Um Bailarino na Batalha, de Hélia Correia, foi distinguido com o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores. Na cerimónia de entrega do prémio, que aconteceu no dia 22 de Julho, na Fundação Calouste Gulbenkian, a autora fez uma intervenção que, agora, o Jornal de Letras publicou na íntegra. Dessa intervenção, sublinho as suas palavras sobre o ambiente censório que actualmente experimentamos...
Conheci a censura. Mas, não tendo gosto pelas memórias ressentidas, só muito raramente falo dela. (...) E, no entanto, está a acontecer. Não pela força de um poder instituído e frequentemente muito estúpido, mas pela força de um poder massificado, igualmente estúpido, igualmente autorizado por um puritanismo executório. É uma polícia de opinião que não parece imposta e que se aloja no interior de cada um para desencorajar a ousadia, sendo que a ousadia não está hoje na infantil libertinagem sexual e sim no dar palavra e dar figura ao que o homem e a natureza têm de terrível, de necessário, de indomesticável. Dar a palavra ao que é inominável, afrontar o tabu, eis a tarefa. Não podemos deixar que uma cruzada de higienização se estenda à arte. (...) A ameaça da ignorância muda de face mas não muda de maldade. A maldade benzida que extermina, essa maldade medieval que ainda opera noutros países da contemporaneidade, pouco difere desta maldade nova e aparentemente redentora que visa erradicar das histórias infantis tudo o que possa criar medo ou erros de julgamento. (...) Tal como o outro, este censor é um verme que passa para dentro da pele e decompõe a nossa liberdade natural. Mas, quanto a este, cabe a cada corpo social, ao indivíduo e ao grupo defenderem-se, num estado que não é de resistência, a nobre resistência da clandestinidade - mas de guerra. Guerra de rosto descoberto, guerra altiva. Porque ela, a ignorância, já calçou as botas para a parada.
(Hélia Correia, in Jornal de Letras nº 1274, Julho/Agosto 2019)
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