25 abril 2024

a nossa liberdade

[cartaz feito pela minha filha e que vai levar consigo, hoje à tarde, para as ruas de Lisboa]

Não há como não registar o dia de hoje. Cinquenta anos passaram desde esse primeiro dia do resto das nossas vidas. O 25 de Abril de 1974 é, sem qualquer hesitação ou contestação, o dia mais importante da nossa existência enquanto comunidade ou sociedade, só que, passados todos estes anos, e à medida que o tempo vai passando, importa não deixar esquecer e continuar a assinalar, a relembrar e a celebrar. Os perigos e as ameaças serão crescentes. Logo, ocupemos as ruas das cidades. Eu, nós, vamos caminhar e celebrar nas ruas do Porto.

16 abril 2024

catraio maravilhado

"A senhora Gordon [Kim Gordon] está com 70 anos de idade, este mês de Abril, a 28, fará 71. Quando, com 16 anos, comecei a ouvir a sua música e me convenci de descobrir a melhor banda do mundo, pensei que uma avó nunca suportaria aquilo. O cansaço da vida, o desgosto de já se ter perdido gente, a dificuldade maior do corpo, tudo me parecia contribuir para não se resistir à intensidade de um som assim. Hoje, tanto tempo depois, a maravilha está em entender que a própria avó não só suporta um som assim como subiu o volume. O que me traz a impressão de que, afinal, a ordem está mantida, posso seguir sentindo que sou um catraio a curtir a maravilha que fazem aqueles que já são adultos. Isso conforta-me. Dá-me a esperança de ainda estarmos a seguir alguém."
Valter Hugo Mãe, in jornal de Letras nº 1396, Abril 2024.

05 abril 2024

descomplicar

"A única coisa que sei fazer é pôr as coisas por escrito para as compreender. Se não puser uma coisa por escrito, não a compreendo. Não a compreendo. Não a vivo. E não consigo. Não posso. É demasiado complicado."
Karina Sainz Borgo, in revista LER Inverno 2023 (nº 169)

03 abril 2024

há a vida

"O mais célebre talvez seja o de Octavio Paz: 'Os grandes poetas não têm biografia, têm destino'. É bonito, mas é uma treta. O destino, se é que há destino, está dentro da biografia. E dentro desta a escrita. Por causa desta frase de Octavio Paz, disse uma vez, numa entrevista, que era 'um poeta com biografia a mais'. Outra treta. Não há biografia a mais nem a menos. Há a vida. Que por vezes ultrapassa a ficção. Assim são todos os livros. Linguagem de linguagem. Ficção de ficção. Além da vida. E quase sempre aquém. Palavras de puro nada a puxarem umas pelas outras, sem factos, sem memórias, apenas elas, palavras, puro nada.Talvez só assim fosse possível contar a vida."
Manuel Alegre, in jornal de Letras nº 1395, Março 2024.

02 abril 2024

outra vez, sempre, Atenas


Passados dezoito anos regresso ao berço da nossa civilização. A primeira vez que aqui estive, sem nunca ter previsto cá vir, vim sozinho e foi uma surpreendente e agradável surpresa. Sempre disse que gostaria de voltar. Assim foi, ainda que desta vez seja uma visita muito breve. Terei o dia de amanhã para tentar ir lá cima e visitar a Acrópole. Gosto verdadeiramente de Atenas, pelo menos desta Atenas - arqueológica, gastronómica e da Plaka. Espero e quero cá voltar mais vezes.

31 março 2024

o chapéu: a catarse

Por ter uma cabeça descomunalmente grande e para grande tristeza minha, nunca pude ser um usador de chapéus, boinas e outros acessórios para a cabeça. Sim, há sempre a possibilidade de usar gorros, mas curiosamente nunca lhes achei piada, nem gosto de os usar, apesar de muitas vezes o fazer por verdadeira necessidade física.
Pois bem, eu tenho um chapéu, quero dizer, eu tinha um chapéu, um único chapéu e acabei de ficar sem ele. Não sei quantos anos o tive e usei, mas sei que já o tinha há mais de vinte e cinco anos. E sei porque tenho fotografias com ele na cabeça e ainda não era casado. Faz precisamente hoje vinte e cinco anos que casei e foi hoje também o dia em que o perdi. Irreparável dano.

from the army

[ Dialogue in English with the restaurant owner, in the middle of the meal, yesterday, March, 30th, in Fira ]

"- Sir, is everything all right here?
- Yes, everything is fine, thank you.
- Sorry, can I ask you where you come from?
- We come from Portugal.
- From Portugal?! Ok, very well. And may I ask you what you do for a living?
- I'm an anthropologist.
- Anthropologist?! Ok, I thought it was something else...
- Yes? What did you think?
- Well, You are very serious. In a good way, of course. I thought it was something in the army, but I was wrong. Sorry.
- Yes, completely. I never belonged and have always been very far from this universe.
- Sorry for the abuse.
- No problem."

