29 agosto 2019

o mexilhão

Um dos melhores momentos deste Verão, foi a descoberta do restaurante O Mexilhão, em Vila do Bispo. Sem qualquer referência prévia e apenas aconselhados pela senhora de um quiosque no centro da vila, resolvemos procurá-lo, entrar e experimentar. Visto da rua, o seu aspecto - pequeno e escuro - jamais nos convidaria a entrar, mas essa primeira impressão é muito enganadora. Com uma sala pequena de apenas meia-dúzia de mesas e uma decoração simples, mas acolhedora, a carta é variada e os preços não são exagerados. Especialista em peixes e, principalmente, mariscos, foi uma alegre surpresa experimentar algumas dessas iguarias. Para mim, para quem o marisco se resume a camarão e pouco mais, a Fritada de Camarões é um manjar, que espero voltar a degustar. Aconselho vivamente a quem por perto andar ou passar da Rua 1º de Maio, nº 32.
Não gostei de Vila do Bispo - pequena povoação plantada numa paisagem desabrigada, árida, sem sombras, sem verdes, exposta a vento e muito calor, mas adorei o Mexilhão e, por isso, apenas isso, regressarei a Vila do Bispo.

castelejo


Este ano, os dias de praia foram passados na costa ocidental do Algarve, com "acampamento" no concelho de Aljezur. São várias as razões para gostar deste Algarve, pois a costa Vicentina e o seu Parque Natural permitem-me conciliar aquilo que de bom tem a praia e o sossego que tanto aprecio. Das várias praias que conheci por estes dias, gostei particularmente da praia do Castelejo, no concelho de Vila do Bispo. Procurada, maioritariamente, por surfistas e outros desportistas aquáticos, esta praia consegue manter-se isolada e, assim, afastada da cobiça das grandes massas de turistas e veraneantes (nessa manhã de Agosto estaríamos cerca de cinquenta pessoas na praia...). Para além do indispensável Bar/Restaurante que me abasteceu do pouco que preciso sempre, consegui estar sossegado, sem pressões acústicas e demográficas. Depois disto, mesmo não sendo um amante de praia, desconfio não regressar aos atropelos e correrias dos outros Algarves, seja a Sota ou Barlavento.

as humanidades e a estupidez

Os programas de artes e humanidades estão a ser eliminados por toda a parte em prol de um desenvolvimento da formação técnica. (...) Os educadores que defendem o crescimento económico não se limitam a ignorar as artes: eles temem-nas. Porque uma compreensão refinada e desenvolvida representa um inimigo particularmente perigoso para a estupidez, e a estupidez moral é necessária para a concretização de programas de desenvolvimento económico que ignoram a desigualdade. (...) A arte é um inimigo poderoso dessa imbecilidade, e os artistas não são fiéis servidores de nenhuma ideologia, mesmo uma fundamentalmente boa. (...) Assim, os educadores que defendem o crescimento económico fazem campanha contra as humanidades e as artes como ingredientes da educação básica. Este ataque está hoje a ser levado a cabo em todo o mundo.
(Martha C. Nussbaum, in Sem Fins Lucrativos, 2019:63)

24 agosto 2019

nas palavras dos outros...

Nos últimos 20 anos, houve uma espécie de sanitarização do país. Tristezas que são normais na vida foram transformadas em depressões, ansiedades que são normais foram transformadas em perturbações ansiosas. É preciso reflectir sobre esta sanitarização.
(João Marques Teixeira, in jornal Público, 22 Agosto 2019)

a preguiça

Bastaram alguns dias de alheamento às rotinas para submergir num estado de autêntica e completa ausência de estímulos para fazer o que fosse, naquilo que habitualmente conhecemos por preguiça. Confesso que, num primeiro momento, a sensação é prazeroza, só que há medida que essa preguiça vai crescendo e se vai prolongando, esse prazer vai dando lugar a um crescente e irritante tédio, não só pelo vazio das horas, mas também pela consciência da ausência de qualquer estímulo para além da existência em si. Sem qualquer dúvida, a evitar.

mediascape: sobressalto cívico

Depois de alguns dias retirado, sem vontade de fazer o que fosse, nem sequer ler o jornal diário, recupero essas leituras e dou de caras com este editorial de Manuel Carvalho, no jornal Público de 22 de Agosto. Não tinha conhecimento desta tristíssima notícia, reveladora da nossa pobreza e miséria colectiva. Manuel Carvalho fala em sobressalto cívico, mas não creio que tal aconteça; aliás, não me apercebi de qualquer consequência para além da habitual espuma dos dias. A história destas tristes crianças irá rapidamente desaparecer do nosso conhecimento. Mais do que sobressaltado, sinto-me triste e indignado - que existência tão triste -, pois para além de todas as falhas e omissões dos organismos do Estado, aquilo que é imperativo fazer é impedir determinados indivíduos de constituirem família. Bem sei que uma afirmação destas soa mal e poderá ser entendida como uma qualquer forma de eugenia, mas numa sociedade digna e perante situações como esta, não podemos mais tolerar tais comportamentos.

