27 novembro 2011

instante urbano xviii

O ritmo lento do comboio que me traz de regresso ao Porto e me fará chegar tarde a casa, acaba de parar na cidade de Coimbra, onde saem e entram alguns passageiros. Para perto do lugar que ocupo veio um jovem casal, bem-disposto e carregando cada um sua garrafa de vinho aberta. Ela traz uma garrafa de maduro branco e ele de maduro tinto. De imediato me vem à mente a imagem da imortal dupla de comediantes que, algures na década de oitenta, parodiavam com a situação do país através de dois personagens andrajosos e indigentes bêbados - o Agostinho (Camilo de Oliveira) e a Agostinha (Ivone Silva). Mal se sentam estendem logo à sua frente um farnel que de imediato javardamente devoram. Porque trago distinta música nos ouvidos, nem sequer me vou dar ao trabalho de tentar ouvir o que falam e tanto os faz rir; ou será o vinho que já os anima?!... Prefiro imaginar e ou muito me engano ou não vai sobrar gota naquelas garrafas e não vão sequer oferecer uma pinguinha. Acabaram com um brinde de... garrafas. Bonito.

26 novembro 2011

hoje, durante todo o dia...


Intervenção:

Na qualidade de membro eleito na Assembleia Municipal de Bragança gostaria de começar a minha intervenção por partilhar convosco a percepção recente de uma mudança comportamental dos partidos, principalmente do PSD. Fui eleito pela primeira vez em 2005 e desde então sempre tive o meu espaço e tempo de intervenção e nunca fui impedido de exercer o meu mandato. Não sei se coincidências, mas desde que ganharam as eleições e formaram governo radicalizaram a sua postura. Dou-vos dois exemplos dessa percepção:
a) Pela primeira vez desde 2005 fui impedido de intervir na A.M. de Bragança;
b) Vinte e tal estruturas de Moopy's do BE desapareceram nos distritos de Bragança;
Relativamente ao ponto em agenda, gostaria de começar por dizer que subscrevo na íntegra o documento que a Comissão Nacional Autárquica - comissão que integro - produziu e serve de ponto de partida para o debate político que o BE fará a propósito da reforma administrativa que o Governo pretende impor ao país.
Não estando de acordo com o "Documento Verde" por considerar que na sua generalidade não serve os interesses das populações, quero manifestar o meu sentimento de preocupação perante a possibilidade de esta reforma vir a acontecer nos moldes propostos por este documento. Por outro lado, considero que uma reforma administrativa é mais do que necessária e urge realizá-la.
Mas quero centrar a minha participação no Eixo 2 do nosso Memorando que diz respeito à organização do território. Tenho para mim que grande parte dos autarcas locais (presidentes de Junta de Freguesia e elencos das Assembleias de Freguesia) não está consciente dos reais propósitos desta iniciativa governativa... Ainda na semana passada a Assembleia Municipal de Bragança promoveu uma sessão pública de esclarecimento acerca deste "documento verde" e dessa sessão retirei três ilações:
1 - O verbo mais utilizado pela representante do PSD foi o "juntar", como se a solução para a reforma administrativa proposta dependesse da iniciativa de voluntariado dos autarcas locais para agregar localidades e/ou freguesias;
2 - Os oradores convidados não se sentem confortáveis com a proposta, nem seguros, nem confiantes em relação à sua aplicabilidade;
3 - Os autarcas locais presentes saíram desta sessão sem saberem mais do que aquilo que já sabiam, ou seja, nada;
Considero que tendo em conta as dinâmicas locais, intra e inter comunidades, será sempre complicado impor um qualquer modelo. Aceito que será preciso estabelecer critérios para rever o mapa administrativo, mas parece-me imensamente redutor cingir esses critérios à demografia e às distâncias relativas às sedes de municípios.
Será preciso conhecer as realidades sociais de cada freguesia e de cada localidade. É que em muitos casos, a proximidade geográfica entre localidades e freguesias não significa, obrigatoriamente, que exista uma relação de boa vizinhança e, em alguns destes casos, há processos históricos resultantes de factos ou episódios já muito antigos e que perduraram pelo tempo e na memória colectiva das comunidades. Por exemplo, tal como se diz que de Espanha não vem bom vento nem bom casamento, também poderemos aplicar o mesmo dito em relação às dinâmicas e aos processos de estigmatização entre tantas e mais comunidades, aldeias e freguesias. Em Trás-os-Montes há locais onde ainda hoje é possível encontrar reminiscências de sentimentos contraditórios e difusos relativos à reforma realizada na década de trinta do século XIX. Estamos portanto perante vivências quotidianas herdadas carregadas de simbologias latentes e que contribuem fortemente para as construções locais de identidade.
Uma outra ideia que importa salientar é que já há autarcas por esse país fora que não podendo, por limite de mandatos, recandidatar-se em 2013, percebem nesta reforma a oportunidade para se perpetuarem nos lugares que ainda ocupam; e não se coíbem de o dizer e assumir publicamente.
Tal como já disse, concordo e subscrevo o Memorando produzido em sede de Comissão Nacional Autárquica, e mais subscrevo e enfatizo a sua proposta de consulta popular referendária, no sentido de envolver e partilhar com os cidadãos a responsabilidade pelas opções de futuro. Contudo, esse ideal de democracia participativa que eu também protagonizo, receio e desconfio, só servirá para confundir e baralhar ainda mais todo o processo e dificultará exponencialmente toda e qualquer iniciativa voluntária de fusão ou agregação de freguesias.
A pressão e o ritmo impostos para avançar e terminar esta reforma são contraproducentes em relação ao tempo e aos interesses democráticos. Receio que, no final, esta reforma venha a ser imposta por Lisboa, imputando as responsabilidades políticas aos senhores da troika e dada como adquirida por grande parte dos portugueses, anestesiados que andam com o "medo" a tudo... Para finalizar, gostava de vos alertar para o facto de termos como próximo confronto eleitoral, tal como referiu o camarada Alberto Matos, a eleição autárquica em 2013. Penso que se impõe ao BE uma reflexão preparatória para esse desafio e, provavelmente, não será cedo para tal. Penso que teria sido importante incluir no programa deste encontro um ponto sobre aquilo que poderá ser a estratégia do BE para esse processo eleitoral.
(Almada, 26 de Novembro de 2011)

