20 março 2024

a casa do fogo e a fidalga


Ganhou contornos de lenda, ou pelo menos de estória fantasiada, mas que faz parte da memória familiar e até da comunidade local e que tenderá a desaparecer com o tempo e com a renovação das gerações, o que me leva a querer registar. É a história de Maria Ricardina Fernandes, minha tia-bisavó, natural de Vilarinho do Monte - Macedo de Cavaleiros, que casou em Vila Boa, no dia 7 de Julho de 1890, com João Manuel Fernandes do Vale, filho primeiro de José Marcelino Fernandes do Vale e de Maria Joaquina Pires Pousa. O casal, João Manuel e Maria Ricardina, ficou a viver em Vila Boa e tiveram três filhos. Consta que a Maria Ricardina, ainda com os filhos pequenos, ficou doente e muito tempo entrevada, confinada num quarto da casa e necessitando de muita assistência e cuidados, o que lhe valeu a nomeada de "fidalga". Pois bem, um dia deu-se um incêndio nessa casa que provocou a explosão de várias vasilhas de azeite, o que assustou de tal forma a "fidalga" que, sem qualquer ajuda, conseguiu fugir das labaredas e pôr-se a salvo na rua. Essa parte da casa ficou até hoje conhecida como a casa do fogo e a "fidalga" morreu não muito tempo depois (ainda no século XIX). O viúvo, João Manuel, com o desgosto da morte da mulher, ficou muito deprimido e recusava-se a aceitar o seu destino, não queria saber da vida, passava o tempo na cama e nem queria comer. Valeu-lhe o conforto e consolo de uma criada que tinha a seu serviço e para cuidar das crianças. O consolo foi tanto que um dia a criada apareceu grávida. A este propósito, muito mais tarde, um neto do João Manuel comentou: "a criada tanto insistiu... coma Sr. João, coma Sr. João... que ele comeu-a mesmo...". A verdade é que, por pressão familiar, principalmente do seu irmão António que era padre, o João Manuel casou em segundas núpcias com essa criada, de seu nome Benigma Ramos, natural de Alimonde, mas o ambiente ter-lhe-á sido tão hostil em Vila Boa que foi com a família, primeiro para Vilarinho do Monte, terra da primeira mulher e onde não terá sido bem recebido e, depois, para Nuzedo de Baixo. Certo é que nunca mais terá regressado a Vila Boa. Deste seu segundo casamento o João Manuel teve mais sete filhos. A casa do fogo manteve-se sempre na família e actualmente, desde há cerca de uma década, é propriedade do meu irmão Daniel, que comprou as sortes dos vários herdeiros.

(adaptação de um pequeno texto escrito e dactilografado pelo meu pai sobre a vida do seu tio-avô João Manuel Fernandes do Vale. Texto que me entregou em Janeiro de 2024)

19 março 2024

que eu fosse

"E agora, chegado quase ao fim da vida, o futuro que eu fosse já está quase todo consumido no passado".
Helder Macedo, in Jornal de Letras nº 1394, Março 2024.

18 março 2024

15 março 2024

Cara de Espelho


Amanhã, dia 16 de Março, na Casa da Música. Novo projecto nacional e é com enorme expectativa que vou assistir a este concerto.

faculdade inventar

"Tal como os surrealistas tantas vezes defenderam: é necessário ser cego para imaginar, é necessário impedir o aparecimento de imagens exteriores, reais, para que o delírio, a alucinação e o imaginário surjam com força, não do exterior, mas da parte mais interior da cabeça, daquela parte humana que pode inventar."
Gonçalo M. Tavares, in Jornal de Letras nº 1394, Março 2024.

13 março 2024

grisalho

Não restam dúvidas, faço já parte do crescente batalhão de grisalhos. Não que seja uma novidade, ou que hoje tenha acordado e ao ver-me reflectido no espelho isso tenha acontecido. Não, já há algum tempo que efectivei nesse contingente, mas esta mescla de tonalidades deixa-me perfeitamente pardo.

vamos LER

08 março 2024

mulher

"A mulher que se diz no singular refere-se a um destino que é sempre no plural".
Maria de Lurdes Pintasilgo

01 março 2024

(des)campanha eleitoral

Quando está a chegar ao fim a primeira semana da campanha eleitoral para as eleições legislativas de 10 de Março, permaneço ausente e sem qualquer contacto com o seu quotidiano, os seus casos, os seus protagonistas. Aquilo que vou apanhando é a espuma dos dias e aquilo que me chega por vias travessas... já ouvi falar das cuecas nacionalistas do André Ventura, da cabeça verde do Luís Montenegro, da Avó, do pai e do Piriquito da Mariana Mortágua, do garanhão Gonçalo da Câmara Pereira e pouco mais. Manter-me-ei afastado, ausente e desconhecedor. É também uma questão de preservação da minha sanidade. Tenho sido contactado para participar nas iniciativas do Bloco, mas não o irei fazer por discordâncias severas nos processos de democracia interna e nas escolhas dos candidatos. Em todo o caso, a percepção que tenho da aceitação e empatia do BE junto das populações não é a melhor e desconfio que se avizinha mais uma derrota eleitoral. Veremos.

29 fevereiro 2024

condenados à sobrevivência

Ontem, dia 28 de Fevereiro, pelas 18 horas, na livraria Gato Vadio, no Porto.

(Mário Tomé, Alcídio Torres e Luís Vale)

(a minha intervenção)

