Aproveitando o não-dia que foi ontem, li com todo o vagar a revista LER de Janeiro que se dedica quase exclusivamente à tão badalada "crise". Está bem preenchida, apesar do tema central e numa primeira abordagem me afastar os sentidos. Gostei deste número, especialmente da Diacrónica, do Diário de Ocasião, do Folhetim de Polémicas Literárias assinado por Fernando Venâncio, do texto de José Mário Silva e da excelente entrevista de Carlos Vaz Marques a Manuel Villaverde Cabral.
Notáveis passagens e alguns excertos:
“Crise é o momento da decisão, momento de a tomar ou de ser ela tomada: em que se promete a solução, e enfim o sofrimento duma maneira ou de outra acaba. Eis por que motivo a crise é afinal um estado de ânimo propenso à acção e consequentemente à… felicidade. As pessoas, como se sabe, ficam mais felizes quando se mexem.” (Abel Barros Baptista)
“Tenho dúvidas. Gosto de ter livros ao pé de mim; não sei se isto se passa consigo, mas eu conservo esse pecado, o egoísmo dos livros. Frequento bibliotecas, mas, mesmo nessas circunstâncias, torno-me «proprietário» ficcional dessas bibliotecas e desses livros. Não estou a ver-me proprietário de uma «nuvem» (a propósito do serviço GoogleBooks, lançado em Dezembro nos EUA) que, ainda por cima, não existe fisicamente. Onde é que vou deixar bilhetes e rasuras? Um mistério, outro mistério. A nossa vida está a mudar muito rapidamente e sinto-me um reaccionário tremendo.” (Francisco José Viegas)
Excertos da excelente entrevista de Carlos Vaz Marques a Manuel Villaverde Cabral:
“A crise que estamos a atravessar tem uma dimensão para além da económica e política – quer dizer, vê-a também já numa dimensão cultural, em sentido lato?
Mesmo fora de Portugal vejo pouco discurso alternativo credível. Os discursos alternativos que eu vejo não são credíveis. O meu colega Boaventura Sousa Santos é, aliás, a nível internacional, uma voz que propõe uma globalização alternativa.
A chamada «altermundialização».
Uma globalização contra-hegemónica e outro tipo de terminologia do género. É algo que admito que tenha ressonâncias na América Latina – onde ele realmente pratica essa influência – mas muito sinceramente não creio que aquele discurso se aplique à Europa.
Não há portanto, do seu ponto de vista, um modelo cultural que possa suceder àquele em que vivemos.
Eu não o vejo. O que emergiu imediatamente foi – até ao nível daquilo a que se chama agora a «nova economia política», portanto dos economistas que se pretendem alternativos – um discurso que tem tanto menos êxito quanto menos prospectivo é. Manifesta-se sobretudo pela defensiva, pela preservação dos adquiridos. Houve uma ideia – aliás, o nosso primeiro-ministro, que é esperto, chegou a falar nisso – que era a de um regresso ao keynesianismo.
Com a intervenção do Estado para segurar a economia.
Exactamente. Uma intervenção legitimada a nível ideológico – e o aspecto ideológico tem sempre uma âncora, uma referência ou quanto mais não seja um auditório sociocultural. Em Portugal, a audiência mais interessante, mais dinâmica, mais prospectiva desse discurso, que durante um certo momento pareceu poder funcionar como alternativo, será o povo do Bloco de Esquerda. É sem dúvida, sociologicamente, o partido com o mais alto grau de instrução; e se calhar também de rendimento. Ou seja, se há elites alternativas, no melhor sentido da palavra, não só em termos políticos mas também culturais, estão aí.
(…)
…podemos regressar a um discurso artístico mais interveniente em termos sociais?
Nunca mais vamos regressar nem ao surrealismo quanto mais ao neo-realismo. Não voltaremos a ter grandes movimentos. A nossa época não consente isso. A nossa sociedade é demasiado complexa. Danilo Zolo diz: «a nossa sociedade é demasiado complexa para ser gerida por um sistema tão tosco como o voto.» Não quer dizer que seja mau, é grosseiro. Nem os governantes, quanto mais os eleitores, têm consciência de toda a complexidade dos problemas.
(…)
…a cultura baseada no livro parece-lhe ameaçada.
A leitura de livros acrescenta. (…) As pessoas que lêem vão sempre distinguir-se das outras e terão sempre o seu nicho de mercado. Uma coisa lhe digo: nada activa mais o neurónio do que a leitura.
(…)
O que parece de facto é que é consagrado muito pouco tempo ao esforço da leitura. Temos um grande problema: repare, o nosso atraso em relação aos países escandinavos é de mais de cem anos.
Um atraso em termos culturais?
Em termos educativos. Nós ainda estamos a ensinar a ler a crianças cujos pais não sabem ler. A pretensão da escola de fazer tudo – o que as famílias faziam, o que a sociedade deveria fazer – é que está a matar a escola."
“Na verdade, espero que o romance do século XXI não seja escrito só no século XXII. Porque gostava mesmo de o ler – seja em papel, a partir da «nuvem» ou noutro sistema qualquer que ainda esteja por inventar.” (José Mário Silva)
“Recuso-me a balanços. Dão-me enjoos. São ridículos. Papel que podia ser gasto para se pensar em alguma coisa.” (Inês Pedrosa)
Sugestão para adquirir e ler: o mais recente título de Onésimo Teotónio Almeida “O Peso do Hífen – ensaios sobre a experiência Luso-Americana”, editado pela Imprensa de Ciências Sociais.