25 novembro 2011

uma carta para ti

Várias vezes te foste queixando do facto de eu não partilhar contigo aquilo que sonho. Pois muito bem, aqui vai algo que sonhei numa destas noites em que dormi sozinho. Viajávamos os dois num pequeno carro branco, se não estou em erro, num Renault Clio branco que alugara uns dias antes apenas para poder ir ter contigo. Viajávamos sem pressa e quase sem destino. Apenas tu e eu. Visitámos aldeias, vilas e cidades, encontrámos velhos amigos e caros familiares, parámos aqui para beber de um cano de água e ali para um beijo. Num ápice chegámos a um cimo de monte, sobranceiro e minhoto, lugar turístico e de enorme romaria. Para além do calor que sentimos e do gelado que comemos, do alto de uma penha, com deleite, apreciámos a paisagem para poente, para onde se podia sentir o pulsar da grande cidade que foi berço da nacionalidade e para onde o sol teimava em pousar. Os dois sozinhos. Já com o cair da noite viajámos para a Invicta e para aquilo que, então, era a tua e a minha casa. Tivera sido um dia bonito, um dia que jamais irei esquecer e que, amiúde, regressa em modo de sonho.
(Valadares, 1 de Novembro de 2011)

24 novembro 2011

de regresso à cruzada...

em dia de greve geral...

...a capa do jornal i foi esta.