---- tradução ----

[ diálogo em inglês com o dono de restaurante, a meio da refeição, ontem, 30 de Março, em Fira ]

"- Senhor, está tudo bem aqui?
- Sim, obrigado.
- Desculpe, posso perguntar-lhe de onde vêem?
- De Portugal.
- Ok. muito bem. E posso perguntar-lhe o que faz na vida?
- Sou antropólogo.
- Antropólogo!? Ok. Pensei que fosse outra coisa...
- Sim? O que pensou?
- Bem, o senhor é muito sério. No bom sentido, claro. Pensei que fosse algo nas forças armadas, mas enganei-me.
- Sim, completamente. Nunca pertenci e sempre estive muito longe desse universo.
- Desculpe o abuso.
- Não tem problema."

29 março 2024

voar

A ansiedade em que tenho vivido nestes últimos dias é devida, tenho a certeza, ao facto de saber que hoje irei viajar de avião. Há catorze anos que não o faço e permanece para mim como uma aventura desnecessária. Tremendo receio e desconforto em tirar os pés do chão. Mas vou.

20 março 2024

a casa do fogo e a fidalga


Ganhou contornos de lenda, ou pelo menos de estória fantasiada, mas que faz parte da memória familiar e até da comunidade local e que tenderá a desaparecer com o tempo e com a renovação das gerações, o que me leva a querer registar. É a história de Maria Ricardina Fernandes, minha tia-bisavó, natural de Vilarinho do Monte - Macedo de Cavaleiros, que casou em Vila Boa, no dia 7 de Julho de 1890, com João Manuel Fernandes do Vale, filho primeiro de José Marcelino Fernandes do Vale e de Maria Joaquina Pires Pousa. O casal, João Manuel e Maria Ricardina, ficou a viver em Vila Boa e tiveram três filhos. Consta que a Maria Ricardina, ainda com os filhos pequenos, ficou doente e muito tempo entrevada, confinada num quarto da casa e necessitando de muita assistência e cuidados, o que lhe valeu a nomeada de "fidalga". Pois bem, um dia deu-se um incêndio nessa casa que provocou a explosão de várias vasilhas de azeite, o que assustou de tal forma a "fidalga" que, sem qualquer ajuda, conseguiu fugir das labaredas e pôr-se a salvo na rua. Essa parte da casa ficou até hoje conhecida como a casa do fogo e a "fidalga" morreu não muito tempo depois (ainda no século XIX). O viúvo, João Manuel, com o desgosto da morte da mulher, ficou muito deprimido e recusava-se a aceitar o seu destino, não queria saber da vida, passava o tempo na cama e nem queria comer. Valeu-lhe o conforto e consolo de uma criada que tinha a seu serviço e para cuidar das crianças. O consolo foi tanto que um dia a criada apareceu grávida. A este propósito, muito mais tarde, um neto do João Manuel comentou: "a criada tanto insistiu... coma Sr. João, coma Sr. João... que ele comeu-a mesmo...". A verdade é que, por pressão familiar, principalmente do seu irmão António que era padre, o João Manuel casou em segundas núpcias com essa criada, de seu nome Benigma Ramos, natural de Alimonde, mas o ambiente ter-lhe-á sido tão hostil em Vila Boa que foi com a família, primeiro para Vilarinho do Monte, terra da primeira mulher e onde não terá sido bem recebido e, depois, para Nuzedo de Baixo. Certo é que nunca mais terá regressado a Vila Boa. Deste seu segundo casamento o João Manuel teve mais sete filhos. A casa do fogo manteve-se sempre na família e actualmente, desde há cerca de uma década, é propriedade do meu irmão Daniel, que comprou as sortes dos vários herdeiros.

(adaptação de um pequeno texto escrito e dactilografado pelo meu pai sobre a vida do seu tio-avô João Manuel Fernandes do Vale. Texto que me entregou em Janeiro de 2024)

19 março 2024

que eu fosse

"E agora, chegado quase ao fim da vida, o futuro que eu fosse já está quase todo consumido no passado".
Helder Macedo, in Jornal de Letras nº 1394, Março 2024.