O livro que nos chega agora às mãos é, tal como o seu autor refere logo na introdução da obra, uma veemente denúncia do modo de produção capitalista e da sua avidez, sem olhar a meios, pelo lucro... nas palavras de Alcídio, “um libelo acusatório”.
Mas só à medida que vamos lendo este trabalho e conhecendo a amplitude, a abrangência e a densidade das consequências da precariedade do trabalho na vida dos trabalhadores é que percepcionamos e alcançamos a razão de o autor utilizar o qualificativo da veemência. Estamos, de facto, perante um trabalho aturado e apurado de desconstrução das narrativas hegemónicas da nossa contemporaneidade.
Bem, mas antes de mais...
Agradecendo o convite para aqui estar e me pronunciar sobre este livro, importa desde já fazer a minha declaração de interesses, isto para evitar qualquer mal entendido, ou qualquer incompreensão daquilo que vier a dizer. Este trabalho é, sem dúvida, de cariz social e aí sinto-me confortável; depois, naquilo que é a sua mais que declarada perspectiva marxista, também não me causa qualquer desconforto, mas sendo também um texto em que a economia e a finança são o fio condutor, não só da narrativa, como também das inúmeras etnografias – casos, dados, estatística, projecções, estimativas e afins – devo admitir a minha manifesta incompetência técnica e o meu ontogénico desinteresse por aquilo que, para mim, permanecerão ad eternum ocultas ciências e insondáveis saberes. Claro que a minha sensibilidade, a minha consciência e interesses cidadãos permitem-me perceber a sua relevância social e, assim, outorgar-me vir aqui pronunciar-me sobre tais matérias.
Dito isto...
Numa conferência dada em 22 de Fevereiro de 1969, no Collége de France, Michel Foucault reflectia sobre a questão: “O que é um autor?”, afirmando que este não está morto, constrói-se enquanto tal, enquanto persona, sujeito vivo que está constantemente presente através dos processos objectivos de subjectivação que o constituem e dos dispositivos que o captam e inscrevem nos mecanismos de poder. Alcídio Torres, enquanto autor, partilha de forma assertiva e sem contemplações ou hesitações, a sua visão do mundo, o seu lugar de fala e, tal como eu e, provavelmente, muitos dos aqui presentes, a sua ambição por uma outra existência para a condição humana, que obrigatoriamente se traduziria num mundo mais livre, mais justo e menos desigual. Enfim, num mundo em que se viveria e não se sobreviveria.
Mas olhemos com mais atenção para “Condenados à sobrevivência”. É, nos dias de hoje, um documento importante, pertinente e até seminal, pois não só permitirá conhecer em detalhes muitos aspectos que até agora eram desconhecidos da maioria dos cidadãos, ou então estavam disseminados espacial e temporalmente por diferentes e variados suportes e publicações, o que dificultava a sua leitura e interpretação. Uma das mais-valias e grandes méritos desta obra é esse esforço de reunião de informações, dados, factos e diferentes perspectivas sobre o neoliberalismo, sua história e suas características. Constitui-se ainda como fecunda fonte de informações e conhecimentos para posteriores estudos ou investigações.
Ao longo dos dez capítulos que compreendem esta obra, encontramos um mundo em acelerada transformação e percebemos as metamorfoses que o capital fez ao longo da sua história e, nesta última roupagem do neoliberalismo, vai realizando, sempre com o fito de não perder um centímetro do seu espaço e, se possível, até alargá-lo, que é como quem diz, não só não perder um cêntimo do seu lucro, como sempre que possível maximizar esse seu proveito.
Para uma leitura e compreensão mais eficazes, o autor socorre-se de uma panóplia daquilo que, por (de)formação académica, denomino de etnografias. Aqui, impressiona o conhecimento, a memória e os recursos de pesquisa a que Alcídio Torres se socorre, pois ao referir-se aos diferentes temas ou assuntos, ao longo de todo o texto, ilustra com factos e acontecimentos de geografias variadas e diacronicamente diversos, o que lhe permite, não só ter uma visão geral/macro, como incorporar cada etnografia nessa dimensão mais holística, como ainda apresentar os contraditórios que considera úteis e necessários para sustentar a sua perspectiva ou opinião.
Relembrando, uma vez mais, a minha iliteracia económica e financeira, em vez de debater dialeticamente, anuindo ou contrariando o autor, considero mais seguro e até mais interessante para quem me possa estar a ouvir (ler), referir-me a algumas dimensões da nossa existência a que a leitura deste livro me remeteu.
a) O neoliberalismo – altar sagrado do capitalismo contemporâneo, acessível apenas aos Super-Homens, aqueles que, nas palavras de Nietzshe, “realizam conscientemente a religião capitalista”, ou ao “bando soberano” da parábola Kafkiana. Um modelo sagrado de exercício de poder, que no seu radicalismo se propõe criar um “absolutamente improfanável” (Agamben, 2006) para o comum “Homem-Massa”, conceito criado por Ortega Y Gasset na sua reflexão sobre a “Rebelião de Massas” e o poder do anonimato, referindo-se ao “Homem-Massa” como alguém que em civismo deixava muito a desejar. Pois bem, o verbo necessário é então “profanar”, desactivar esses dispositivos de poder e restituir ao uso comum todos os espaços, todos os lugares e todos os tempos;
b) O Estado de Excepção – em que vivemos é agora, e desde há algum tempo, a regra permanente, que coacta ou elimina, de forma temporária, mas preferencialmente em definitivo, os direitos e a dignidade política aos cidadãos. É um tempo e espaço de anomia (suspensão ou fim da ordem social), ideal para a imposição das vontades e interesses dos mais fortes...;
c) A Persona – através da qual o indivíduo adquire um papel e uma identidade social, ou seja, uma capacidade jurídica e a dignidade política do homem livre (Agamben, 2010). Não esquecer que a luta pelo reconhecimento é uma luta por uma Persona, pois só existo se a “Grande Máquina me reconhece” no desempenho dos meus papeis sociais (Goffman, 1973);
d) A Biopolítica – implicação crescente da vida natural (biológica) do homem nos mecanismos e nos cálculos do poder (Foucault). Num mundo global, profundamente desigual, onde o Norte Global, paternalista, hipócrita, oportunista e usurpador, teima em perpetuar as dinâmicas e as narrativas de controlo e poder sobre o Sul Global, nunca como nas últimas décadas assistimos a tantas calamidades e catástrofes naturais e humanitárias, que, para além de toda a miséria, dor e morte, provocaram a deslocação de massas, milhões de seres humanos numa fuga e busca por uma condição de vida minimamente digna. Essa massa de indivíduos – refugiados, deslocados, apátridas, prisioneiros, migrantes religiosos e económicos – habitam uma terra de ninguém, sem lei nem roque, e sem qualquer cobertura do direito internacional. Nunca como na nossa contemporaneidade, os indivíduos foram tão despidos da sua condição humana e, reduzidos à sua vida nua, habitam uma zona indeterminada, um limbo existêncial;
e) Objectivação Participante – conceito de Pierre Bourdieu (2011), no seu trabalho sobre o Poder Simbólico, que se refere à implicação sobre um objecto de estudo muito particular, neste caso, a condição da precariedade do proletariado mundial, universo no qual se encontram alguns dos mais poderosos determinantes sociais da história das sociedades modernas e dos indivíduos que as constituem. Fala-se, entre outros, do sistema simbólico de poder, que é intrinsecamente hierarquizante, criando categorias de percepção de distinção social;
f) Determinismo Social - poderemos também ficar com uma ideia de que afinal estamos sujeitos, enquanto espécie, enquanto seres humanos e, depois, enquanto cidadãos e trabalhadores, a uma espécie de determinismo social, como que condenados a um destino sobre o qual não temos qualquer poder de influência ou decisão. Estamos presos espacial e temporalmente a um determinado contexto social e cultural, do qual não nos conseguimos livrar. O próprio Marx, numa das citações aqui presentes, se refere a algo deste género, quando afirma: “Os homens não são livres para escolher as suas forças produtivas, pois estas são adquiridas , produtos de uma actividade anterior.” E ainda: “O facto de cada geração posterior se deparar com forças produtivas adquiridas pela geração precedente [...] cria na história dos homens uma conexão, cria uma história da humanidade”.
Ainda uma última nota para os três documentos que são partilhados em anexos. Heterogéneos no formato, no propósito e até na idade, todos eles contribuem informando e complementando a essência do texto e, julgo eu, do pensamento do autor. No anexo um, a entrevista de Julian Assange, em 2014, pelo jornalista Eric Schmidt, é um excelente testemunho acerca da hegemonia tecnologia e digital e do seu poder simbólico e efectivo sobre a informação, a formação e até a condução e doutrinação das massas anónimas, nas diferentes dimensões da sua existência social. É também um alerta para os reais perigos e ameaças destes poderes desmaterializados e despersonificados sobre as liberdades de pensamento, de expressão, de denuncia e de contraditório. Mas é também uma landmark de esperança para um futuro mais transparente, mas consciente e mais livre, no qual se ambiciona que a evolução tecnológica permaneça como resultado ou consequência dos valores humanos então existentes e mais ou menos consensualizados, e não o seu contrário, ou seja, que o futuro da humanidade seja determinado pela evolução tecnológica.
O anexo dois é um relatório resultado de um estudo do governo chinês sobre as hegemonias ocidentais e, em particular, as dos EUA. Esse documento refere-se a cinco hegemonias: a política, a militar, a económica, a tecnológica e a cultural, o que resulta ainda num predomínio efectivo na geo-política à escala global dos EUA. Será este o diagnóstico que importará à China combater e, de alguma forma, tentar relativizar e equilibrar a influência e o estabelecimento de políticas que defendam os seus interesses no xadrez das relações e da diplomacia internacionais. 
No anexo três podemos encontrar um trabalho teórico de Andrés Piqueras, no qual sistematiza a sua perspectiva de análise sobre a actualidade do capitalismo neoliberal à escala global em vinte pontos estruturantes. Aqui podemos encontrar o poder hegemónico do paradigma capitalista, que ainda que possa estar em crise, mantém-se como o grande sistema ideológico e político na organização dos Estados e das sociedades humanas.
Tão longe já de Abril e tão perto da sua quinquagésima celebração, importa não esquecer que a democracia não é, nem nunca será um destino, é e será sempre uma viagem, um processo em construção, um compromisso. E mentem aqueles que afirmam que os ideais de Abril estão já alcançados e cumpridos. Não, não estão.
Caro Alcídio, termino regressando e parafraseando Michel Foucault (1997: 8):
“Eu teria gostado que existisse por trás de mim (tendo tomado a palavra há muito tempo) uma voz que dissesse: - É preciso continuar, eu não posso continuar, é preciso continuar, é preciso pronunciar palavras enquanto as houver, é preciso dizê-las até que elas [nos] encontrem, até que elas [nos] digam.”
Parabéns Alcídio e muito obrigado pelo teu trabalho e dedicação.