23 novembro 2011

a very old and poor idea

Anda a passar nas rádios portuguesas um anúncio publicitário à marca Old Spice que me irrita a amígdala. Pelos vistos é um anúncio viral e fará parte da estratégia da empresa que comercializa esta marca. Quem terá sido a mente brilhante que se lembrou de afirmar: "Homem que é homem não tem frio, arrefece um pouco..." que frase estúpida! Então quer dizer que para usar esse líquido com cheiro é requisito não ter, nunca, frio; ou então, se tivermos frio não comprar, nunca, esse patchouli. Desconfio que as vendas, depois deste anúncio, irão quebrar. Assim como assim, com ou sem frio, eu opto por não o comprar, nunca.

Power Balance

Foi hoje notícia por todo o mundo a condenação da empresa que comercializa a pulseira Power Balance por publicidade enganosa. Facto que só estranho por tardio, pois jamais acreditei nas maravilhas da banha da cobra, principalmente quando ela é vendida por fulanos, armados em pintaloras e com discursos manhosos. Mas a verdade é que, talvez há dois ou três anos, não havia quem não as passeasse nos pulsos, garantindo que por isso até conseguiam caminhar, correr, descer e subir escadas, andar a cavalo, nadar, dormir e acordar, ressonar e copular com maior equilibrio (?!)... Claro é que foram os azeiteiros da bola e das artes em geral, os primeiros a fazerem-se fotografar com as ditas nos pulsos... Rica publicidade, dirão alguns. Desconfio que hoje, ao saberem da admissão da falta de credibilidade científica que sustente tanto equilíbrio, todos aqueles que ainda as trazem, sentiram-se logo desequilibrados e sem força, concerteza, em várias partes do seu organismo. Coitados. Tudo isto só vem comprovar que a tentação para a vigarice e para o logro é contemporânea e também sabe servir-se dos discursos actuais da globalidade e das novas tecnologias.

"Por 38 euros, melhore o seu equilíbrio com a pulseira de silicone Power Balance. Desenvolvida por um cientista da NASA, possui dois hologramas que entram em contacto com o campo energético do corpo, aumentando a sua eficácia." ...dizia a publicidade.

(Albano Jerónimo, o actor)

 (Cristiano Ronaldo, o jogador)

"na casa de..."

Bonita exposição de fotografias da autoria de Paulo Pimenta, que nos convida a visitar uma realidade constituída por objetos particularmente desadequados, rostos que não têm lugar em anúncios publicitários e corpos que não queremos nem desejamos ver. Uma jornada que dá a conhecer uma sociedade minoritária (ou não) e que a devolve ao centro da humanidade. No Fórum da Fnac do Gaiashopping até 19 de Feveiro de 2012.