18 março 2024

15 março 2024

Cara de Espelho


Amanhã, dia 16 de Março, na Casa da Música. Novo projecto nacional e é com enorme expectativa que vou assistir a este concerto.

faculdade inventar

"Tal como os surrealistas tantas vezes defenderam: é necessário ser cego para imaginar, é necessário impedir o aparecimento de imagens exteriores, reais, para que o delírio, a alucinação e o imaginário surjam com força, não do exterior, mas da parte mais interior da cabeça, daquela parte humana que pode inventar."
Gonçalo M. Tavares, in Jornal de Letras nº 1394, Março 2024.

13 março 2024

grisalho

Não restam dúvidas, faço já parte do crescente batalhão de grisalhos. Não que seja uma novidade, ou que hoje tenha acordado e ao ver-me reflectido no espelho isso tenha acontecido. Não, já há algum tempo que efectivei nesse contingente, mas esta mescla de tonalidades deixa-me perfeitamente pardo.

vamos LER

08 março 2024

mulher

"A mulher que se diz no singular refere-se a um destino que é sempre no plural".
Maria de Lurdes Pintasilgo

01 março 2024

(des)campanha eleitoral

Quando está a chegar ao fim a primeira semana da campanha eleitoral para as eleições legislativas de 10 de Março, permaneço ausente e sem qualquer contacto com o seu quotidiano, os seus casos, os seus protagonistas. Aquilo que vou apanhando é a espuma dos dias e aquilo que me chega por vias travessas... já ouvi falar das cuecas nacionalistas do André Ventura, da cabeça verde do Luís Montenegro, da Avó, do pai e do Piriquito da Mariana Mortágua, do garanhão Gonçalo da Câmara Pereira e pouco mais. Manter-me-ei afastado, ausente e desconhecedor. É também uma questão de preservação da minha sanidade. Tenho sido contactado para participar nas iniciativas do Bloco, mas não o irei fazer por discordâncias severas nos processos de democracia interna e nas escolhas dos candidatos. Em todo o caso, a percepção que tenho da aceitação e empatia do BE junto das populações não é a melhor e desconfio que se avizinha mais uma derrota eleitoral. Veremos.

29 fevereiro 2024

condenados à sobrevivência

Ontem, dia 28 de Fevereiro, pelas 18 horas, na livraria Gato Vadio, no Porto.

(Mário Tomé, Alcídio Torres e Luís Vale)

(a minha intervenção)

