16 julho 2014

manuais escolares, outra vez

Este é um daqueles assuntos que mais parece um mito de eterno retorno, pois é algo que, ciclicamente, me assalta - e, concerteza, a quase totalidade dos pais e encarregados por crianças em idade escolar - o sistema nervoso e a tranquilidade da alma. Para ser mais preciso, essa angústia acontece todos os anos durante o período das férias de Verão.
A ditadura dos manuais escolares. Já aqui reflecti sobre este assunto, mas neste momento e sem tentar ser repetitivo, retorno a ele porque fui surpreendido por mais um pormenor sórdido desta super-indústria que esmaga, ano após ano, as economias das famílias. Nos últimos dias recebi por email a lista de livros para o próximo ano lectivo da minha filha. No email enviado pela sua Directora de Turma alertava-se para uma nota que acompanhava essa listagem e onde se podia ler:
"Muito Importante: de acordo com o Despacho nº15971/2012, as Metas Curriculares estão a ser implementadas nas diferentes disciplinas segundo o quadro abaixo. Assim, apesar de os manuais adotados não mudarem, estes sofrem adaptações por parte das editoras. Isto implica que os alunos não possam usar a edição antiga dos mesmos manuais".
Bem, eu sei que o mais fácil e cómodo seria nem sequer pensar no assunto, comprar os livros e seguir com a minha (nossa) vida, mas não consigo, é mais forte do que tentativa de racionalizar a questão. Ora porra! Legisla-se que os manuais escolares ao serem adoptados têm uma duração de vida de seis anos, dando alguma estabilidade pedagógica e algum alívio financeiro às famílias. Não satisfeitas com isto as editoras trataram logo de tentar contornar esse constrangimento legal ao seu negócio e lucro, inventando essas adaptações de ano para ano. Se posso perceber o desconforto que essa legislação criou e a tentativa das editoras de salvaguardar o seu negócio, já não consigo perceber a atitude das escolas e dos professores ao aceitarem essa estratégia meramente comercial e que não visa o interesse pedagógico e dos alunos.
Inadmissível esta chantagem sobre os alunos, professores e escolas. Ou seja, adoptam-se os livros por seis anos, mas o livro do 1º ano nada terá haver com aquele que for comprado no 6º e último ano.
Não percebo também a passividade do ministério da educação que, consciente destes factos, nada faz para travar este sector editorial, que se apresenta com um fortíssimo lobby e que encontra sempre forma de contornar a lei.
Enfim, lá vamos nós "andando com a cabeça entre as orelhas...".

Nota: Texto escrito no dia 6 de Julho de 2014, num local isolado e sem acesso à rede.

30 junho 2014

instante urbano XXVIII

Adivinhava-se mais uma manhã igual a tantas outras passadas no Arquivo Distrital de Bragança. Lugar bonito, ambiente tranquilo e "mergulhos" ao século XIX e XVIII. Nessa manhã, mal me tinha instalado e ainda sozinho na enorme sala de leitura, sinto um anormal burburinho que se foi aproximando. Uma visita de estudo de alunos do ensino básico. À frente do grupo a técnica do Arquivo que iria guiá-los pelos diferentes espaços e que ao ver-me cumprimentou-me e pediu-me licença para me incomodar durante uns minutos.
- Concerteza... - respondi eu, antevendo o que iria suceder.
Num ápice me vi rodeado de dezenas de crianças que, sem cerimónia, se aproximaram até para lá (cá) do meu limite de espaço vital e de conforto. A técnica explicou aos miúdos o que se podia fazer naquele espaço e depois pediu-me para eu lhes explicar o que estava a fazer.
Tentando utilizar uma linguagem simples lá tentei demonstrar o que andava a investigar e para que servia essa investigação. Depois de uma curta apresentação e de algumas dicas da Técnica do Arquivo, para terminar a minha intervenção, perguntei se alguém queria saber mais alguma coisa.
Depois de um breve silêncio, aconteceu isto:
- Para que serve o computador? - pergunta um miúdo que estava com a cara colada ao monitor e que pelo aspecto não queria saber de mais nada a não ser do computador.
- Porque é que as folhas têm esta cor, estão tão amarelas? - pergunta outro.
- Mas o que estás aqui a fazer? - e outro...
- Tu não fazes mais nada? - e outro...
- Ficas aqui muito tempo? - e outro...
A todas as questões fui tentando responder até que a técnica, com um sorriso nos lábios, disse que era melhor continuarem a visita e deixarem o investigador trabalhar. Assim, foram.

