Regressemos a Carção, no concelho de Vimioso. Carção é um dos melhores exemplos da prática das nomeadas colectivas, pois é objecto de várias e diferentes nomeadas, naquilo que já denominamos de polinomeação, resultantes não só das suas actividades económicas, como também da sua condição étnico-religiosa. Se já nos referimos às suas nomeadas relacionadas com o seu ofício de almocreves - surradores,peliqueirosou curtidores, assim como ao seu gosto pelo jogo (batoteiros), destacaremos agora as nomeadas relacionadas com a sua condição étnico-religiosa. Carção é terra de judeus, e uma das comunidades transmontanas de referência do universo de Cristãos-Novos em Portugal. Ainda hoje é possível encontrar nesta comunidade várias sobrevivências materiais e imateriais desse ambiente étnico e/ou religioso.
Estes descendentes de cristãos-novos são os guardiães de vestígios históricos herdados em silêncio e a expressão social de uma alteridade que remete os seus protagonistas para uma condição de Outro no seio da comunidade local. (…) A herança do segredo confere-lhes uma consciência de grupo distintiva no meio social em que se inserem, e hoje suscita processos de construção ou reinvenção da identidade que conduzem à tentativa de recuperar sentidos históricos longínquos. (Lechner, 2007:2)
Os de Carção são, por isso, reconhecidos pelas comunidades vizinhas como os marranos. O termo marrano, diz-nos Elsa Lechner e segundo um estudo de Arturo Farinelli (1925), encontra-se no vocabulário espanhol de quinhentos e corresponde a um termo ofensivo - significando porco, em português - adaptado para denegrir, na época, os cristãos-novos de Espanha e Portugal. Ainda segundo a mesma autora, o seu significado de origem parece não se referir à relutância dos judeus em comer carne de porco, mas antes exprimir um sentimento de desprezo. (Lechner, 2007:3)
Foi ainda com a leitura deste texto de Elsa Lechner que conhecemos a nomeada de perro associada à comunidade de marranos em Carção…
Em Trás-os-Montes, e mais especificamente no Distrito de Bragança, os descendentes de judeus convertidos são apelidados de perro (cão, em português), ilustrando um facto antropológico identificado por Edmund Leach (1964) segundo o qual o uso recorrente de nomes de animais como injúria, cumpre uma função social de imposição de distância entre pessoas próximas. (…) Eles são o Outro mais diferente dos outros, ou seja, uma figura de alteridade extrema, remetida para um limiar de aceitação na fronteira com o animal. (Lechner, 2007:3 e 4)
Em Carção, mas também noutras comunidades vizinhas, tal como Argozelo, reconhecem-se como “da raça dos judeus”, aceitam as várias e diferentes nomeadas pelas quais são conhecidos na região. Contudo, quando confrontados com a nomeada de perros, a reacção é diferente, havendo não só resistência como também alguma indignação. Primeiro, porque muitos a desconhecem e, segundo, porque os poucos que sabem da sua existência não a compreendem, rejeitando-a por ofensiva à sua dignidade humana.
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