O livro que nos chega agora às mãos é, tal como o seu autor refere logo na introdução da obra, uma veemente denúncia do modo de produção capitalista e da sua avidez, sem olhar a meios, pelo lucro... nas palavras de Alcídio, “um libelo acusatório”.
Mas só à medida que vamos lendo este trabalho e conhecendo a amplitude, a abrangência e a densidade das consequências da precariedade do trabalho na vida dos trabalhadores é que percepcionamos e alcançamos a razão de o autor utilizar o qualificativo da veemência. Estamos, de facto, perante um trabalho aturado e apurado de desconstrução das narrativas hegemónicas da nossa contemporaneidade.
Bem, mas antes de mais...
Agradecendo o convite para aqui estar e me pronunciar sobre este livro, importa desde já fazer a minha declaração de interesses, isto para evitar qualquer mal entendido, ou qualquer incompreensão daquilo que vier a dizer. Este trabalho é, sem dúvida, de cariz social e aí sinto-me confortável; depois, naquilo que é a sua mais que declarada perspectiva marxista, também não me causa qualquer desconforto, mas sendo também um texto em que a economia e a finança são o fio condutor, não só da narrativa, como também das inúmeras etnografias – casos, dados, estatística, projecções, estimativas e afins – devo admitir a minha manifesta incompetência técnica e o meu ontogénico desinteresse por aquilo que, para mim, permanecerão ad eternum ocultas ciências e insondáveis saberes. Claro que a minha sensibilidade, a minha consciência e interesses cidadãos permitem-me perceber a sua relevância social e, assim, outorgar-me vir aqui pronunciar-me sobre tais matérias.
Dito isto...
Numa conferência dada em 22 de Fevereiro de 1969, no Collége de France, Michel Foucault reflectia sobre a questão: “O que é um autor?”, afirmando que este não está morto, constrói-se enquanto tal, enquanto persona, sujeito vivo que está constantemente presente através dos processos objectivos de subjectivação que o constituem e dos dispositivos que o captam e inscrevem nos mecanismos de poder. Alcídio Torres, enquanto autor, partilha de forma assertiva e sem contemplações ou hesitações, a sua visão do mundo, o seu lugar de fala e, tal como eu e, provavelmente, muitos dos aqui presentes, a sua ambição por uma outra existência para a condição humana, que obrigatoriamente se traduziria num mundo mais livre, mais justo e menos desigual. Enfim, num mundo em que se viveria e não se sobreviveria.
Mas olhemos com mais atenção para “Condenados à sobrevivência”. É, nos dias de hoje, um documento importante, pertinente e até seminal, pois não só permitirá conhecer em detalhes muitos aspectos que até agora eram desconhecidos da maioria dos cidadãos, ou então estavam disseminados espacial e temporalmente por diferentes e variados suportes e publicações, o que dificultava a sua leitura e interpretação. Uma das mais-valias e grandes méritos desta obra é esse esforço de reunião de informações, dados, factos e diferentes perspectivas sobre o neoliberalismo, sua história e suas características. Constitui-se ainda como fecunda fonte de informações e conhecimentos para posteriores estudos ou investigações.
Ao longo dos dez capítulos que compreendem esta obra, encontramos um mundo em acelerada transformação e percebemos as metamorfoses que o capital fez ao longo da sua história e, nesta última roupagem do neoliberalismo, vai realizando, sempre com o fito de não perder um centímetro do seu espaço e, se possível, até alargá-lo, que é como quem diz, não só não perder um cêntimo do seu lucro, como sempre que possível maximizar esse seu proveito.
Para uma leitura e compreensão mais eficazes, o autor socorre-se de uma panóplia daquilo que, por (de)formação académica, denomino de etnografias. Aqui, impressiona o conhecimento, a memória e os recursos de pesquisa a que Alcídio Torres se socorre, pois ao referir-se aos diferentes temas ou assuntos, ao longo de todo o texto, ilustra com factos e acontecimentos de geografias variadas e diacronicamente diversos, o que lhe permite, não só ter uma visão geral/macro, como incorporar cada etnografia nessa dimensão mais holística, como ainda apresentar os contraditórios que considera úteis e necessários para sustentar a sua perspectiva ou opinião.
Relembrando, uma vez mais, a minha iliteracia económica e financeira, em vez de debater dialeticamente, anuindo ou contrariando o autor, considero mais seguro e até mais interessante para quem me possa estar a ouvir (ler), referir-me a algumas dimensões da nossa existência a que a leitura deste livro me remeteu.
a) O neoliberalismo – altar sagrado do capitalismo contemporâneo, acessível apenas aos Super-Homens, aqueles que, nas palavras de Nietzshe, “realizam conscientemente a religião capitalista”, ou ao “bando soberano” da parábola Kafkiana. Um modelo sagrado de exercício de poder, que no seu radicalismo se propõe criar um “absolutamente improfanável” (Agamben, 2006) para o comum “Homem-Massa”, conceito criado por Ortega Y Gasset na sua reflexão sobre a “Rebelião de Massas” e o poder do anonimato, referindo-se ao “Homem-Massa” como alguém que em civismo deixava muito a desejar. Pois bem, o verbo necessário é então “profanar”, desactivar esses dispositivos de poder e restituir ao uso comum todos os espaços, todos os lugares e todos os tempos;
b) O Estado de Excepção – em que vivemos é agora, e desde há algum tempo, a regra permanente, que coacta ou elimina, de forma temporária, mas preferencialmente em definitivo, os direitos e a dignidade política aos cidadãos. É um tempo e espaço de anomia (suspensão ou fim da ordem social), ideal para a imposição das vontades e interesses dos mais fortes...;