16 novembro 2011

instante urbano xvii

Por razões que não importa aqui referir, tenho frequentado o Fórum da Fnac. Numa dessas vezes, estava eu entretido a fazer fichas de leitura quando me apercebo que alguém se aproxima demasiado da minha mesa. Levantei o olhar e dei com os olhos de uma linda jovem que me sorriu, disse "bom dia" e sentou-se na minha mesa. Aquilo que se seguiu foi mais ou menos isto:
- Olá, és o Luís?
- Sim, sou (?!?!)
- Eu sou a Renata.
(silêncio e troca de olhares)
- Não te importas que eu tome um café rápido?...
(sem esperar pela minha resposta, levantou-se e foi buscar um café ao balcão. Eu, num esforço maior do que o meu cérebro àquela hora da manhã conseguia processar, tentei reconhecer de algum lado aquele rosto, aquele nome, aquela voz... Enfim, um esforço inglório)
(regressou à mesa, a sorrir e a olhar para mim)
- Vais-me desculpar, mas eu não te conheço...
- Pois, nem eu a ti, mas também não é preciso.
- Não é preciso?!...
- Não. Vamos onde quiseres, fazemos o que quiseres e cada um vai à sua vida.
- Desculpa, mas não estou a perceber!
- Não estás a perceber o quê? Vamos lá, pois já estás a pagar...
(eu olho em redor e ela abre a bolsa e saca um creme que passa nas mãos)
(ela é nova, muito nova e com muito bom aspecto, sem grande aparato mas bem vestida)
(eu ainda atordoado pela abordagem dela, percebi então o que estava a acontecer e tentei esclarecer a situação)
- Pois, mas deve haver aqui alguma confusão. Deves ter-te enganado, pois eu não estava à tua espera...
- O quê?.. Então, estás a gozar comigo?.. Ao telefone disseste que te chamas Luís, que usas óculos e tens barba e que estarias aqui com um portátil aberto a trabalhar e agora dizes que não és tu!
(enquanto fala vai olhando à volta procurando alguém que também obedeça a essa descrição, mas de facto não há mais ninguém...)
- Pois, não sei o que te diga, mas eu, de facto, sou Luís, mas não te telefonei...
- Olha, podes até não querer ir comigo, mas agora vais ter que me pagar a deslocação...
- desculpa?!...
- Sim, sim. Paguei um táxi de Matosinhos para aqui e vou ter que regressar, portanto tens que me dar 60 euros.
(quando ouvi isto, não consegui evitar um sorriso, pensando que ela e mais alguém estariam a gozar comigo)
(ela quando viu a minha expressão facial, alterou radicalmente o seu semblante e ficou tensa)
- Bem, não estou para aturar merdas destas. Dá-me o dinheiro que eu quero ir embora...
- Podes ir embora, pois eu não te vou dar dinheiro nenhum.
 (ao ouvir isto, procura o telemóvel na bolsa, levanta-se e sai para o parque de estacionamento)
(eu ainda não queria acreditar no que me tinha acontecido, quando vejo-a a reentrar e, com má cara, a dirigir-se a mim)
- Luís, queira desculpar este mal entendido. Bom dia.
- Bom dia.
(...e foi-se embora sem dizer mais nada)
(eu, muito incomodado, também arrumei as minhas coisas e fui embora...)

para reflexão...


(com rabiscos meus e redacção minha das linhas não fotocopiadas - Jornal Le Monde Diplomatique, edição Portuguesa, Novembro 2011)

15 novembro 2011

feriados

A divulgação dos feriados nacionais que serão castrados ao calendário anual deve estar eminente. Partindo do princípio que considero esses dias de descanso, independentemente das suas origens e razões, um direito inalienável de todos os portugueses, ponderei acerca da pertinência da manutenção ou não de cada um desses feriados. Essa reflexão, obriga-me, desde logo, a declarar o meu respeito pelos portugueses e portuguesas que em cada uma destas datas vivênciam, experimentam e partilham as suas simbologias. Depois, obriga-me a afirmar que sejam eles de cariz religioso ou de cariz civil, todos eles representam muito, espacial e temporalmente, da nossa condição - do nosso ethos - enquanto país e seus nacionais. Por outro lado, importa reflectir sobre a verdadeira dimensão social desses dias na actualidade do nosso país.
O calendário anual tem treze dias (excluindo o Carnaval) considerados, desde há muitos anos, feriados nacionais, dos quais seis são de raiz civil e sete com motivações religiosas. 
Os feriados civis:
1 de Janeiro - primeiro dia do ano, normalmente de ressaca nacional e, por isso, para o bem da salubridade e saúde públicas, intocável; 
25 de Abril - último grande momento de refundação nacional e, por isso, ainda intocável; 
1 de Maio - conquista civilizacional do povo que trabalha em todo o mundo e por isso, espera-se intocável;
10 de Junho - dia das comunidades da diáspora e da portugalidade globalizada e, por isso, simbolicamente intocável;
5 de Outubro - dia da nossa República que atingiu uma idade que já nenhuma memória alcança e, por isso, descartável;
1 de Dezembro - praticamente com a idade do mito sebastiânico, já ninguém consegue alcançar a importância da restauração da independência nacional e poucos saberão a razão da dedicação deste dia e, por isso, dispensável;
Os feriados religiosos:
6ª Feira Santa (Março ou Abril) - encostado a um fim-de-semana de referência para o universo cristão e não só, que assinala a crucificação de Jesus e por isso, jamais a Igreja e os cristãos aceitarão o seu desaparecimento;
Corpo de Deus (Maio ou Junho) - dia de exultação popular à Eucaristia, celebra-se no 60º dia após a Páscoa. Na actualidade sem grande expressão litúrgica, é sempre uma das pontes de eleição para rumar às praias do Sul do país e, por isso, dispensável;
15 de Agosto - dia em que a igreja católica celebra ou assinala a elevação de Maria em corpo e alma ao céu, mas aquilo que se percebe por todos o país é um dia de grandes festividades e arraiais populares, aproveitando o facto de ser o mês de retorno dos emigrantes e, por isso, já sendo tempo, maioritariamente, de férias seria facilmente descartável do calendário;
1 de Novembro - dia de todos os santos e defuntos fiéis. Provavelmente, o dia com maior adesão da população crente e não-crente e que motiva as maiores deslocações a nível nacional e, por isso, dificilmente se conseguiria acabar com ele;
8 de Dezembro - dia que a igreja católica dedica à Imaculada Conceição que é também a padroeira de Portugal. Em teoria seria um feriado directamente ligado ao ethos nacional, mas não me parece que já assim seja e, por isso, perfeitamente dispensável;
25 de Dezembro - Natal e, por isso, nada a dizer;
Portanto, já que é para mexer e é, vamos lá propor acabar com os feriados dos dias: Corpo de Deus, 15 de Agosto, 5 de Outubro, 1 de Dezembro e 8 de Dezembro. Eliminaríamos assim e com alguma razoabilidade cinco feriados ao calendário anual. 