14 agosto 2019

os perros de Carção

Regressemos a Carção, no concelho de Vimioso. Carção é um dos melhores exemplos da prática das nomeadas colectivas, pois é objecto de várias e diferentes nomeadas, naquilo que já denominamos de polinomeação, resultantes não só das suas actividades económicas, como também da sua condição étnico-religiosa. Se já nos referimos às suas nomeadas relacionadas com o seu ofício de almocreves - surradores,peliqueirosou curtidores, assim como ao seu gosto pelo jogo (batoteiros), destacaremos agora as nomeadas relacionadas com a sua condição étnico-religiosa. Carção é terra de judeus, e uma das comunidades transmontanas de referência do universo de Cristãos-Novos em Portugal. Ainda hoje é possível encontrar nesta comunidade várias sobrevivências materiais e imateriais desse ambiente étnico e/ou religioso.

Estes descendentes de cristãos-novos são os guardiães de vestígios históricos herdados em silêncio e a expressão social de uma alteridade que remete os seus protagonistas para uma condição de Outro no seio da comunidade local. (…) A herança do segredo confere-lhes uma consciência de grupo distintiva no meio social em que se inserem, e hoje suscita processos de construção ou reinvenção da identidade que conduzem à tentativa de recuperar sentidos históricos longínquos. (Lechner, 2007:2)

Os de Carção são, por isso, reconhecidos pelas comunidades vizinhas como os marranos. O termo marrano, diz-nos Elsa Lechner e segundo um estudo de Arturo Farinelli (1925), encontra-se no vocabulário espanhol de quinhentos e corresponde a um termo ofensivo - significando porco, em português - adaptado para denegrir, na época, os cristãos-novos de Espanha e Portugal. Ainda segundo a mesma autora, o seu significado de origem parece não se referir à relutância dos judeus em comer carne de porco, mas antes exprimir um sentimento de desprezo. (Lechner, 2007:3)

Foi ainda com a leitura deste texto de Elsa Lechner que conhecemos a nomeada de perro associada à comunidade de marranos em Carção…

Em Trás-os-Montes, e mais especificamente no Distrito de Bragança, os descendentes de judeus convertidos são apelidados de perro (cão, em português), ilustrando um facto antropológico identificado por Edmund Leach (1964) segundo o qual o uso recorrente de nomes de animais como injúria, cumpre uma função social de imposição de distância entre pessoas próximas. (…) Eles são o Outro mais diferente dos outros, ou seja, uma figura de alteridade extrema, remetida para um limiar de aceitação na fronteira com o animal. (Lechner, 2007:3 e 4)

Em Carção, mas também noutras comunidades vizinhas, tal como Argozelo, reconhecem-se como “da raça dos judeus”, aceitam as várias e diferentes nomeadas pelas quais são conhecidos na região. Contudo, quando confrontados com a nomeada de perros, a reacção é diferente, havendo não só resistência como também alguma indignação. Primeiro, porque muitos a desconhecem e, segundo, porque os poucos que sabem da sua existência não a compreendem, rejeitando-a por ofensiva à sua dignidade humana.

13 agosto 2019

dizer "sim"

A vontade explicita da palavra sim, conota e denota todas as intenções, valores e sentimentos. Ao longo da vida utilizamo-la sem fim, só que nem sempre é honesta ou sincera. Será o vocábulo mais exposto ao uso de ironias e mais disponível para o hipócrita fel humano.

sem fins lucrativos


Em véspera de partir para os tais dias de descanso, encontro este livro da filósofa Martha C. Nussbaum e não consigo deixar de pegar nele para espreitar e perceber de que se trata. Conheço esta autora desde o tempo do meu mestrado, tendo sido referência recorrente em vários módulos. O sub-título do livro foi o que me chamou mais a atenção, na medida em que também considero que a maior lacuna das actuais democracias capitalistas é o esquecimento da dimensão humanista nessas sociedades. Acredito, honestamente, que a qualidade das sociedades está relacionada com a dimensão humanista das mesmas, nos seus ambientes educacionais e formativos, na cidadania e no conhecimento.
Ainda que a lista de livros para ler nestes dias seja ambiciosa, não posso deixar de acrescentar este pequeno quase-manifesto por um mundo melhor, mais justo e mais solidário.