26 junho 2014

o melhor do mundo e arredores

Eu não gosto muito, ou mesmo nada, de escrever sobre futebol. Nem sobre o meu clube, nem sobre a selecção, mas a prestação da selecção nacional neste mundial do Brasil foi má demais.
Nada correu como devia ou teria que correr. Andaram-nos a vender a ideia de que este era o ano de Portugal e aí a comunicação social desempenhou o papel principal. Uma mensagem fraudulenta, que criou expectativas infundadas.
Uma convocatória errática, com jogadores que não eram os melhores nas suas posições e um selecionador teimoso, mas ao mesmo tempo permeável às pressões externas: às pressões de interesses alheios e à indústria do futebol. Com Paulo Bento a sensação que fica é que ele escolhe sempre os mesmos. Parece uma família.
Depois a questão física e a condição com que a maioria dos jogadores se apresentaram para este torneio. Outra vergonha. Dos guarda-redes aos ponta-de-lança, todos apresentavam índices de competitividade muito baixos. Lesões a toda a hora e em todo o lado, cuja culpa não pode ser o tempo, a humidade ou o calor. 
A histeria criada pelos media à volta da comitiva portuguesa, em geral e à volta de Ronaldo, em particular, foi uma vergonha. A notícia era sempre o penteado de Ronaldo, o sorriso de Ronaldo, o aceno de Ronaldo, as meias do Ronaldo, o espectáculo dentro do espectáculo...
Por último, o melhor do mundo. Reparem como não adiantou de nada, nem esperar que um só jogador possa fazer o que deveria ser uma equipa a fazer. Tantos jogadores fantásticos e eficazes temos visto neste campeonato - o frio Mueller, o esteta Van Persie, o simples Messi e o deficiente Eimar, entre outros. O vedetismo, o brilho da divindade ofuscou o resto, o principal, que seria o todo, a equipa. "À mulher de César não basta ser, tem que parecer" e a Ronaldo não basta ser o melhor do mundo e passear-se pelos campos. Tem que jogar, acreditar e efectivar. Nunca o fez neste torneio. É inadmissível.
Pode ser muito importante para o próprio e para a legião de fãs e de gajas que têm sonhos húmidos com o rapaz, mas a verdade é que foi um flop e é inadmissível para um jogador profissional com as responsabilidades de Ronaldo. O melhor do mundo e arredores afinal nem o melhor dos nossos conseguiu ser.
Por tudo isto e mais, ainda bem que já fomos eliminados. Já deveríamos ter sido eliminados não fosse o golo de Varela contra os EUA. Melhor, nem lá deveríamos ter ido. A verdade é esta. Simples e mais barata. O resto é caca.

20 junho 2014

até que enfim...


Já começava a não acreditar na sua publicação. Foram longos seis anos de espera para chegar até nós (vós). Com a chancela de Burkeley, Universidade da Califórnia, este livro reúne um conjunto de textos de um grupo heterogéneo de académicos e investigadores portugueses, espanhóis e americanos. Fica, igualmente e a par da tese que em breve publicarei, como um dos principal registos da frequência do mestrado em Estudos Culturais que realizei a partir de 2008.
Já apresentado nos EUA, mas ainda sem datas agendadas para Portugal, sei que acontecerá algo em Lisboa e algo no Porto. Já pode ser adquirido aqui e em breve no circuito comercial normal.

nova LER

Ora aí está a revista LER numa nova existência (mais uma...), com novo formato, nova paginação, novo grafismo, novos conteúdos, novo preço e nova periodicidade - agora trimestral (se bem entendi, Março, Junho, Setembro e Dezembro). Apesar dessa perda na frequência mensal, temos agora uma revista grande, com boa apresentação e com artigos muito interessantes. Estava um pouco receoso que o processo de mudança fosse significar perda qualitativa, mas não, pelo menos neste "primeiro" número. Aguardemos por Setembro para confirmar essa ideia e, acima de tudo, para haver mais.