28 fevereiro 2024

o paraíso

"O Paraíso seria termos sempre memória, para que nada se perdesse. Tudo deveria ser rigorosamente lembrado para que, através de o lembrarmos, ser eterno. Porque ninguém perdura se sua memória acabou. Só me mantenho vivo enquanto lembro. O que esqueço mata-me. Perde-se e perde-me. [...] O Paraíso, cada vez mais, começa na Biblioteca. Nos livros que amo e que, por generosidade, lembram tudo continuamente e esperam por mim. Até que eu seja apenas como eles. Mais ninguém,"
Valter Hugo Mãe, in Jornal de Letras nº 1393, Fevereiro 2024.

pobreza energética. um exemplo

Um dia destes tive que me deslocar a um balcão de atendimento de uma grande empresa que, não por acaso, detém o monopólio da distribuição de energia em Portugal. Ao retirar a senha de atendimento, verifiquei que tinha à minha frente cerca de vinte pessoas e a espera seria considerável. Num espaço incrivelmente exíguo para tamanho movimento, aguardei encostado a uma nesga de parede livre e fui observando a performance das três meninas que iam atendendo os clientes, muitos deles, diga-se, pessoas idosas que traziam consigo muitas dúvidas, questões e reclamações. Num exercício de voyeurismo forçado, não pude deixar de ouvir e acompanhar muitas dessas conversas.
Uma das situações era a de um idoso que, com a última factura na mão, se queixava do valor cobrado. Normalmente pagava vinte, vinte e poucos euros, mas esta última apresentava um valor a pagar superior a cinquenta euros. O senhor estava indignado e suspeitava que o contador deveria ter algum problema ou avaria. A menina, depois de verificar no sistema, lá lhe disse que não havia qualquer problema com o contador e que esse valor correspondia à energia consumida nesse período de facturação. Ele teimava que não podia ser. E ela, num volume que inundava toda a sala, lá começou a fazer-lhe perguntas para tentar justificar o tal valor...
- Então o senhor, se calhar deixa as luzes acesas...
- Não deixo nada. Só sou eu e a minha mulher e as luzes sempre foram as mesmas...
- Mas tem ligado o aquecedor?
- Claro, está frio e eu ligo um aquecedor pequenino que lá temos...
- Pois, então é isso. Tem que desligar o aquecedor e embrulhar-se num cobertor...
Eu, assim como outros clientes que aguardavam vez, não queria acreditar no que estava a ouvir. Não consegui outra reacção que não sorrir, pois a vontade era partir para a ignorância e insultar aquela funcionária. Então, quando se sabe que muita gente em Portugal vive em pobreza energética e não consegue aquecer a casa em que habita, o conselho desta senhora é que um casal de octogenários prescindam da única fonte de calor que têm e se remedeiem com mantas e cobertores. Está certo.
Ao se despedir do senhor e enquanto este agradecia e se levantava para sair, reforçou a ideia, dizendo: - E já sabe, não se esqueça de desligar o aquecedor...
Miserável. Triste, muito triste.

o jardim

Durante maior parte da vida tenho vivido em apartamentos, ainda que com acesso a espaços de jardim ou similares, mas permanece em mim uma necessidade de ter um espaço ao ar livre, sombrio e com a privacidade que gosto e valorizo, mas principalmente, que seja só meu. Não sei se algum dia terei acesso a esse pedaço de chão, mas continuo a ambicioná-lo. No entretanto, vou usufruindo das sombras e sossego relativo que o jardim suburbano em que habito me proporciona. E gosto de lá estar e ficar.

máquina de escrever


Esta é a máquina de escrever do meu pai. Ainda hoje a utiliza quando quer escrever algo para guardar, ou para entregar aos filhos. Para além da memória que procura registar, penso que se preocupa em transmitir-nos aquilo que, de outra forma, não teríamos acesso ou conhecimento. É igualmente uma memória visual e sonora de infância e juventude, o meu pai na mesa da cozinha, na mesa da sala-de-jantar ou, mais recentemente, na garagem, debruçado sobre a máquina a martelar durante horas. Hei-de tirar-lhe uma fotografia nesse seu mester voluntário e alienante.
Comprou-a no início dos anos 80 e nunca mais se separou dela. Numa época em que a informática ainda não estava democratizada e à qual o meu pai sempre resistiu, quando nem sonhávamos que um dia teríamos acesso a um aparelho doméstico que imprimiria a preto ou cores os documentos, os trabalhos escolares eram redigidos nesta máquina e o meu pai esteve sempre disponível para o fazer. A mim fascinava-me, ainda me fascina, o bater das teclas e, depois, dos braços das letras no cilindro onde a folha de papel circula, mas não gostava de escrever, pois as teclas eram pesadas e moíam-me as pontas dos dedos e, por isso, pedia ao meu pai para me passar os trabalhos...
Aqui há uns anos, talvez uma década, ou um pouco mais, foi notícia o encerramento da última fábrica que produzia estas máquinas. Logo depois, e sem surpresa, deixou de haver no mercado fitas de tinta para estas máquinas e o meu pai andava aflito até que ficou um tempo sem a poder utilizar, mas não desistiu de procurar, até que, passado algum tempo, encontrou um fornecedor (não sei se incluído nestes pós-modernos movimentos revivalistas). Tratou logo de se abastecer para uns bons anos e, se não estou em erro, ainda se serve desse abastecimento.
É uma anacronia, bem sei, mas são objectos lindíssimos e que me remetem para um universo que adoro e que desde miúdo me encanta. Nunca comprei, nem penso fazê-lo, pois apenas serviria de adorno, mas talvez um dia guarde esta.

20 fevereiro 2024

pagar para escrever

Passados mais de dez anos desde que escrevi este texto (2012), eis que recebo um "convite" para o publicar numa suposta altamente prestigiada publicação. Mas atenção, o texto é excelente e merecedor de publicação na excelsa edição, mas eu terei que pagar "a Publications fee of $500" para tal acontecer. A lata desta gente! 
Partilho parte do email que recebi hoje mesmo...

"Dear authors,

The editorial team of the International Journal of Professional Business Review (JPBReview) read your article "TER, IGP e DOP: complementaridades territoriais?" presented in the congress "VIII Congresso Internacional de Turismo Rural e Desenvolvimento Sustentável (VIII CITURDES)". Considering the relevance of this congress in your knowledge area, and the quality of your work, we invite you to submit your article in our journal.

Once submitted, your article will be evaluated by external reviewers and, if approved, you’ll be required to pay a publication fee of $500 (American dollars). This fee includes registration of the article's individual DOI, text fomatting, database indexing and publication certificate. The review process of your submitted article takes approximately 10 working days."

o quadro


[ Não tenho a certeza, nem me apetece verificar, mas tenho a sensação de que já aqui, um dia, escrevi sobre este quadro. Em todo o caso, quero escrever isto e, por isso, aqui vai... ]

Penso ser uma pintura a óleo e está desde sempre numa parede da casa de meus pais. Sendo mais velho do que eu, conhece-me desde o berço. Gosto muito dele e não há dia em que não o olhe. Não sei bem porquê, talvez a meia-luz, o ambiente anacrónico, ou a combinação de elementos representados, mas tudo nele me transmite tranquilidade, sossego, paz e silêncio. Sendo património da família, um dia tenciono trazê-lo para minha casa, mas o que quero mesmo é continuar a olhar para ele naquela mesma parede.