c) A Persona – através da qual o indivíduo adquire um papel e uma identidade social, ou seja, uma capacidade jurídica e a dignidade política do homem livre (Agamben, 2010). Não esquecer que a luta pelo reconhecimento é uma luta por uma Persona, pois só existo se a “Grande Máquina me reconhece” no desempenho dos meus papeis sociais (Goffman, 1973);
d) A Biopolítica – implicação crescente da vida natural (biológica) do homem nos mecanismos e nos cálculos do poder (Foucault). Num mundo global, profundamente desigual, onde o Norte Global, paternalista, hipócrita, oportunista e usurpador, teima em perpetuar as dinâmicas e as narrativas de controlo e poder sobre o Sul Global, nunca como nas últimas décadas assistimos a tantas calamidades e catástrofes naturais e humanitárias, que, para além de toda a miséria, dor e morte, provocaram a deslocação de massas, milhões de seres humanos numa fuga e busca por uma condição de vida minimamente digna. Essa massa de indivíduos – refugiados, deslocados, apátridas, prisioneiros, migrantes religiosos e económicos – habitam uma terra de ninguém, sem lei nem roque, e sem qualquer cobertura do direito internacional. Nunca como na nossa contemporaneidade, os indivíduos foram tão despidos da sua condição humana e, reduzidos à sua vida nua, habitam uma zona indeterminada, um limbo existêncial;
e) Objectivação Participante – conceito de Pierre Bourdieu (2011), no seu trabalho sobre o Poder Simbólico, que se refere à implicação sobre um objecto de estudo muito particular, neste caso, a condição da precariedade do proletariado mundial, universo no qual se encontram alguns dos mais poderosos determinantes sociais da história das sociedades modernas e dos indivíduos que as constituem. Fala-se, entre outros, do sistema simbólico de poder, que é intrinsecamente hierarquizante, criando categorias de percepção de distinção social;
f) Determinismo Social - poderemos também ficar com uma ideia de que afinal estamos sujeitos, enquanto espécie, enquanto seres humanos e, depois, enquanto cidadãos e trabalhadores, a uma espécie de determinismo social, como que condenados a um destino sobre o qual não temos qualquer poder de influência ou decisão. Estamos presos espacial e temporalmente a um determinado contexto social e cultural, do qual não nos conseguimos livrar. O próprio Marx, numa das citações aqui presentes, se refere a algo deste género, quando afirma: “Os homens não são livres para escolher as suas forças produtivas, pois estas são adquiridas , produtos de uma actividade anterior.” E ainda: “O facto de cada geração posterior se deparar com forças produtivas adquiridas pela geração precedente [...] cria na história dos homens uma conexão, cria uma história da humanidade”.
Ainda uma última nota para os três documentos que são partilhados em anexos. Heterogéneos no formato, no propósito e até na idade, todos eles contribuem informando e complementando a essência do texto e, julgo eu, do pensamento do autor. No anexo um, a entrevista de Julian Assange, em 2014, pelo jornalista Eric Schmidt, é um excelente testemunho acerca da hegemonia tecnologia e digital e do seu poder simbólico e efectivo sobre a informação, a formação e até a condução e doutrinação das massas anónimas, nas diferentes dimensões da sua existência social. É também um alerta para os reais perigos e ameaças destes poderes desmaterializados e despersonificados sobre as liberdades de pensamento, de expressão, de denuncia e de contraditório. Mas é também uma landmark de esperança para um futuro mais transparente, mas consciente e mais livre, no qual se ambiciona que a evolução tecnológica permaneça como resultado ou consequência dos valores humanos então existentes e mais ou menos consensualizados, e não o seu contrário, ou seja, que o futuro da humanidade seja determinado pela evolução tecnológica.
O anexo dois é um relatório resultado de um estudo do governo chinês sobre as hegemonias ocidentais e, em particular, as dos EUA. Esse documento refere-se a cinco hegemonias: a política, a militar, a económica, a tecnológica e a cultural, o que resulta ainda num predomínio efectivo na geo-política à escala global dos EUA. Será este o diagnóstico que importará à China combater e, de alguma forma, tentar relativizar e equilibrar a influência e o estabelecimento de políticas que defendam os seus interesses no xadrez das relações e da diplomacia internacionais. 
No anexo três podemos encontrar um trabalho teórico de Andrés Piqueras, no qual sistematiza a sua perspectiva de análise sobre a actualidade do capitalismo neoliberal à escala global em vinte pontos estruturantes. Aqui podemos encontrar o poder hegemónico do paradigma capitalista, que ainda que possa estar em crise, mantém-se como o grande sistema ideológico e político na organização dos Estados e das sociedades humanas.
Tão longe já de Abril e tão perto da sua quinquagésima celebração, importa não esquecer que a democracia não é, nem nunca será um destino, é e será sempre uma viagem, um processo em construção, um compromisso. E mentem aqueles que afirmam que os ideais de Abril estão já alcançados e cumpridos. Não, não estão.
Caro Alcídio, termino regressando e parafraseando Michel Foucault (1997: 8):
“Eu teria gostado que existisse por trás de mim (tendo tomado a palavra há muito tempo) uma voz que dissesse: - É preciso continuar, eu não posso continuar, é preciso continuar, é preciso pronunciar palavras enquanto as houver, é preciso dizê-las até que elas [nos] encontrem, até que elas [nos] digam.”
Parabéns Alcídio e muito obrigado pelo teu trabalho e dedicação.