Apesar de trimestral e de haver muito tempo para a ler, acontece que já está lida e, assim, posso destacar a boa entrevista ao grande Ferreira Fernandes, a nova secção "correspondentes", o ensaio "A angústia de não ler o suficiente", o texto de Tim Butcher sobre Gavrilo Princip (excerto da obra "o Gatilho") e, por último, o texto de António Mega Ferreira "Tolstoi ou o caminho da redenção".

27 maio 2014

25 maio 2014

mediascape: selfies

Agora que estou a ver a Quadratura do Círculo e a ouvir o Pacheco Pereira, lembrei-me do seu artigo de ontem, "dia de reflexão", no Jornal Público. Num artigo intitulado "O dia da censura", em que o autor se questiona sobre aquilo que se pode ou não pode dizer, perguntar, ou mesmo pensar no dia de reflexão para as eleições europeias, a determinado momento escreve:
"...Ou de como o selfie do PS é uma afronta aos direitos humanos da câmara fotográfica que teve de rebaixar a sua condição de telefone inteligente para minimizar o ar de parvos dos fotografados, que é o aspecto que os selfies dão às pessoas? Será que posso hoje falar em nome dos direitos da máquina, obrigada a estas violências?"

a quem possa interessar, eu vou lá estar...


granta portugal


Com o número três já nas bancas, confirma-se a iniciativa da editora Tinta da China. Pena é não ser mais assídua, pois a sua qualidade é excelente. Queremos mais. 

22 maio 2014

relíquias



Dois livrinhos encontrados no acervo do Padre Manuel Vale, relativos à novena da Senhora da Serra. Quando fiz trabalho de campo e escrevi (2007) acerca desse santuário li muitas referências a estes velhos livros, mas nunca os tinha encontrado. Aí estão. Um de 1836 e outro de 1890. Bonito.

15 maio 2014

a floresta


Mais um excelente número (42) da colecção «ensaios da fundação». Neste ensaio o autor propõe-nos um olhar sobre a nossa floresta, um dos principais recursos do país. Perceber as suas indústrias, a sua biodiversidade, os serviços ambientais, os ecossistemas, os riscos activos, dos quais se destacam os incêndios. Leitura importante para quem também se interessa pelas questões da ruralidade.

02 maio 2014

Tio Padre Manuel (R.I.P.)


Desde muito novo me habituei a tratá-lo por Tio Padre Manuel, pois pertencendo a uma família onde havia mais padres e até bispos, era natural e necessário haver elementos distintivos. Em todo o caso, recordo-o sempre como uma pessoa muito séria, muito reservado, altivo e ríspido no convívio com toda as pessoas. De miúdo lembro-me de ter algum medo dele e sempre que queria passar pela canelha, espreitava para ver se ele estava ou não na varanda. Era aí que ele passava muitas horas dos seus dias a andar de uma ponta para a outra, sempre atento a quem passasse na estreita passagem que dava acesso à eira. Normalmente essa passagem era só utilizada pela família, o que implicava sempre ter que conversar com ele. Era curioso e queria saber para onde ou de onde vínhamos. Enquanto miúdo não me lembro de ter tido uma conversa séria com ele. Apenas o essencial da boa educação. Recordo-o no altar a rezar a missa, sempre disposto a dar sermões e recordo-o nas suas caminhadas diárias pelas redondezas da aldeia, aproveitando para conversar com quem se cruzasse no seu caminho. Mais tarde, já crescido começamos a comunicar, ainda que a espaços e sempre com mais interlocutores por perto. Sempre que era preciso, lá pedia a meu pai para servir de intermediário, pois a fama de homem antipático e misantropo, tolhiam-me a vontade de me dirigir a ele.
Na aldeia a sua fama era de pessoa inacessível e de difícil trato. Apenas os seus sobrinhos mantinham uma relação mais ou menos próxima e cordial com ele. Dizia-se que ele nunca quis ter uma vida de sacerdote, que ele quando era jovem era um rapaz muito pimpão e com muitas pretendentes. Terá sido uma promessa a sua mãe a força que o empurrou para essa vida.
Foi já muito perto do seu fim que consegui vencer os meus preconceitos e dirigir-me a ele. A propósito da história de vida de D. Manuel António Pires que estou a escrever, sabia que ele tinha sido seu secretário pessoal em Silva Porto - Angola e, portanto, seria uma fonte importante de informações e documentações. Assim foi. Visitei-o três vezes no início de 2013, ainda não estava doente e pareceu-me sempre bastante lúcido, apesar das falhas de memória. Afinal, encontrei alguém com muita vontade de falar, prestável e até afável... Contou-me muitos episódios da sua aventura em África e enquanto secretário do Bispo de Silva Porto. Mostrou-me fotografias e documentos. Emprestou-me todo o material que eu quis. Confidenciou-me que nunca gostou muito de ser pároco e de aturar paroquianos e que foi essa a principal razão pela qual aceitou ir para Angola. Falou-me do seu padrinho, sua grande referência na vida e de como gostava de "grabanços".
Desde então não voltei a falar com ele. Sei que o seu fim foi um processo lento e de alguma agonia. Faleceu hoje, dia 1, quando contava já noventa e muitos anos. Com ele, desaparece a sua geração na família. Lamento a sua morte e lamento, acima de tudo, não ter tido a sensibilidade para o ter conhecido mais e melhor.

