04 novembro 2011

R.I.P.

Apesar do fim espectável ao longo dos últimos dias, é sempre com tristeza que se sabe da partida de alguém que, com a sua presença, marcou o nosso, ou parte do nosso percurso de vida. Hoje foi o dia em que mais um velho e muito querido amigo partiu de vez. O Tio Evangelista - assim o tratava mesmo sabendo que nunca fora meu tio... - sem ser meu avô, sempre se comportou como tal e, para mim, era, e é, aquilo que de mais parecido se pode ser no desempenho de tal papel. Neste momento reflexivo, proporcionado pelo conhecimento da nossa "morte" inevitável, o que torna o tempo finito para nós, percebemos como só dispomos de uma certa quantidade de tempo para as nossas realizações pessoais. Essa consciência afecta sempre a nossa atitude perante esse projecto que é a vida.
As recordações deste amigo remontam à infância e a grande parte da juventude, tempo durante o qual convivi de bem perto com ele. Do seu convívio recordo a forma como adivinhava as horas do dia e o tempo que faria nos dias seguintes; vantagem premonitória para um bom lavrador. Terá sido o maior e, provavelmente, melhor lavrador que conheci. Foi um escravo do trabalho, incansável de dia e de noite com os cuidados com os animais e as fazendas. Era também muito afável e de sorriso fácil. Gostava de crianças e sabia brincar com elas. No final de um vida, longa vida de 93 anos, completados no mês de Setembro, tenho para mim que o Evangelista dos Santos teve uma vida boa, pois apesar das suas humildes origens, fez-se homem pelo trabalho na lavoura e na emigração, construiu uma casa e uma família com considerável descendência. Em sua casa, que muito frequentei e vivi, nunca faltou comida. Talvez por trauma de juventude - "o tempo da fome e da miséria já lá vai...", dizia - gostava de ver sempre a mesa farta e com muito açúcar... aliás, os mais próximos bem diziam que ele não punha açúcar nos alimentos ou bebidas, ele fazia o inverso, acrescentava qualquer coisa ao açúcar para dar algum sabor. Dizia-nos que o doce nunca era demais.
Foi já depois de ter ultrapassado largamente as oito décadas de vida, que o Tio Evangelista se deixou vencer pelo peso dos anos e foi largando progressivamente as lides da lavoura até que, nos últimos anos, se reduziu às pequenas coisas da casa. É pois com carinho e amizade que me irei despedir dele.


Fotografias - O Tio Evangelista a trabalhar, sempre a fazer alguma coisa... (fotografias da exposição "Lugares e Olhares")

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