28 fevereiro 2024

o paraíso

"O Paraíso seria termos sempre memória, para que nada se perdesse. Tudo deveria ser rigorosamente lembrado para que, através de o lembrarmos, ser eterno. Porque ninguém perdura se sua memória acabou. Só me mantenho vivo enquanto lembro. O que esqueço mata-me. Perde-se e perde-me. [...] O Paraíso, cada vez mais, começa na Biblioteca. Nos livros que amo e que, por generosidade, lembram tudo continuamente e esperam por mim. Até que eu seja apenas como eles. Mais ninguém,"
Valter Hugo Mãe, in Jornal de Letras nº 1393, Fevereiro 2024.

pobreza energética. um exemplo

Um dia destes tive que me deslocar a um balcão de atendimento de uma grande empresa que, não por acaso, detém o monopólio da distribuição de energia em Portugal. Ao retirar a senha de atendimento, verifiquei que tinha à minha frente cerca de vinte pessoas e a espera seria considerável. Num espaço incrivelmente exíguo para tamanho movimento, aguardei encostado a uma nesga de parede livre e fui observando a performance das três meninas que iam atendendo os clientes, muitos deles, diga-se, pessoas idosas que traziam consigo muitas dúvidas, questões e reclamações. Num exercício de voyeurismo forçado, não pude deixar de ouvir e acompanhar muitas dessas conversas.
Uma das situações era a de um idoso que, com a última factura na mão, se queixava do valor cobrado. Normalmente pagava vinte, vinte e poucos euros, mas esta última apresentava um valor a pagar superior a cinquenta euros. O senhor estava indignado e suspeitava que o contador deveria ter algum problema ou avaria. A menina, depois de verificar no sistema, lá lhe disse que não havia qualquer problema com o contador e que esse valor correspondia à energia consumida nesse período de facturação. Ele teimava que não podia ser. E ela, num volume que inundava toda a sala, lá começou a fazer-lhe perguntas para tentar justificar o tal valor...
- Então o senhor, se calhar deixa as luzes acesas...
- Não deixo nada. Só sou eu e a minha mulher e as luzes sempre foram as mesmas...
- Mas tem ligado o aquecedor?
- Claro, está frio e eu ligo um aquecedor pequenino que lá temos...
- Pois, então é isso. Tem que desligar o aquecedor e embrulhar-se num cobertor...
Eu, assim como outros clientes que aguardavam vez, não queria acreditar no que estava a ouvir. Não consegui outra reacção que não sorrir, pois a vontade era partir para a ignorância e insultar aquela funcionária. Então, quando se sabe que muita gente em Portugal vive em pobreza energética e não consegue aquecer a casa em que habita, o conselho desta senhora é que um casal de octogenários prescindam da única fonte de calor que têm e se remedeiem com mantas e cobertores. Está certo.
Ao se despedir do senhor e enquanto este agradecia e se levantava para sair, reforçou a ideia, dizendo: - E já sabe, não se esqueça de desligar o aquecedor...
Miserável. Triste, muito triste.

o jardim

Durante maior parte da vida tenho vivido em apartamentos, ainda que com acesso a espaços de jardim ou similares, mas permanece em mim uma necessidade de ter um espaço ao ar livre, sombrio e com a privacidade que gosto e valorizo, mas principalmente, que seja só meu. Não sei se algum dia terei acesso a esse pedaço de chão, mas continuo a ambicioná-lo. No entretanto, vou usufruindo das sombras e sossego relativo que o jardim suburbano em que habito me proporciona. E gosto de lá estar e ficar.