[Imagem: Pe. Manuel Vale (2º à esquerda), com outros 3 missionários a jantar a bordo do navio Pátria entre Lisboa e Luanda no início da década de 60. Fotografia do seu acervo pessoal.]

28 abril 2014

instante urbano XXVII

Num dia de relativo calor, hoje, entro no carro e o cheiro que sinto é idêntico àquele que guardo na memória da velhinha R12. Se há memória boa em mim, essa é a olfactiva. Boa recordação. 

a quem interessar... eu vou

a senhora e o ouro peregrino

Nos longos serões à lareira, abrigados das terríveis geadas e procurando aquecer os ossos antes de enfrentar o desconforto da cama, conversava-se acerca de tudo; daquilo que nos dizia respeito, mas também acerca daquilo que nada era nosso. Aproveitando a presença de alguns familiares e vizinhos, desfiava-se conversa, trocavam-se informações importantes sobre as coisas do lugar, coscuvilhava-se sobre a sorte e o azar dos outros e contavam-se histórias, factos ou ficções, de um tempo passado que só a memória dos mais velhos alcançava.
Uma dessas histórias que repetidamente fui ouvindo relatava acontecimentos dos meados do século XX. Pelos vistos por essa época as mulheres da aldeia e de muitas outras povoações desfizeram-se, se não de todo, pelo menos de grande parte do seu ouro e prata. Sem grandes hesitações ou dúvidas ofertaram-no a Nossa Senhora de Fátima que por esse tempo andou em peregrinação por terras de Trás-os-Montes.
Foi em Junho de 1949, entre os dias 1 e 17, que aconteceu essa peregrinação da imagem da Senhora por toda a diocese de Bragança, depois de ter feito igual viagem pela diocese da Guarda. A Igreja organizou e preparou com os maiores cuidados e pormenores essa visita. Através dos seus elementos (organizações, párocos e religiosos(as)) foi passando a mensagem ao povo. Também através do seu principal órgão de comunicação, o Jornal Mensageiro de Bragança, ia dando instruções acerca dos percursos, das datas e horas das cerimónias, assim como dos comportamentos apropriados para os leigos e devotos da Senhora.

 (JMB - 1/5/1949)

(JMB - 10/5/1949)

Estes dois recortes retirados do Jornal Mensageiro de Bragança, exemplificam muito bem a atitude da Igreja naquela ocasião. Num tempo em que a esmagadora maioria da população da diocese vivia numa miséria atroz, a Igreja, passeando a sua "Mãe", sempre rica e oponente, não hesitou, com o seu discurso pedinte e ganancioso, retirar o pouco e o nada dessa gente temerosa. Enfim, outros tempos.    