19 fevereiro 2024

08 fevereiro 2024

24 janeiro 2024

dezassete, a contar

Pois bem, aqui estou eu a assinalar mais uma volta ao Sol deste recanto. O Apurriar faz hoje dezassete anos e continua a ser um espaço ao qual regresso quase diariamente, apesar de nem sempre ser para acrescentar valor, que é como quem diz, nem sempre há vontade ou inspiração para escrever algo que considere ser para este espaço. Importa também reforçar o prazer, a vontade e a intenção em continuar a contar os anos que vão passando, através da escrita e aqui. Assim sendo, obrigado e até breve.

12 janeiro 2024

os bifes, os gatos e a avó Antoninha

Durante a minha adolescência e, talvez, mais durante a minha juventude, adorava ir para Vila Boa e por lá ficar enquanto a escola não chamava por mim. Assim, passei inúmeras temporadas em casa dos meus avós paternos e sob a responsabilidade da minha avó, que, na sua fragilidade e com a sua tranquilidade e sabedoria, me aturava os devaneios e parvoíces de jovem, às vezes, inconsciente. Eu pouco parava em casa, a não ser para comer e dormir e ela, pacientemente, lá estava com todos os cuidados e mimos para comigo. Um dia, talvez final de uma tarde de Verão, estava eu no terraço da casa, com certeza, à conversa com alguém que se aproximou ou passou, quando a ouço praguejar alto na cozinha. De um salto vou ao seu encontro e só já ouvi: - Malditos gatos, que me levaram o teu bife!
Coitada da mulher. Tinha tirado um bife para me servir ao jantar, pô-lo a descongelar perto de uma janela aberta e soalheira, um gato vadio, esperto, num ápice lhe levou o suculento naco de carne. Ficou desconsolada, sem saber o que fazer. Tentei acalmá-la e disse-lhe para me estrelar um ovo que já ficava bem. Assim foi, mas ela andou uns dias a dizer mal da sua vida e, principalmente, do raio do bicho.

mais do que uma ideia, uma solução


Ontem no jornal Público, Miguel Esteves Cardoso, um insuspeito revolucionário, apresenta esta ideia como solução para o Jornal de Notícias e demais jornais e rádios do mesmo grupo empresarial. Para início de conversa parece-me muito bem e de maluca a ideia não tem nada. Houvesse coragem e era algo desse género que aconteceria para salvar não só os postos de trabalho, como salvaguardar o último dos grandes títulos da cidade do Porto. Não esquecer o que aconteceu ao Primeiro de Janeiro e ao Comércio do Porto.

07 janeiro 2024

alheira é uma salsicha?


A notícia do jornal Mensageiro de Bragança é já de 21 de Dezembro, mas só hoje estive a rever jornais e demais publicações para recortar aquilo que me importa para adicionar ao "dossier de imprensa" que há anos vou construindo.
Esta notícia é um achado e tudo nela é absurdo. Desde a classificação ou tipologia da Alheira enquanto salsicha, até à corrida para melhor do mundo (e arredores) e the last but not the least, o comunicado da autarquia. Para mais tarde recordar ou, com certeza, usar.

03 janeiro 2024

o Quim


Não sei porquê, mas aqui há tempos o Quim da Madalena veio-me amiúde à mente, de forma expressiva e até impressiva. Não foi em sonho, mas sim em momentos bem desperto, em que o seu rosto e sorriso, memórias de infância e de momentos com ele partilhados, me assaltaram deixando-me uma sensação triste e nostálgica.
O Quim era um miúdo da minha criação (nasceu em 1974) e cresceu na mesma rua (quase bairro) que nós. Era um miúdo tranquilo, apesar de algo irreverente e, talvez por isso, vítima de algum bullying (termo então ainda desconhecido e impraticado) por parte de outros miúdos que connosco conviviam. A sua alcunha, julgo que apenas por ter um redemoinho de cabelo logo por cima da testa, era “o peido”. Epíteto que, apesar de muito violento, foi assimilado e assim utilizado durante muito tempo. Penso que só mais tarde, talvez já adulto, tenha perdido essa alcunha.
De entre as muitas brincadeiras, traquinices e aventuras pelas redondezas, há dois momentos do Quim inesquecíveis, que guardei e agora partilho: o primeiro foi quando a jogar às Damas, no pátio do meu prédio (nº 115 da rua), e por motivo que já não recordo, nos desentendemos e, por isso, lhe dei violentamente com o tabuleiro de madeira nas costas. Para além da dor lhe ter provocado o choro e uma correria para casa, parti o tabuleiro e ficámos zangados durante um dia ou dois. As pazes não tardariam. O segundo momento, foi quando ele decidiu fugir de casa com apenas, sei lá, dez, onze ou doze anos, deixando uma carta de despedida aos pais. O sobressalto na rua foi generalizado e a presença das forças policiais mais dramática tornou a situação. Recordo a insegurança que todos, miúdos e graúdos, sentimos.
Se bem me recordo, o Quim terá caminhado para Sul, pela Estrada Nacional Um, durante um dia e uma noite, tendo sido encontrado no dia seguinte, encharcado e esfomeado, algures entre Santa Maria da Feira, São João da Madeira ou Oliveira de Azeméis, e devolvido aos pais. Bem mais tarde, já adultos, cheguei a questioná-lo sobre esta aventura e ele próprio não a conseguia justificar, reconhecendo que em casa e na família não havia qualquer problema ou razão para tal atitude.
Durante anos fomo-nos cruzando em Valadares e arredores, pois ele era, ou foi, operário da fábrica das agulhas. O Quim morreu no dia 5 de Maio de 2023 e eu só soube já ele tinha sido cremado. A certeza da sua morte surgiu num cartaz de funerária que ainda consegui encontrar numa montra devoluta na Madalena. O Quim tinha 49 anos e foi vitima de doença oncológica. Uma memória boa dele perdurará comigo.

Ao alto, o Quim no dia 21 de Janeiro de 2017, no lançamento do meu livro "Apurriar", na Maria Torrada, em Valadares.

(escrito em Bragança, 31 de Dezembro de 2023)

31 dezembro 2023

haverá sempre disto

Tal como nos dias anteriores, hoje de manhã saí de casa apenas para a dose mínima de cafeína, sem a qual não sei viver. Na pastelaria onde tenho ido, e na mesa ao lado, dois sexagenários trocavam votos de bom ano e comentavam com quem e onde iriam passar a passagem de ano. Um deles, enquanto dava mais uma passa no seu cigarro e bebericava o seu café, dizia que era um triste e que não tinha um tostão no bolso para gastar mais logo. Não sei se procurava apenas a solidariedade do amigo e cravar-lhe a despesa naquele momento, ou se era mesmo sincero o seu desabafo. Na dúvida, não deixei de comentar com quem comigo estava, que haverá sempre vícios mais fortes do que qualquer razoabilidade ou bom senso.
Enfim.
Bom ano.

28 dezembro 2023

sempre a perder

Estes dias de nada, em que pouco se faz a não ser as actividades básicas de sobrevivência, permitem-nos olhar para "coisas" que normalmente não temos disponibilidade para atentar. Entre garfos e facas, líquidos dentro de copos e algumas leituras, tenho aproveitado o tempo para folhear as páginas online dos jornais regionais e, hoje, num só desses lugares encontrei duas notícias paradigmáticas sobre o triste destino a que está votada a região transmontana. Não podendo aqui reproduzir a sua totalidade, deixo o link para a leitura integral das mesmas e um comentário para cada uma dessas notícias.


Já andavam todos os responsáveis autárquicos excitados e a proclamar loas aos sete ventos. Crentes. Mas algum dia Lisboa iria propor que a única (ou uma de duas) ligação ferroviária à Europa fosse traçada por Trás-os-Montes?! Vamos continuar a assistir ao esvaziamento e desestruturação desse território e, pior, com a anuência dos responsáveis locais e regionais, pois o importante é manterem o seu prato de sopa da panela cada vez menor.


