Quando a pandemia foi declarada e o mundo fechou, incluindo o mundo da cultura, houve quem dissesse que a literatura seria a arte menos afectada. Os escritores poderiam continuar a ficar em casa a escrever. A ideia do escritor mais ou menos recluso faz parte de um imaginário. E se, de facto, a maior parte escreve em casa e continue a habitar a casa onde sempre escreveu, a ver- dade é que a casa mudou. Mesmo quando à volta tudo parece como antes.
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Como escrever assim? Como escrever numa altura em que todos os escritores do mundo parece que estão a to- mar notas sobre o mesmo assunto? Que romance se po- derá esperar daqui?, interrogou-se Sloane Crosley num ensaio na New York Review of Books em Março que traz à já difícil equação variantes tão complexas como as de es- paço e tempo, ambas alterados.
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A ideia romântica do escritor em casa, a trabalhar, a pensar, no lugar onde sempre esteve apenas com os seus demónios privados, nota Dulce Maria Cardoso, já não é possível. Ou não é possível agora:
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Rui Manuel Amaral: “Com o vírus a ficção ultrapas- sou a própria realidade. Qualquer coisa meio distópica em que éramos capazes de pensar há dois ou três meses podia ser transformada numa espécie de ficção literária. O mundo inteiro a parar por causa de um vírus não é nada que já não tivesse sido pensado de mil maneiras. Mas a ficção ultrapassou a realidade; neste momento estamos a viver uma espécie de ficção. Ou seja, a própria realidade tirou-nos o tapete e tirou-nos a substância ficcional. O que é que se há-de escrever neste momento? Tudo o que se possa escrever não chega aos calcanhares daquilo que estamos a viver na realidade, e é isso que está a tornar-nos meio mudos; ficamos meio paralisados. A ficção está paralisada porque a realidade ultrapassou a ficção."
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As andorinhas este ano ainda não chegaram”, conta Mário Cláudio, que também dei- xou de ver luz à noite nas casas dos vizinhos. “É estranho. Isso é muito estranho, porque as pessoas não estão só em casa; estão fechadas em casa.”
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Rui Manuel Amaral é, entre eles, o que escrevia e lia na rua. Faltam-lhe as esplanadas, os cafés que já não era o que costumavam ser, mas que talvez voltem a ser qualquer coisa mais próxima do que eram quando gostava deles. Remeteu-se a casa, só é capaz de escrever no blogue. “O blogue é um pretexto para ir rascunhando umas notas sobre o assunto, sobre o que é possível carimbar da es- puma dos dias. São coisas mais ou menos desinteressan- tes e banais, não é nada de especial, mas pelo menos obriga-me a ir mantendo a mão activa porque a ficção não me está a sair nada de especial. A realidade é mais louca do que qualquer coisa que possamos imaginar.”
[ Isabel Lucas, in revista Ípsilon do jornal Público, 10 de Abril de 2020 ]
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