14 novembro 2011

muito interessante

(Le Monde diplomatique, edição portuguesa, Novembro 2011)

momento singular

Era com grande expectativa que aguardava a Revista LER deste mês de Novembro, pois tinha sido tornado público antecipadamente o encontro entre António Lobo Antunes (A.L.A.) e George Steiner (G.S.), na casa deste último em Cambridge e a publicação das conversas entre ambos nessa manhã de Outubro. O resultado do encontro destes dois génios é interessante. Sem ser magnífico, podemos verificar a magnanimidade intelectual de um e de outro, que apesar de estilos e artes distintas conseguem convergir naquilo que consideram interessante e importante. Dessa longa conversa, colijo alguns momentos:
A.L.A. - há uma coisa em que me detenho a pensar muitas vezes: que será dos meus livros quando eu já não andar por cá?
G.S. - Acabam de colocar um retrato meu na Universidade de Londres, um retrato que, a meu pedido, ficou com o nome de «il Postino» (o carteiro). Define-me em absoluto. Eu sou o postino. (...) É maravilhoso poder levar cartas! Não fui banqueiro, não vendi casacos de peles; de todos os desastres possíveis, fui postino. É isto ser professor. O bom professor abre livros aos outros, abre momentos aos outros.
G.S. - Bem, deixe-me que lhe agradeça de todo o coração.
A.L.A. - Eu é que agradeço, isto foi muito, muito emocionante para mim. As pessoas já não fazem isto.
G.S. - Agora, faço questão, nós temos vinho para servir. Bebe um copo de vinho?
A.L.A. - Só um pouco.
G.S. - Tinto ou branco?
A.L.A. - Branco. 
(George Steiner e António Lobo Antunes. Fotografia retirada da Revista Ler, nº 107, de Novembro de 2011)