máquina de escrever


Esta é a máquina de escrever do meu pai. Ainda hoje a utiliza quando quer escrever algo para guardar, ou para entregar aos filhos. Para além da memória que procura registar, penso que se preocupa em transmitir-nos aquilo que, de outra forma, não teríamos acesso ou conhecimento. É igualmente uma memória visual e sonora de infância e juventude, o meu pai na mesa da cozinha, na mesa da sala-de-jantar ou, mais recentemente, na garagem, debruçado sobre a máquina a martelar durante horas. Hei-de tirar-lhe uma fotografia nesse seu mester voluntário e alienante.
Comprou-a no início dos anos 80 e nunca mais se separou dela. Numa época em que a informática ainda não estava democratizada e à qual o meu pai sempre resistiu, quando nem sonhávamos que um dia teríamos acesso a um aparelho doméstico que imprimiria a preto ou cores os documentos, os trabalhos escolares eram redigidos nesta máquina e o meu pai esteve sempre disponível para o fazer. A mim fascinava-me, ainda me fascina, o bater das teclas e, depois, dos braços das letras no cilindro onde a folha de papel circula, mas não gostava de escrever, pois as teclas eram pesadas e moíam-me as pontas dos dedos e, por isso, pedia ao meu pai para me passar os trabalhos...
Aqui há uns anos, talvez uma década, ou um pouco mais, foi notícia o encerramento da última fábrica que produzia estas máquinas. Logo depois, e sem surpresa, deixou de haver no mercado fitas de tinta para estas máquinas e o meu pai andava aflito até que ficou um tempo sem a poder utilizar, mas não desistiu de procurar, até que, passado algum tempo, encontrou um fornecedor (não sei se incluído nestes pós-modernos movimentos revivalistas). Tratou logo de se abastecer para uns bons anos e, se não estou em erro, ainda se serve desse abastecimento.
É uma anacronia, bem sei, mas são objectos lindíssimos e que me remetem para um universo que adoro e que desde miúdo me encanta. Nunca comprei, nem penso fazê-lo, pois apenas serviria de adorno, mas talvez um dia guarde esta.

20 fevereiro 2024

pagar para escrever

Passados mais de dez anos desde que escrevi este texto (2012), eis que recebo um "convite" para o publicar numa suposta altamente prestigiada publicação. Mas atenção, o texto é excelente e merecedor de publicação na excelsa edição, mas eu terei que pagar "a Publications fee of $500" para tal acontecer. A lata desta gente! 
Partilho parte do email que recebi hoje mesmo...

"Dear authors,

The editorial team of the International Journal of Professional Business Review (JPBReview) read your article "TER, IGP e DOP: complementaridades territoriais?" presented in the congress "VIII Congresso Internacional de Turismo Rural e Desenvolvimento Sustentável (VIII CITURDES)". Considering the relevance of this congress in your knowledge area, and the quality of your work, we invite you to submit your article in our journal.

Once submitted, your article will be evaluated by external reviewers and, if approved, you’ll be required to pay a publication fee of $500 (American dollars). This fee includes registration of the article's individual DOI, text fomatting, database indexing and publication certificate. The review process of your submitted article takes approximately 10 working days."

o quadro


[ Não tenho a certeza, nem me apetece verificar, mas tenho a sensação de que já aqui, um dia, escrevi sobre este quadro. Em todo o caso, quero escrever isto e, por isso, aqui vai... ]

Penso ser uma pintura a óleo e está desde sempre numa parede da casa de meus pais. Sendo mais velho do que eu, conhece-me desde o berço. Gosto muito dele e não há dia em que não o olhe. Não sei bem porquê, talvez a meia-luz, o ambiente anacrónico, ou a combinação de elementos representados, mas tudo nele me transmite tranquilidade, sossego, paz e silêncio. Sendo património da família, um dia tenciono trazê-lo para minha casa, mas o que quero mesmo é continuar a olhar para ele naquela mesma parede.

19 fevereiro 2024

08 fevereiro 2024

24 janeiro 2024

dezassete, a contar

Pois bem, aqui estou eu a assinalar mais uma volta ao Sol deste recanto. O Apurriar faz hoje dezassete anos e continua a ser um espaço ao qual regresso quase diariamente, apesar de nem sempre ser para acrescentar valor, que é como quem diz, nem sempre há vontade ou inspiração para escrever algo que considere ser para este espaço. Importa também reforçar o prazer, a vontade e a intenção em continuar a contar os anos que vão passando, através da escrita e aqui. Assim sendo, obrigado e até breve.

12 janeiro 2024

os bifes, os gatos e a avó Antoninha

Durante a minha adolescência e, talvez, mais durante a minha juventude, adorava ir para Vila Boa e por lá ficar enquanto a escola não chamava por mim. Assim, passei inúmeras temporadas em casa dos meus avós paternos e sob a responsabilidade da minha avó, que, na sua fragilidade e com a sua tranquilidade e sabedoria, me aturava os devaneios e parvoíces de jovem, às vezes, inconsciente. Eu pouco parava em casa, a não ser para comer e dormir e ela, pacientemente, lá estava com todos os cuidados e mimos para comigo. Um dia, talvez final de uma tarde de Verão, estava eu no terraço da casa, com certeza, à conversa com alguém que se aproximou ou passou, quando a ouço praguejar alto na cozinha. De um salto vou ao seu encontro e só já ouvi: - Malditos gatos, que me levaram o teu bife!
Coitada da mulher. Tinha tirado um bife para me servir ao jantar, pô-lo a descongelar perto de uma janela aberta e soalheira, um gato vadio, esperto, num ápice lhe levou o suculento naco de carne. Ficou desconsolada, sem saber o que fazer. Tentei acalmá-la e disse-lhe para me estrelar um ovo que já ficava bem. Assim foi, mas ela andou uns dias a dizer mal da sua vida e, principalmente, do raio do bicho.