Bem sei que, usando a razão, não há qualquer justificação para esta linha aérea existir. Não há gente, não há procura. Também é verdade que essa linha sempre foi uma benesse do Estado para a meia-dúzia de privilegiados naturais e/ou utilizadores da região e a população em geral pouco usufruía ou beneficiava com essa ligação. Ainda assim, penso que Lisboa e os decisores políticos acabarão por arranjar uma solução e a linha mais tarde que cedo retomará.

27 dezembro 2023

em Ousilhão


Festa de Santo Estevão, em Ousilhão - Vinhais, ontem 26 de Dezembro. Depois de muitos anos, regressei e encontrei uma festa viva e participada. Muita juventude e criançada mascarada, muitas raparigas e mulheres a mascarar-se e muito forasteiros, curiosos, especialistas e profissionais. Percepção de uma observação não-participante: caretos de adidas nos pés e telemóvel na mão.





angústia

"A angústia leva a melhor, depois leva ao melhor".
Samuel Úria, in Granta nº 11 (2023: 122)

16 dezembro 2023

ali vão os noivos

Hoje, manhã de Sábado soalheira, com as janelas abertas para a casa respirar, chegam-me aos ouvidos sons sequenciados de carros a buzinar. A associação não é imediata, mas lá acabo por perceber do que se trata. Há quanto tempo não ouvia este som ritual. Não consigo recordar essa última vez. Talvez o moderno ar dos tempos tenha também acabado com estes cortejos rituais de anúncio público de que ali vão os noivos. Não faz mal, mas hoje aconteceu.

13 dezembro 2023

Princípio de Peter e a democracia

Ao fazer a leitura e consequente reflexão sobre os acontecimentos políticos, no passado recente, em Portugal, por muitas considerações que podem ser aduzidas ao debate e por muitos juízos de valor sobre os factos e, principalmente, sobre a responsabilidade, a ética e a competência dos actores e intervenientes neste contexto de crise democrática, aquilo que me veio à mente foi o conceito, conhecido por Princípio de Peter (1969), de Laurence J. Peter, que imbuído na escola estruturalista, afirma que todos nós atingimos um nível de incompetência.
Sirvo-me deste princípio ou teoria, não porque considere que se tratou de incompetência política, mas para fazer uma analogia. Aquilo que assistimos em Portugal foi ao derrube de um governo, com maioria absoluta, democraticamente eleito e com todas as condições para se manter em funções. Não aconteceu por qualquer dificuldade governativa, nem tampouco porque existia um descontentamento social generalizado. Tratou-se de um puro e perfeito golpe de estado palaciano, perpetrado por intérpretes pouco ou nada conhecidos da maioria dos portugueses e cirurgicamente planeado por interesses ocultos, sem qualquer reacção ou indignação por parte dos partidos políticos, da opinião pública e publicada e da sociedade.
Assim, este é um momento que exemplifica ou testemunha, não um principio de incompetência da democracia, mas a sua indefesa, incapacidade e impotência face aos verdadeiros poderes que, ocultos, permitem-nos afirmar que vivemos numa democracia, mas atingindo determinados limites, tratam de decidir e impor as suas vontades e interesses, destruindo a ideia de Estado de Direito e todos os valores democráticos. 
Não se trata de qualquer teoria da conspiração, até porque não sou sequer simpatizante de António Costa, nem do seu governo, nem do PS, assim como também nunca votei neles, mas tenho para mim que a História se encarregará de trazer luz sobre tudo o que aconteceu em 2023, nesta nossa democracia.

fim do mundo

"O mundo vai acabar, não quando não houver tempo, mas sim quando não houver espaço.
Onde fica o fim do espaço?"
Gonçalo M. Tavares, in Jornal de Letras nº 1387, Novembro 2023.

12 dezembro 2023

cuando el otro también somos nosotros


Finalmente, chegou-me às mãos, proveniente de Ciudad Rodrigo, este livro de fotografias de Ángel Centeno, para qual escrevi o prólogo. Não conhecia o autor e foi através de amigo em comum que, nos últimos dias de Junho, fui desafiado por telefone para escrever adrede um texto sobre uma selecção de fotografias deste fotógrafo, que me enviaria em ficheiros e em formato reduzido para aliviar tamanho da carga... assim e célere o fiz.
Gostei da capa do livro e da sua organização temática, mas o papel escolhido não é o melhor suporte para receber este tipo de imagens a cinzentos e pretos. O meu texto foi traduzido para castelhano e surge como prólogo.

07 dezembro 2023

pontualidade

"Às vezes penso, aliás, que a minha obsessão com a pontualidade deriva de uma compreensão aguda da importância desse momento zero a partir do qual o enredo desabrocha, mas é mais provável que a causa disso seja uma patologia qualquer nunca diagnosticada."
João Paulo Vala, in revista LER - Outono 2023.

06 dezembro 2023

25 novembro 2023

ociosos voluntários

Há muito que nutro um fascínio pelos desocupados crónicos, perenes ou vitalícios. A primeira memória que preservo é a dos indigentes nómadas que deambulavam por Trás-os-Montes, neste caso pelas terras de Vinhais e Bragança, e que, a espaços não definidos, apareciam pela aldeia, apenas de passagem ou para ficarem alguns dias e noites. Desses relembro os rostos e os nomes do Bino, do Piralhas e do Laribau, todos já desaparecidos, mas que permaneceram no imaginário colectivo e também no meu.
Vivendo na cidade, apercebo-me que nas voltas do quotidiano cruzo-me com algumas personagens que aparentemente vivem numa ociosidade permanente e cuja única ocupação diária é percorrer os vários espaços de socialização, como cafés ou tascas, supermercados, paragens de autocarro ou estações de comboio, portas dos comércios ou até em determinadas esquinas, onde se detêm à conversa com amigos e conhecidos, bebem um copo ou fumam um cigarro.
Um dia gostaria de fazer algo acerca destes indivíduos. Não sei se histórias ou percursos de vida, se questionar as suas opções vs não-opções de vida, se apenas e só meras inspirações para exercícios de escrita, outra qualquer abordagem. Ou, às tantas, nada. Apenas continuarei a passar por eles e a projectar na mente todo um imaginário acerca das suas vidas.

22 novembro 2023

"ler ou não ser, eis a questão"

Afonso Cruz é um dos colaboradores assíduos do Jornal de Letras (JL), único jornal em papel que actualmente compro, e é um dos textos que espero sempre, pois regularmente me surpreende e me inspira para, vá-se lá imaginar, a produção de etnografias e antropologias. Por exemplo, um dos sub-capítulos de trabalho que, espero, em breve será publicado, surgiu da leitura de uma das suas crónicas neste jornal.
O título deste post é ipsis verbis o nome da última crónica de Afonso Cruz no JL e nela discorre sobre a importância da leitura e, ao mesmo tempo, da dificuldade que é cativar para essa leitura. Na impossibilidade de transcrever todo o texto, deixo algumas passagens:

"Como fazemos os adultos lerem mais? Como fazemos os jovens lerem mais? Como se formam leitores? Tudo isto revela algo sobre a própria natureza da leitura, cujo problema está na essência e não na política, ou no modo como ela, a leitura, é incentivada."
[...]
"A leitura normalmente não tem uma gratificação imediata, contraria as nossas características gregárias, isolando-nos dos outros e do mundo, impondo algum silêncio, exigindo atenção e concentração."
[...]
"A leitura não é naturalmente apelava, mas tem uma importância superlativa. A dificuldade, claro, é demonstrar a potenciais leitores que aquela pessoa sentada numa cadeira, em silêncio, alheada do que a rodeia, está a ter uma experiência gratificante, bela ou transformadora."
[...]
"É realmente difícil fazer passar a ideia inacreditável de que uma pessoa parada, debruçada sobre um livro, está a ter uma experiência emocionante, espectacular, capaz de lhe mudar a vida."
Afonso Cruz, in Jornal de Letras nº 1386, Novembro 2023.

21 novembro 2023

latu sensu

Quando constatamos que ficamos satisfeitos apenas com uma "sopinha" ao jantar, é certo que estamos já no trilho que nos levará até ao fim.