26 abril 2014

avô cantigas

Hoje a matiné foi para assistir um espectáculo do Avô Cantigas. A primeira canção que cantou foi a cantiga do avô Cantigas e no seu fim o artista disse que essa canção era um clássico, pois faz este ano trinta e dois anos de existência. Relembrou aos mais pequenotes que essa mesma música já serviu para entreter os seus pais. Verdade. Bastou esta afirmação para me levar para uma reflexão acerca do assunto.
Os meus filhos vêem os mesmos filmes e desenhos animados, lêem as mesmas histórias e ouvem as mesmas músicas, que eu um dia também pude ver, ouvir ou ler. Mas eu nunca tive acesso às histórias e às brincadeiras que entreteram os meus pais nas suas infâncias. Uma ou outra sobreviveu e serão como que imortais, mas na sua grande maioria desapareceram. A razão principal para tal reside no facto de no intervalo entre a geração dos meus pais, agora avós, e a minha ter-se dado o advento das novas tecnologias e da magia da gravação - cassete, vhs, cd, dvd, disco duro, pen, etc - que contribuíram definitivamente para a perpetuação das memórias. Creio que se chegar a ser avô, irei continuar a propor aos meus netos as cantigas do avô Cantigas. Fungagá.

22 abril 2014

faraway



07 abril 2014

a verdade nacional

Numa recente pesquisa ao arquivo digital do Jornal Mensageiro de Bragança, encontrei este parágrafo.

Não querendo descontextualizar, informo que este excerto foi retirado de um artigo intitulado "Nova mascarada trágica e sacrilega" do então Presidente da Câmara Municipal de Vinhais, Padre Firmino Martins, nas páginas 1 e 2 da edição nº 254 de 10 de Janeiro de 1949.

curas...

Aproveitando o facto de hoje se assinalar o Dia Mundial da Saúde:
Ao abrir um velho baú guardado na cave de uma casa desabitada, encontrei uma data de papeis soltos e correspondências de um outro tempo. No meio disso tudo, dei com os olhos numa velha receita para a cura do herpes Zóster - infeccioso e provocado pela reactivação do vírus da varicela, doença popularmente conhecida por zona. Como ainda hoje não há cura eficaz para essa doença, há quem tenha fé em curas alternativas e na boa sorte...

