(na capa do Jornal de Notícias de 20/02/2022)
Foi notícia no Jornal de Notícias deste Domingo (20/02/2022), com chamada na capa da edição - Drama dos sem-abrigo choca turistas (pp. 18 e 19). De facto, a situação é muito preocupante, é dramática e é triste, mas não é uma situação nova, pois quem deambule pela baixa da cidade do Porto, já há muito tempo que convive com esses inquilinos do espaço público que, durante todo o ano, ocupam recantos dos edifícios públicos e privados e se fazem notar não só pela sua presença, como pela parafernália que arrastam consigo ou deixam como reserva do espaço que habitam. A crer na notícia agora publicada serão cerca de 500 pessoas nesta condição. 500 pessoas!
A notícia, para além do mais que necessário alarme para a dramática situação, está, no meu entendimento, toda ela escrita sob um prisma errado, enfatizando a perspectiva de todos os implicados - comerciantes, turistas, ONG's e autarquia - menos a daqueles que sofrem nas suas vidas essa condição de sem-abrigo, ainda que sejam referidos dois ou três destes casos.
Claro que o impacto desta situação prejudica não só a imagem da cidade, como algumas das actividades económicas que aí se desenvolvem, mas não é apresentada qualquer solução para este problema, que é muito mais do que uma situação de saúde pública, é uma questão de civilidade e dignidade da própria comunidade. Sinceramente, afirmá-lo como um problema para o turismo e para os turistas que nos visitam?! Que raio. Por outro lado, este texto também não consegue ultrapassar a visão de uma sociedade caritativa, que depende da boa vontade e voluntarismo de um conjunto de cidadãos e de algumas organizações não-governamentais, como sendo essa a solução para o problema. Não é. A responsabilidade para resolver, ou pelo menos, minorar este cenário é do Estado e das suas instituições, nomeadamente da Segurança Social e, depois, das autarquias que têm, pelo conhecimento do terreno e proximidade com estas populações, a obrigação de criar as condições mínimas e capazes de retirar esta gente da rua e da indigência.
Bem sei que não é fácil e é complexo, que cada um deste indivíduos tem as suas idiossincrasias (doenças, traumas, violências e dependências) naquilo que é a sua história de vida e, portanto, o esforço terá que ser assíduo, persistente e duradouro. Não é admissível que a autarquia do Porto, na pessoa da Vereadora da Acção Social, Cristina Pimentel, ao ser questionada pelo J.N., responda: ao contrário da percepção que existe em quem circula pelas ruas, a população sem-abrigo não aumentou. Senhora vereadora, essa afirmação soa a satisfação por o número não ter aumentado, como se cerca de 500 pessoas a dormir nas ruas da cidade não fosse já uma enormidade, uma tragédia. Mais, está equivocada, porque para quem gere ou administra a coisa pública e a polis, a percepção, ou melhor, as percepções daqueles que vivem e fazem ser a cidade são importantes e a razão da existência do seu lugar na administração pública local.
Mas é também, uma peça jornalística que reforça uma visão da cidade que se impôs nas últimas décadas, na qual o espaço e os lugares só existem, só fazem sentido, se estiverem ao serviço da especulação imobiliária (gentrificação), ao dispor dos fluxos e preferências/modas sazonais e consumos do turismo (turistificação) e a vida dos habitantes é preterida para a insignificância ou expulsa para a periferia (reificação). Era este o Porto de Rui Rio e é este o Porto de Rui Moreira. É tempo de alterar o paradigma, de dignificar a vida destes (e de todos os) cidadãos e de redireccionar a cidade para servir quem nela vive, trabalha, ou tenta sobreviver.
Enfim, não me interessa, não quero saber do incómodo dos turistas que nos visitam, quero é solução para cada uma destas quinhentas vidas que, voluntária ou involuntariamente, permanecem num estado de indignidade humana.
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