18 novembro 2023

a verdade

"O gosto da verdade a todo o custo é uma paixão que nada poupa e a que nada resiste. É um vício, por vezes um conforto ou um egoísmo."
Albert Camus, in A Queda (1956: 50)

15 novembro 2023

exercícios de escrita

A leitura de um pequeno texto de Humberto Martins, numa colectânea de textos intitulada "Exercícios de antropologia narrativa" (2022), remeteu-me para o universo rural ao qual eu me sinto pertencer. De facto, a sua "Lucinda" é uma personagem que eu reconheço em tantas e tantas mulheres que eu trago na memória e com as quais vivi, convivi ou apenas conheci. Por outro lado, este texto, aliás, todo o livro, reforça a minha percepção da importância da escrita etnográfica "livre" sobre os terrenos e indivíduos que vamos encontrando. Sempre gostei dessa escrita e considero-a muito rica e até seminal para as leituras antropológicas. O texto "Lucinda" é um bonito texto que me inspirou.

28 outubro 2023

na volta do correio, de ontem

vou LER

20 outubro 2023

medo ou hesitação

Sem ter ainda encontrado o caminho que quero seguir, estarei eu indeciso ou hesitante, ou será o medo que me tolhe o discernimento e me assusta de tal forma que não consigo atinar com o trilho que me atraia e cative e pelo qual não hesitarei em escolher e desbravar aquilo que houver para descobrir e conquistar?

13 outubro 2023

12 outubro 2023

inteligência artificial e consciência

"Enquanto a IA não for vulnerável à dor, ao frio, ao terror e à fantasia, não será IA suficientemente inteligente. Apenas simula. Não pensa. E sem alegria, não há poesia. Sem poesia, não há consciência. A consciência é a última fronteira entre a Máquina e a Humanidade?"
Teresa Nicolau, in Jornal de Letras nº 1382, Setembro/Outubro 2023.

11 outubro 2023

alterações do clima, protestos pueris

Muito me tem espantado as reacções de todos aqueles que, confortavelmente instalados e a contribuir para o agravamento da situação, se têm insurgido e indignado pelos protestos dos jovens activistas ambientais, adjectivando-os de ingénuos e ignorantes. 
Meus senhores, não haja ilusões que alguma alteração relevante vá acontecer nos próximos tempos se dependermos dos vossos esforços e atitudes. Não estais disponíveis para qualquer mudança que prejudique o vosso conforto e modo de vida e, por isso, não compreendeis as atitudes e a visão do mundo dos mais jovens. Está visto que se dependermos daqueles que usufruem e mais dispendem dos nossos recursos naturais, o paradigma jamais se alterará. Precisamos de mais juventude, de mais protesto e de maior confrontação com o sistema que dita as leis com as quais destruímos a nossa casa comum. 
Meus senhores, o vosso horror com a tinta atirada ao ministro ou contra as montras de empresas, com as estradas cortadas ou com as correntes humanas, não será nada se comparado com aquilo que é necessário fazer. Revolução! e sem hesitação.

alterações do clima, raio de ideia

Estamos em meados de Outubro e mais parece que estamos em Junho ou Julho. Estou em casa e o termómetro marca 28 graus, saio para a rua e não se consegue estar ao Sol, vejo toda a gente desnudada e, ainda assim, abafada e transpirada com o calor que se faz sentir. E estamos em meados de Outubro. Outubro, o tal mês de Outono, dos tons quentes, das ventanias e dos primeiros calafrios invernais.
Espreitamos as notícias que nos chegam de todas as latitudes e longitudes, mais do mesmo, quer dizer, desequilíbrios climáticos extremos, manifestados por fenómenos anormais, tais como dilúvios de água ou infernos de fogo.
Mas não importa. Ninguém ou quase ninguém quer saber, tudo está bem e o que importa é manter a máquina do trabalho, do investimento, do lucro, do desenvolvimento e do progresso em marcha. Continua a não se olhar a meios para se atingir os fins. Fins esses que teimosa e estupidamente os poderes acreditam ser infinitos e até eternos. Engano ou mentira. Na verdade, esses poderosos sabem o precipício para o qual nos empurraram, mas o seu egoísmo é tal que não querem saber que mundo lhes vai sobreviver, ou se vai sequer haver mundo depois deles. Haja o que houver, o saque e a exploração dos recursos naturais e humanos têm que permanecer até ao esgotamento total.
Impressiona-me este caminhar consciente da humanidade para o cadafalso. São poucos e "loucos" os que lutam contra esses moinhos de vento. Triste fim nos espera.

02 outubro 2023

actas edição 25 das jornadas culturais de Balsamão


Apresentadas no passado dia 29 de Setembro, no decorrer da vigésima sexta edição das jornadas culturais, e com uma impressão mais cuidada e a cores por se tratar dos vinte e cinco anos ininterruptos destas jornadas. Aqui faço uma pequena reflexão sobre os possíveis futuros deste evento.

26 setembro 2023

aguarela


Tenho esta aguarela emoldurada e exposta numa parede de casa. Já tem uns anitos, mas continuo a gostar dela e da paisagem que retrata e eu reconheço. Foi pintada pela Ia e vai permanecer por perto. Estou a tratar de a fazer perdurar para lá da minha existência.

21 setembro 2023

insofismável

"O desfecho histórico de qualquer choque entre deuses foi determinado por aqueles que empunhavam as melhores armas e não por aqueles que possuíam os melhores argumentos."
(Berger e Luckmann, in A construção Social da realidade, 2004:117)

15 setembro 2023

O melindre dos ilustres trinta e sete

Esta notícia saiu ontem, dia 14, no jornal Público e, quase de imediato, me motivou a escrever o texto que se segue. Depois, fui contactado para ceder o texto para uma petição a apresentar ao executivo da Câmara Municipal do Porto, o que aceitei com a condição de ser subscrita apenas por trinta e oito "não-ilustres". A ver vamos.




O sobressalto cívico ao ler a notícia da edição de hoje do jornal Público - “Estátua de Camilo deve ser removida após petição que invoca questões de gosto e moral” de Lucinda Canelas, não poderia ser maior. Então porque há trinta e sete indivíduos que não gostam de uma obra colocada num espaço público da cidade, o Presidente da Câmara Municipal decide, unilateralmente, retirá-la e remetê-la ao pó e ao esquecimento dos depósitos municipais?
Estamos, de facto, perante mais uma manifestação de um poder discricionário e arbitrário que não revela mais do que o tique da soberba elitista que gere e governa os destinos do município. Não importa quem são os trinta e sete signatários de tal petição, na medida em que se tratando de uma petição entregue na Câmara Municipal, ela carece de representatividade na manifestação de uma proposta, reclamação ou indignação da população do município. Quantas petições não terão sido já entregues na autarquia com bem mais signatários que não mereceram qualquer atenção do executivo e do Sr. Presidente? Mais, pelo que se percebe da notícia, a petição não foi merecedora de debate em sede de Assembleia Municipal ou, sequer, de executivo, apenas uma decisão de “mande-se retirar” porque há trinta e sete “tão ilustres cidadãos” que a consideram um “desgosto estético” e uma “desaprovação moral”. Tanto haveria a dizer sobre a tormenta e o constrangimento destas trinta e sete almas por causa da referida estátua, mas aquilo que importa é, uma vez mais, a atitude sobranceira de Rui Moreira. A autarquia, num determinado momento, promoveu ou apenas aceitou a instalação deste monumento escultório da autoria de Francisco Simões, o que significou liberdade de expressão e de criação para um artista. Trata-se de uma representação, de uma abstracção e não, como garante o autor, de um retrato de Ana Plácido ou de Camilo Castelo Branco. Citado nesta peça, o mesmo afirma que “cada um tem direito à sua interpretação, à sua subjectividade. Não tenho a pretensão de agradar a todos. A unanimidade em arte não existe.” Reforçando esta ideia de Francisco Simões, mau, muito mau sintoma é quando assistimos a unanimidades culturais. Por outro lado, o gosto individual - o meu, o teu, o dele e o do presidente da autarquia - não deve ser critério para escolhas ou decisões políticas e de gestão autárquica. Parafraseando os signatários desta peculiar petição eu diria que “favor higiénico” para a cidade e seus cidadãos seria respeitar a diversidade e a criatividade das manifestações artísticas e culturais. O “gosto estético” e a “aprovação moral” devem-na reservar para os espaços próprios, privados e íntimos, onde, aí sim, nem sequer são necessárias petições ou signatários.

