiro 2023

hipocrisia e mediatismo

Foi ontem conhecido o relatório final da Comissão Independente que, ao longo do último ano, investigou e registou as denúncias de abusos a crianças por parte de membros da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) e foi grande, enorme, o estrondo mediático com que foram recebidas as transcrições pormenorizadas de alguns dos testemunhos. É de facto uma monstruosidade, uma ignomínia sem perdão possível, a quantidade e a intensidade dessa violência, mas eu não fiquei surpreendido com o número de vítimas e de abusos apresentados, pois tenho como certo, até pelo conhecimento de algumas situações, que o número real é bem maior. Como se costuma dizer, apenas se conheceu a ponta do icebergue.
Mas aquilo que mais me incomodou, e incomoda, é a hipocrisia que os membros da ICAR nacional, mesmo num momento como este, teimam em manifestar. Mas alguém acreditará que a hierarquia da Igreja não sabia desta situação, que não tinha conhecimento daquilo que acontecia nas paróquias e dos comportamentos criminosos dos seus párocos, acólitos e afins? Claro que sempre souberam, mas escolheram ocultar, chantageando, ameaçando ou subornando as suas vitimas, todo e qualquer episódio, e só quando as situações chegaram ao conhecimento público, através de denúncia ou da comunicação social, é que tiveram iniciativa, mas sempre tímida, conservadora e corporativista. Mas todos, ou quase todos, os Bispos, Cardeais e outros responsáveis hierárquicos da ICAR tiveram acesso e conhecimento de situações insuportáveis e criminosas.
Esta situação e esta iniciativa da ICAR, ainda que louvável, não oculta ou desculpabiliza o horror e a hipocrisia com que se apresentam perante a sociedade, os católicos e, principalmente, as suas vítimas.

13 fevereiro 2023

cristos

(auto-retrato de Miguel de Unamuno, 2012:7)

"O Cristo espanhol - dizia-me uma vez Guerra Junqueiro - nasceu em Tânger; é um Cristo africano e nunca se afasta da cruz, onde está cheio de sangue; o Cristo português brinca nos campos com os camponeses e merenda com eles e só a certas horas, quando tem de cumprir com os deveres do seu cargo, é que vai dependurar-se na cruz". (Unamuno, [1908] 2012:38)

o sol

Aproveitando o remanso da tarde de Domingo, li este livrinho com uma selecção de textos de Miguel de Unamuno, que se referem a Portugal e à produção literária portuguesa. Interessante nalguns aspectos, previsível e parcial noutros, Unamuno escreve muito bem e consegue captar, digo eu, parte do nosso ethos. Textos escritos entre 1900 e a década de 30, deveremos contextualizá-los temporal e culturalmente. Unamuno é uma personagem interessante do primeiro quartel do século XX espanhol que nutria por Portugal uma peculiar curiosidade.


"Portugal surge-me como uma formosa e gentil rapariga do campo que, de costas para a Europa e sentada à beira-mar, junto à própria orla onde a espuma das ondas gemebundas lhe banha os pés descalços, com os cotovelos apoiados nos joelhos e a cara entre as mãos, olha o sol a pôr-se nas águas infinitas. Porque para Portugal o sol não nasce nunca: morre sempre no mar, que foi teatro das suas proezas e berço e sepulcro das suas glórias". (Unamuno, [1907] 2012:24)

10 fevereiro 2023

idiota

Há dias, comentando entusiasmado com um velho amigo acerca de um novo projecto que tenciono iniciar, ele reage, dizendo: - De facto, se há coisa em que tu és bom, é em cenas que não dão dinheiro.

09 fevereiro 2023

memória rural

Depois de vários meses à espera, chegaram-me às mãos as cinco edições da revista Memória Rural, publicação anual do Museu da Memória Rural, em Carrazeda de Ansiães. Agradeço ao amigo Rui Leonardo que me fez o favor de as trazer até mim. Apesar de todos os números desta revista estarem disponíveis gratuitamente na internet (aqui), e eu já conhecer a maioria dos seus textos e artigos, nada como tê-la entre mãos, até porque se trata de uma edição cuidada e com muita qualidade. Prazer para os próximos dias.

06 fevereiro 2023

03 fevereiro 2023

ao espelho

01 fevereiro 2023

capa dura

A colecção "ensaios da fundação" da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) tinha até Dezembro de 2022 cento e vinte e cinco livros publicados, todos eles com duas opções de edição: uma edição de capa mole com o preço de venda ao público de três euros e meio, e outra edição em capa dura com o preço de cinco euros. Pois bem, já em Janeiro deste ano foram publicados mais três números e apenas em capa mole. Eu que tenho toda a colecção da edição em capa dura, esperei até hoje para ver se aparecia a outra edição em escaparate. Não apareceu, nem vai aparecer. Desconhecendo e farto de aguardar, resolvi contactar directamente e por email a livraria da FFMS, que rápido me responderam, afirmando laconicamente: "Informamos que deixámos de produzir capas duras."
Pois bem, quem lamenta sou eu e, agora, hesitante estou se vou ou não continuar a colecção. Muito obrigado.