09 novembro 2011

instante urbano xvi

Numa sala de espera da pediatria de um hospital privado da cidade do Porto, enquanto aguardava que a minha criança fosse consultada, pude observar a brincadeira dos petizes e confirmar que não há pais que resistam ao ajuntamento de mais do que uma criança. A sala ampla, estava bem ocupada com os pais sentados nas cadeiras encostadas às paredes. No centro da sala, desocupado, uma máquina colocada no tecto, projectava imagens no chão, permitindo às crianças interagir, pintando desenhos, chutando uma bola, vendo uns peixinhos a nadar, entre outras brincadeiras virtuais. Impressionante, pois nesse mesmo espaço estavam disponíveis duas mesas com actividades de desenho e pintura e quase nenhum miúdo se interessou por elas. Como facilmente perceberão, a concentração da canalha, com idades compreendidas entre 1 e 2 anos, era em cima das tais projecções. A determinada altura, uma miúda diz:
- Papá, olha a água.
- Sim filha, é uma piscina. Nada nessa piscina...
A miúda não se fez esquisita e de imediato se atirou para "dentro da água" da piscina, dizendo alto e em bom som que estava a nadar na piscina. Outros miúdos ao ouvirem isso, logo a imitaram nos gestos, transformando o espaço desta piscina virtual exíguo para tantos nadadores. Alguns, por pressão demográfica, nadavam mesmo fora da projecção, mas não importava, pois a água estava boa e quentinha, apesar de um se queixar do frio... Um outro, provavelmente mais viajado, afirmava e repetia com convicção:
- Este rio é muito giro...
Assim vai o mundo encantado da criançada. Bom ou mau, melhor ou pior do que outros, não sei. É o deles.

protocolos

"Se perguntássemos a um bom número de escritores de hoje (mas este importante inquérito nunca se tentou fazer) iríamos perceber sem dúvida que eles não podem começar a escrever sem um certo conjunto de hábitos e de instrumentos: a predilecção de certos horários, de alguns lugares, o gosto pelos materiais de papelaria, tudo isso desenvolvido, por vezes, até à obsessão, comporta um conjunto inextricável de motivações: medo da página em branco, temor da esterilidade possível (atrasada por intermináveis protocolos preparatórios), sacralização da escrita como verdade (ou como divindade prestigiosa), fascínio do prazer que é atribuído ao exercício manual do grafismo." (Roland Barthes, 2009:95)

04 novembro 2011

R.I.P.

Apesar do fim espectável ao longo dos últimos dias, é sempre com tristeza que se sabe da partida de alguém que, com a sua presença, marcou o nosso, ou parte do nosso percurso de vida. Hoje foi o dia em que mais um velho e muito querido amigo partiu de vez. O Tio Evangelista - assim o tratava mesmo sabendo que nunca fora meu tio... - sem ser meu avô, sempre se comportou como tal e, para mim, era, e é, aquilo que de mais parecido se pode ser no desempenho de tal papel. Neste momento reflexivo, proporcionado pelo conhecimento da nossa "morte" inevitável, o que torna o tempo finito para nós, percebemos como só dispomos de uma certa quantidade de tempo para as nossas realizações pessoais. Essa consciência afecta sempre a nossa atitude perante esse projecto que é a vida.
As recordações deste amigo remontam à infância e a grande parte da juventude, tempo durante o qual convivi de bem perto com ele. Do seu convívio recordo a forma como adivinhava as horas do dia e o tempo que faria nos dias seguintes; vantagem premonitória para um bom lavrador. Terá sido o maior e, provavelmente, melhor lavrador que conheci. Foi um escravo do trabalho, incansável de dia e de noite com os cuidados com os animais e as fazendas. Era também muito afável e de sorriso fácil. Gostava de crianças e sabia brincar com elas. No final de um vida, longa vida de 93 anos, completados no mês de Setembro, tenho para mim que o Evangelista dos Santos teve uma vida boa, pois apesar das suas humildes origens, fez-se homem pelo trabalho na lavoura e na emigração, construiu uma casa e uma família com considerável descendência. Em sua casa, que muito frequentei e vivi, nunca faltou comida. Talvez por trauma de juventude - "o tempo da fome e da miséria já lá vai...", dizia - gostava de ver sempre a mesa farta e com muito açúcar... aliás, os mais próximos bem diziam que ele não punha açúcar nos alimentos ou bebidas, ele fazia o inverso, acrescentava qualquer coisa ao açúcar para dar algum sabor. Dizia-nos que o doce nunca era demais.
Foi já depois de ter ultrapassado largamente as oito décadas de vida, que o Tio Evangelista se deixou vencer pelo peso dos anos e foi largando progressivamente as lides da lavoura até que, nos últimos anos, se reduziu às pequenas coisas da casa. É pois com carinho e amizade que me irei despedir dele.