12 setembro 2023

falar e escrever o outro

"Antropologia é vida, diz-nos Ingold, convidando-nos a pensar desde uma epistemologia inclusiva que nos 'deveria' obrigar a pensar a realidade conjugada num gerúndio incompleto, processual e circunstancial. Afinal, durante o trabalho de campo (em rigor, em qualquer investigação que implica relação entre pessoas) há pessoas que se encontram e que tentam fazer sentido uma da outra sem que necessariamente tudo caiba dentro das categorias de entendimento comuns. [...] Os textos académicos 'matam' os sujeitos como pessoas de carne e osso, objectivando-os e adjectivando-os segundo grelhas que reduzem tanto de tanta vida e de tanta coisa que fica para contar e que é merecedora de ser contada. [...] Falar menos de alguém porque é de um lugar, de uma cultura, de uma sociedade e falar mais com alguém que também faz um lugar, uma cultura e uma sociedade. E falar a partir de uma possibilidade de tornar essoutros, que muitas vezes nos chegam diluídos em categorias analíticas, em interlocutores de carne e osso que tornam os antropólogos tão humanos quanto eles, tão humanos quanto nós."
Humberto Martins, in prefácio de exercícios de antropologia narrativa, 2022 - pp. 11 e 12.

05 setembro 2023

01 setembro 2023

consciência rural vs urbana

O antropólogo franco-brasileiro Júlio Sá Rêgo dedicou-se a percorrer as serras do Norte de Portugal e os trilhos e caminhos do pastoreio de cabras e ovelhas. O resultado desse esforço é este pequeno livro que, aproveitando este final de Verão à beira-mar, li de um fôlego só. Por ambientes que reconheço e me são familiares, este trabalho deverá ser entendido, acima de tudo, como um grito de alerta para a situação precária e, nalguns contextos, em vias de extinção destas raças ovinas e caprinas, assim como do modo de vida de muitos indivíduos e suas famílias. O despovoamento do interior do país resulta também desta triste realidade, desconhecida da maioria da população. A quem se interesse por estes universos, reais e anti-distópicos, aconselho a sua leitura.


"Populações rurais têm a consciência dessa sua relação com o ambiente, elas o habitam, enquanto populações urbanas apenas o ocupam. A cidade vive em dicotomia com o ambiente que se torna um mero receptáculo de vidas ocupadas e de infra-estruturas acimentadas; no rural a consciência é de que as trajectórias de vida estão interligadas ao ambiente. [...] O vínculo com o lugar é uma das especificidades da identidade camponesa." (páginas 120 e 121)

29 agosto 2023

ignorantes epistémicos e analfabetos morais

"Estamos a caminhar para um Planeta com um aumento médio de temperatura que poderá atingir 5 ou 6º C no final deste século, continuando a subir depois disso. Continuamos a ser governados por ignorantes epistémicos e analfabetos morais - avençados pelos poderes fácticos que mandam nos mercados, o verdadeiro centro do poder mundial - que se apresentam a eleições onde as cartas estão viciadas.
Num plano de filosofia da história e da antropologia, o que está em causa é sobreviver à vergonha de pertencer a uma espécie arrogante que se comporta como um vírus suicida, embora se atreva a reclamar uma filiação em deuses que ela própria criou e exterminou. No horizonte pessoal, o desafio, é o de saber se iremos esperar pelo golpe de misericórdia, paralisados na água fervente de um mundo cada vez mais inabitável, ou se nos ergueremos em revolta, mesmo sem outra esperança do que a defender a dignidade mínima que só a capacidade de lutar nos pode conferir." (negritos meus)
Viriato Soromenho-Marques, in jornal de Letras nº 1380, Agosto e Setembro 2023.

23 agosto 2023

rituais que se vão repetindo

"Recordo tudo isto enquanto espero, sentado numa pipa de vinho perto do fim do mundo, e escrevo anotações num caderno de folhas quadriculadas que Bruce Chatwin me ofereceu para usar justamente nesta viagem. E não é um caderno qualquer. Trata-se de uma peça de museu, de um autêntico moleskine, tão apreciado por escritores como Céline ou Hemingway, e que já não existe. Bruce sugeriu-me que fizesse o mesmo que ele antes de usá-lo: numerar as folhas, escrever nas duas contracapas o meu nome e pelo menos duas moradas no mundo, e, na primeira folha, a promessa de uma recompensa a quem encontrar e devolver o caderno em caso de extravio.
[...]
Bruce informou-me de que os moleskines vinham das mãos de um encadernador de Tours, cuja família os fabricava desde princípios do século, mas que, após a morte do artesão, em 1986, nenhum dos descendentes quis continuar a tradição. Que ninguém se lamente por causa disso.
[...]
Quando Bruce Chatwin soube que nunca mais haveria moleskines, comprou todos os que encontrou e é num deles que escrevo estas notas."
Luis Sepúlveda, in revista LER verão 2023, página130.

18 agosto 2023

inteligência artificial

A propósito do artigo de Diogo Ramada Curto na revista LER deste Verão, que acabo de citar e no qual o autor se refere à evolução das "máquinas pensantes" até à actual inteligência artificial (IA), sem perceber nada, ou quase, sobre o assunto, nem ter qualquer pretensão de me dedicar à questão ou aderir a essa vertigem tecnológica, faço aqui o meu manifesto ou declaração de interesses.
Não sendo uma questão propriamente nova, nem pretendendo ser céptico ou velho do Restelo, sou aquilo que poderemos designar de agnóstico sobre a IA, suas características, sua história, seu potencial e suas aplicações. É um universo que não me desperta qualquer interesse ou, sequer, curiosidade. Ela há-de me aparecer pela frente e aí, talvez, dedique algum do meu tempo a reflectir sobre, mas por enquanto deixo para os especialistas - informáticos, engenheiros e afins, tudo o quanto é pensado, dito e partilhado.
Nesta atitude agnóstica quero afirmar, em todo o caso, que tal como a fotografia não destruiu as artes e a literatura, como Baudelaire prevera, e tal como o vídeo não matou as estrelas da Rádio, como dizia a canção, também a IA não irá acabar com a literatura, muito menos com as ciências sociais. Não creio numa IA apocalíptica nem milenarista. Continuará a haver todo o espaço para a criação de mundos fantásticos e universos singulares; continuará a haver muitos terrenos para estudar e trabalhar. Vamos a eles.

literatura e sobrevivência

"Aquilo que chamamos literatura está impresso na nossa consciência, pois é a nossa forma de selecionarmos, entre os destroços do mundo, as histórias cujo significado encerra conhecimentos úteis para sobreviver num ambiente adverso."
Diogo Ramada Curto, in revista LER - Verão 2023: pág. 126.