04 abril 2014

escritora a sério


Assinalando o centenário de nascimento de Marguerite Duras - 4 de Abril de 1914. Li-a quando jovem, continuo a lê-la quando adulto. Escrita impressionante. Do livro Escrever que utilizei na tese de mestrado, a propósito do acto de escrever:
"Gostava de contar a história que contei pela primeira vez a Michelle Porte, que tinha feito um filme sobre mim. Num dado momento da história, eu encontrava-me naquilo a que se chamava a despensa na «pequena» casa com a qual comunica a casa grande. Estava só. Esperava Michelle Porte nessa despensa. Fico muitas vezes assim, sozinha, em lugares calmos e vazios. Durante muito tempo. E foi nesse silêncio, nesse dia, que, de repente, vi e ouvi contra a parede, muito perto de mim, os últimos minutos da vida de uma mosca vulgar.
Sentei-me no chão para não a assustar. Já não me mexi mais.
Estava só com ela em toda a extensão da casa. Até então não tinha pensado em moscas a não ser, sem dúvida, para dizer mal delas. Como vós. Fui educada, tal como vós, no horror desta calamidade que afecta o mundo inteiro, que transmite a peste e a cólera.
Aproximei-me para a ver morrer.
Ela queria escapar à parede onde se arriscava a ficar prisioneira da areia e do cimento depositados sobre essa parede com a humidade do parque. Ela debatia-se contra a morte. Aquilo durou talvez entre dez a quinze minutos e, depois, parou. A vida tinha tido de parar. Fiquei ainda a ver. A mosca continuou contra a parede, como eu a tinha visto, como colada a ela.
Enganara-me: ainda estava viva.
Fiquei ainda ali, a olhá-la, na esperança de que ela fosse recomeçar a ter esperança, a viver.
A minha presença tornava essa morte ainda mais atroz. Eu sabia-o e fiquei. Para ver. Para ver como essa morte invadiria progressivamente a mosca. E também para tentar ver de onde viria essa morte. De fora, ou da espessura da parede, ou do solo. De que noite viria, da terra ou do céu, das florestas próximas, ou de um nada ainda inefável, muito próximo, talvez, talvez de mim, que procurava achar os trajectos da mosca em trânsito para a eternidade.
Já não sei o fim. Sem dúvida que a mosca, já sem forças, terá caído. As patas ter-se-ão descolado da parede. Terá caído da parede. Já não sei mais nada, a não ser que me fui embora. Disse para comigo: «Estás a ficar louca». E fui-me embora dali.
Quando a Michelle Porte chegou, mostrei-lhe o lugar e disse-lhe que uma mosca tinha morrido ali, às três e vinte. A Michelle Porte riu-se muito. Teve um ataque de riso. Tinha razão. Sorri-lhe para acabar com a história. Mas não: continuou a rir. E eu, quando vo-la estou a contar, assim, de verdade, na minha verdade, é o que acabei de dizer, o que foi vivido entre mim e a mosca e que ainda não se presta ao riso.
A morte de uma mosca é a morte. É a morte em marcha em direcção a um certo fim do mundo, que alarga o campo do último sono. Vemos morrer um cão, vemos morrer um cavalo e dizemos qualquer coisa, por exemplo, coitado do bicho… mas se uma mosca morre… não dizemos nada, não tomamos nota, nada.
Agora está escrito. Talvez seja neste género de derrapagem – não gosto desta palavra – muito sombria, que nos arriscamos a incorrer. Não é grave mas é um acontecimento único em si mesmo, total, de um significado enorme: de um sentido inacessível e de um alcance sem limites. Pensei nos judeus. Odiei a Alemanha como nos primeiros dias da guerra, com todo o meu corpo, com toda a minha força.
(…)
Também está certo que a escrita conduza a isso, a essa mosca em agonia, quero dizer: escrever o pânico de escrever. A hora exacta da morte, consignada, tornava-a já inacessível. Dava-lhe uma importância de carácter geral, digamos que um lugar determinado no mapa geral da vida sobre a terra.
Essa exactidão da hora a que ela tinha morrido fazia com que a mosca tivesse tido exéquias secretas. Vinte anos depois da sua morte, a prova aqui está, ainda se fala dela.
Eu nunca tinha contado a morte dessa mosca, a sua duração, a sua lentidão, o seu medo atroz, a sua verdade.
A exactidão da hora da morte remete para a coexistência com o homem, com os povos colonizados, com a massa fabulosa dos desconhecidos do mundo, as pessoas sós, aquelas da solidão universal. A vida está em toda a parte. Da bactéria ao elefante. Da terra aos céus divinos ou já mortos.
Eu não tinha organizado nada em torno da morte da mosca. As paredes brancas, lisas, sua mortalha, estavam já ali e fizeram com que a sua morte se tenha transformado num acontecimento público, natural e inevitável. Aquela mosca estava, manifestamente, no fim da vida. Eu não podia impedir-me de a ver morrer. Já não se mexia. Havia também isso, saber, também, que não é possível contar que essa mosca existiu.
Já passaram vinte anos.
(…)
Sim. É isso, esta morte da mosca, tornou-se o deslocamento da literatura. Escrevemos som o saber. Escrevemos a olhar uma mosca morrer. Temos o direito de o fazer.
(…)
À nossa volta todo o escrito, é isso que é preciso chegar a perceber, todo o escrito, a mosca, ela, escreve, nas paredes, escreveu muito na luz da sala grande, reflectida pelo tanque. Ela podia aguentar-se numa página inteira, a escrita da mosca. Então seria uma escrita. A partir do momento em que ela poderia sê-lo, ela é já uma escrita. Um dia, talvez, no decorrer dos séculos que hão-de vir, ler-se-ia essa escrita, seria também ela decifrada e traduzida.
(…)
Podemos também não escrever, esquecer uma mosca. Olhá-la, apenas. Ver como, por sua vez, ela se debateria."
(Duras, 1994:40 a 48)