Fotografias - O Tio Evangelista a trabalhar, sempre a fazer alguma coisa... (fotografias da exposição "Lugares e Olhares")

Livros & Leitores nº 107

Para um bom fim-de-semana...

02 novembro 2011

mas quem lhe disse a ele?!...

"...o nortenho frequenta a taberna para beber; o alentejano, para conviver. O nortenho bebe, o mais das vezes, sozinho; o alentejano bebe praticamente sempre com os amigos. O nortenho sai da taberna aos baldões e acabrunhado; o alentejano sai firme e vivificado de espírito. Em suma: o frequentador de tabernas do Norte é mais dado à carraspana; o alentejano, ao convívio e à participação nos cantes dolentes da sua planície..." (J. A. David de Morais, 2006:206)

Pergunto eu, enquanto nortenho: o que merecia um gajo que assim escreve e assim cristaliza a "realidade"?!...

01 novembro 2011

assim é a democracia


Bastou George Papandreou, o Primeiro Ministro grego (ao centro na fotografia), dizer que pretende referendar e devolver aos gregos a decisão de aceitar ou não um novo pacote de medidas de austeridade para poderem aceder a novas ajudas comunitárias e o mundo, pelo menos o ocidental e em particular o europeu, entrou numa espiral de pânico. O cariz e fundamento ideológico anti-democrático dos líderes europeus finalmente foi descoberto e admitido pelo receio de dar aos cidadãos europeus o poder de decidir o futuro. Assim se percebe de que "massa" é feita e que propósitos almeja esta gente que conduz os destinos da UE e da Zona Euro. Muito bem feito na Grécia. Assim sim. É a democracia a funcionar, é a liberdade de poder escolher um futuro, o seu futuro. Pena que tenha sido tão tarde, mas ainda bem que aconteceu. Está a acontecer.

dia de romaria nacional

Hoje é o dia de todos os santos para o universo da igreja católica. Por esse país não faltam manifestações mais ou menos semelhantes de celebração cultual aos mortos. Este é também o dia que traz consigo o chamado ciclo de Inverno do calendário anual. Por todo o lado este momento é, igualmente, assinalado com as mais estranhas, impressionantes, singulares e peculiares manifestações tradicionais. Conheço algumas delas e, dado o seu valor patrimonial e simbólico, prezo que possam resistir e sobreviver ao passar do tempo e não se transformar na estrangeirice do Halloween que por todo o lado tentam impor. Mas regressando ao culto dos mortos e à sua materialização oficial, será aceitável e até compreensível que pela proximidade, pela convivência e pelo amor, choremos de saudades e sintamos a falta de cada um dos nossos ante-queridos, mas aquilo que não é nada racional é acreditarmos que todos e cada um deles, com sua morte, adquiriu o estatuto de "santo". Assim, algo estará mal na nomeação deste dia, pois se assinalamos o dia de todos os finados, não se deveria nomear "dia de todos os santos", mas enfim. Numa atitude reflexiva e num período em que tudo e todos são questionados, a propósito da intensão do governo alterar o calendário dos feriados, pois eis um que poderia muito bem ser alterado ou suprimido. Porque não se passa esta "festa" católica para um Sábado ou Domingo?!.. Como ainda ontem João Quadros escrevia no seu Twitter, "ponham flores de plástico nos mortos e acabem com o feriado de amanhã, santa paciência". Com um pouco mais de sensibilidade, eu tenderia a concordar com ele.