04 agosto 2023

não adianta

Saio de casa e dirijo-me para a beira do mar. A ideia é instalar-me à sombra de uma qualquer esplanada com vistas para o mar, onde possa dedicar-me ao que me dá prazer. Até sei qual é o lugar onde quero ir e chego-me perto. Procuro um sempre difícil lugar para estacionar o carro e, quando já caminho para a praia e percebo o ambiente veraneal, sustenho o passo e arrepio caminho, num rebate de consciência de quem sabe que não vai estar confortável e nem vai aguentar muito tempo. Eu bem tento forçar-me, mas não adianta.

comoção

Eu já sabia, a notícia já me tinha chegado há umas semanas, o café Lexinho reabriu. Isto passados, sei lá, cerca de dez anos encerrado, talvez mais. Foi com um sorriso, de alegria e esperança, que recebi a notícia, pois isso permitir-me-á regressar a Vila Boa e, melhor, querer ir para Vila Boa e por lá ficar. Já terei um lugar para estar. É que durante este longo hiato em que não houve Lexinho, deixei de ter destino, ocupação ou socialização na aldeia.
Um destes dias regressei a Vila Boa com um grupo de amigos portuenses e, num Domingo de manhã, finalmente, pude ir ao "novo" Lexinho. Ao chegar, para além de rever alguns velhos amigos e conhecidos, foi comovido que transpus a porta e me sentei a olhar para o espaço que eu tão bem conheço. Para além de nós, o café estava vazio. A gente que por ali estava, preferiu a sombra da esplanada. Lindo. Para mim o melhor café do mundo, onde realmente gosto de estar.
Não sei se esta reabertura será duradoura ou apenas para época de férias. Contudo, e esperando que seja por muito e bom tempo, sei que nos próximos dias e semanas é para lá que quero ir.

escrever, ler e memória

"O povo em vez de exercitar a memória, apoiar-se-ia preguiçosamente na palavra escrita. A leitura seria efectivamente uma forma de recordar, mas não uma verdadeira memória. [...] O remédio que deveria ampliar a nossa memória, imaginação e sabedoria, não passa de um veneno, uma forma de preguiça, uma maneira de papaguear sem qualquer profundidade. [...] Ao escrever decoramos com mais facilidade a matéria é memorizada com eficiência enquanto as cábulas são escritas."
Afonso Cruz, in jornal de Letras nº 1378, Julho e Agosto 2023.

27 julho 2023

Sinéad o'Connor


Uma das figuras maiores e que marcaram a minha (nossa) juventude. Sob uma aparente fragilidade, uma tremenda voz, uma presença forte e sempre, mas sempre, irreverente e inconformada. Faleceu ontem aos 56 anos, mas não será esquecida e os seus discos continuarão a tocar cá em casa.

26 julho 2023

vamos LER

24 julho 2023

envelhecendo

"Com a idade, invento qualquer desculpa para me irritar. Estou todo ao contrário daquilo em que acredito e que defendo. Apregoo um envelhecimento pacificado, lúcido, todo feito de aceitação e alegria pelo que ainda há, mas envelheço estupefacto, nada satisfeito com os vezes do corpo e com o resto de paciência que me morre".
Valter Hugo Mãe, in jornal de Letras nº 1377, Julho 2023.

18 julho 2023

Assalto ao STOP, enquanto purga sanitária e expulsão de impuros

Fomos todos surpreendidos pela atitude musculada e, pelos vistos, cobarde do executivo de Rui Moreira em relação ao antigo centro comercial STOP. Solicitar o serviço da polícia municipal para vedar e selar aqueles espaços, sem aviso prévio, é a prova da má fé e da premeditação desta atitude. Mas estamos a falar do quê? O espaço STOP é há dezena de anos, um espaço cultural, heterogéneo e multi-funcional, onde dezenas de jovens e menos jovens encontraram o habitat possível e propício para a sua arte. Muita da arte que foi assimilada e hoje é aceite pelo mainstream comercial e industrial, nasceu dentro daquelas paredes de espaços exíguos.
Esta atitude do executivo é bem paradigmática da visão sectária que os seus protagonistas políticos têm da cidade. Ainda não tive a oportunidade de ouvir o que a Câmara diz em relação a esta situação, nem sei sequer se já se pronunciou, mas gostava de ouvir e ver Rui Moreira, pois sei que pelas palavras que irá pronunciar, pelo tom e pelas expressões faciais, se vai perceber, se vai revelar o nojo que sente pela diversidade das manifestações culturais, a sua crença nos espaços de exclusão social e, neste caso, cultural, quero dizer, a crença de que nem todas as manifestações culturais têm direito a existir e a ocupar o altar simbólico que é o centro da cidade, onde só os puros, leia-se da cultura erudita, podem aceder e permanecer.
É verdade que o STOP sempre foi um espaço polémico e, a espaços, notícia por isso mesmo. Contudo, até nessa polémica a Câmara Municipal nunca soube gerir a situação, nem foi sensível à situação precária do espaço e daqueles que se serviam e servem dele. Aquilo que a autarquia já há muito tempo deveria ter feito, em vez de estar preocupada e interessada nos possíveis negócios imobiliários e especulativos de todo e qualquer metro quadrado da cidade, era ter participado, ser agente activo e promotor, criando as condições mínimas e dignas daquele edifício para que a criação acontecesse. Para além de tudo isto, a visão sectária impede o executivo de entender o STOP como um espaço de liberdade cidadã e pedagógica, onde as novas gerações adquirem referências estéticas e culturais, onde aprendem e partilham experiências e onde podem transformar em mais-valias as suas biografias, as suas capacidades e as suas ambições, ao mesmo tempo que se desviam e afastam de trilhos ou percursos bem mais problemáticos.
Não faz qualquer sentido aquilo que hoje aconteceu. O gosto do edil não pode ditar aquilo que é ou não é, acontece ou não, na cidade. Mais uma atitude cobarde e vergonhosa por parte do senhor que gere os nosso destinos, que sabemos detesta muito do que o Porto foi, ainda é e, com ou sem ele, continuará a ser.

17 julho 2023

ervilhas de quebrar

Eu sempre as conheci como ervilhas de vagem, mas serão mais conhecidas como ervilhas de quebrar. É um dos sabores de memória mais vivos que guardo. Ainda hoje a minha mãe teima em comprar essa ervilha para acrescentar ao arroz, ou seja, para fazer arroz de ervilhas. Eu sempre adorei o sabor, mas também o perfume que elas libertavam, desde o momento em que saíam cruas do saco, até ao momento em que se abria a panela do arroz. Era um cheiro intenso e muito agradável para mim (aceito que haja quem não gostasse), mas entretanto aconteceu, algures nas últimas décadas, que apesar de ainda ser cultivada, comercializada e até frequente nas prateleiras dos comércios, ela perdeu o tão característico perfume. Experimentem cheirá-las cruas e verão como quase não têm cheiro e, depois, já cozinhadas perderam ainda mais fulgor. Agora comemos arroz de ervilhas quebradas sem o seu sabor e cheiro, mas recorrendo à memória gustativa para conseguirmos tirar algum prazer dessa iguaria.
O que se passou não sei, mas desconfio que esta degeneração se deveu à extinção das sementes naturais e à sua substituição pelas sementes produzidas pela indústria agro-alimentar. Com certeza haverá quem tem, pois guarda de ano para ano, de sementeira para sementeira, dessas ervilhas e continua a saboreá-las. Mas toda a produção para o consumo das massas, recorreu às sementes de pacote e assim contribuiu definitivamente para a evolução dessa espécie vegetal. Os vindouros jamais conhecerão o prazer de destapar uma panela de arroz de ervilhas de quebrar, acabada de sair do lume, e sentir a explosão do aroma da ervilha a espalhar-se pelo ambiente.

16 julho 2023

mãos nos bolsos

"Com as mãos nos bolsos nada se resolve. Mas transmite-se a mensagem de que não se vai atacar nem defender. Apático ou aborrecido, portanto, eis aquele que não está na posição de ataque nem de defesa.
As mãos nos bolsos não resolvem, mas pelos menos adiam.
Curioso que na cidade o número de pessoas com as mãos nos bolsos é reduzido. As pessoas andam de um lado para o outro, atrasadas ou perdidas.
As mãos no bolso colocam a pessoa no estatuto de observador. Há poucos observadores na cidade, todos querem agir. Uma precipitação, uma impaciência, uma ansiedade. Eis a descrição da cidade, espaço onde os bolsos são feitos para o dinheiro, não para as mãos."
Gonçalo M. Tavares, in jornal de Letras nº 1376, Junho 2023.

13 julho 2023

a quem possa interessar...


Eu vou lá estar. Apareçam.