mais do que uma ideia, uma solução


Ontem no jornal Público, Miguel Esteves Cardoso, um insuspeito revolucionário, apresenta esta ideia como solução para o Jornal de Notícias e demais jornais e rádios do mesmo grupo empresarial. Para início de conversa parece-me muito bem e de maluca a ideia não tem nada. Houvesse coragem e era algo desse género que aconteceria para salvar não só os postos de trabalho, como salvaguardar o último dos grandes títulos da cidade do Porto. Não esquecer o que aconteceu ao Primeiro de Janeiro e ao Comércio do Porto.

07 janeiro 2024

alheira é uma salsicha?


A notícia do jornal Mensageiro de Bragança é já de 21 de Dezembro, mas só hoje estive a rever jornais e demais publicações para recortar aquilo que me importa para adicionar ao "dossier de imprensa" que há anos vou construindo.
Esta notícia é um achado e tudo nela é absurdo. Desde a classificação ou tipologia da Alheira enquanto salsicha, até à corrida para melhor do mundo (e arredores) e the last but not the least, o comunicado da autarquia. Para mais tarde recordar ou, com certeza, usar.

03 janeiro 2024

o Quim


Não sei porquê, mas aqui há tempos o Quim da Madalena veio-me amiúde à mente, de forma expressiva e até impressiva. Não foi em sonho, mas sim em momentos bem desperto, em que o seu rosto e sorriso, memórias de infância e de momentos com ele partilhados, me assaltaram deixando-me uma sensação triste e nostálgica.
O Quim era um miúdo da minha criação (nasceu em 1974) e cresceu na mesma rua (quase bairro) que nós. Era um miúdo tranquilo, apesar de algo irreverente e, talvez por isso, vítima de algum bullying (termo então ainda desconhecido e impraticado) por parte de outros miúdos que connosco conviviam. A sua alcunha, julgo que apenas por ter um redemoinho de cabelo logo por cima da testa, era “o peido”. Epíteto que, apesar de muito violento, foi assimilado e assim utilizado durante muito tempo. Penso que só mais tarde, talvez já adulto, tenha perdido essa alcunha.
De entre as muitas brincadeiras, traquinices e aventuras pelas redondezas, há dois momentos do Quim inesquecíveis, que guardei e agora partilho: o primeiro foi quando a jogar às Damas, no pátio do meu prédio (nº 115 da rua), e por motivo que já não recordo, nos desentendemos e, por isso, lhe dei violentamente com o tabuleiro de madeira nas costas. Para além da dor lhe ter provocado o choro e uma correria para casa, parti o tabuleiro e ficámos zangados durante um dia ou dois. As pazes não tardariam. O segundo momento, foi quando ele decidiu fugir de casa com apenas, sei lá, dez, onze ou doze anos, deixando uma carta de despedida aos pais. O sobressalto na rua foi generalizado e a presença das forças policiais mais dramática tornou a situação. Recordo a insegurança que todos, miúdos e graúdos, sentimos.
Se bem me recordo, o Quim terá caminhado para Sul, pela Estrada Nacional Um, durante um dia e uma noite, tendo sido encontrado no dia seguinte, encharcado e esfomeado, algures entre Santa Maria da Feira, São João da Madeira ou Oliveira de Azeméis, e devolvido aos pais. Bem mais tarde, já adultos, cheguei a questioná-lo sobre esta aventura e ele próprio não a conseguia justificar, reconhecendo que em casa e na família não havia qualquer problema ou razão para tal atitude.
Durante anos fomo-nos cruzando em Valadares e arredores, pois ele era, ou foi, operário da fábrica das agulhas. O Quim morreu no dia 5 de Maio de 2023 e eu só soube já ele tinha sido cremado. A certeza da sua morte surgiu num cartaz de funerária que ainda consegui encontrar numa montra devoluta na Madalena. O Quim tinha 49 anos e foi vitima de doença oncológica. Uma memória boa dele perdurará comigo.

Ao alto, o Quim no dia 21 de Janeiro de 2017, no lançamento do meu livro "Apurriar", na Maria Torrada, em Valadares.

(escrito em Bragança, 31 de Dezembro de 2023)