Na contra-capa, está escrito o seguinte:

Neste livro tão breve quanto poderoso, Martha C. Nussbaum, filósofa norte-americana, revela a importância central das humanidades em todos os níveis da educação e discorre sobre as razões pelas quais devem ser considerados inconformáveis para a criação de cidadãos democráticos competentes. Recentemente, a tendência perturbadora, nos Estados Unidos e não só, para tratar a educação como se o objectivo principal fosse ensinar os alunos a serem economicamente produtivos, em vez de lhes fornecer ferramentas para pensarem criticamente enquanto indivíduos conhecedores e empáticos, revela que a crise das ciências humanas está longe de diminuir. A par de uma crescente incapacidade para pensar, vemos também cada vez mais reduzida a solidariedade para com algumas franjas da sociedade, bem como a competência para lidar com problemas globais complexos. A perda destas aptidões elementares, defende Nussbaum, põe em risco a saúde das democracias e a esperança num mundo melhor.
Em resposta a esta situação, Nussbaum propõe que resistamos aos esforços para reduzir a educação a uma ferramenta do Produto Interno Bruto. Em vez disso, é fundamental trabalharmos para associar a educação às humanidades, a fim de proporcionar aos estudantes a possibilidade de se tornarem verdadeiros cidadãos democráticos dos seus países e do mundo. Traduzido em mais de vinte línguas, Sem Fins Lucrativos oferece-nos um cenário preocupante mas esperançoso, e constitui um manifesto que deve ser um grito de guerra para quem se preocupa com os propósitos mais profundos da educação.

Reflexão: o título deste livro daria um bom epitáfio para a história da minha vida...

as capadeiras de Rebordãos

As mulheres de Rebordãos, no concelho de Bragança, ainda hoje são conhecidas por capadeiras. No contacto que mantivemos com os habitantes desta aldeia, por entre sorrisos, reconhecendo essa nomeada, não sabem a sua origem ou fundamento, conseguindo apenas justificar essa adjectivação pela bravura e coragem das suas mulheres. Entre várias expressões e comentários, registámos:

Dizem que somos bravas, que temos pelo na benta…; as nossas mulheres são fodidas, não se metam com elas…; ora, eu bem vejo pela minha, não há quem a ature…; elas são lindas, é que é das mais velhas, até às garotinhas, todas iguais...;

Ainda que exista esta atitude condescendente e até bem-humorada, por parte dos locais, face à nomeada recebida, não conseguimos recolher junto da população nenhuma versão relacionada com aquela que o Abade de Baçal documentou sobre a sua origem. Nas memórias arqueológico-históricas do distrito de Bragança, o Abade remete a sua presumível origem para a segunda metade do século XIX, baseando-se numa carta do juiz de direito da comarca de Bragança ao administrador do concelho, em que se relatava:

«Ill.mo Snr. – Tendosse instaurado hum processo crime contra hûas mulheres de Rebordãos, por causa de hum acontecimento que entre ellas e hum criado do Estafeta de Rebordãos houve; e tendosse espalhado hontem e hoje que o dito criado apareceu morto no Adro da Igreja da Senhora da Serra; e constandome que V. S.a já procedera a varias averiguações a tal respeito, rogo a V. S.a que com a maior brevidade me informe sobre o resultado das suas averiguações, por assim o exigir o andamento do processo...... Bragança 16 de Agosto de 1855. O Juiz de Direito, B.meu Car.al de M.es Th…» (Alves, tomo VII, 2000:649)

O mesmo autor refere um outro episódio posterior que terá contribuído para o reforço dessa mesma nomeada:

Maria Gonçalves do Vale, de Rebordãos, filha de Francisco Gonçalves do Vale e de Teresa de Morais, presa em 1875 por infligir maus tratos a um galego (parece que o queixoso se gabava de proezas cupidíneas que não fazia, donde a irritação das raparigas de Rebordãos que, em legítimo desforço, o castraram. (Alves, tomo VII, 2000:188)

12 agosto 2019

a loucura da arte

Trabalhamos no escuro - fazemos o que podemos - damos o que temos. A nossa dúvida é a nossa paixão, e a nossa paixão é o nosso ofício. O resto é a loucura da arte.
Henry James (the middle years), in O Escritor Fantasma de Philip Roth.

os charros da Mofreita

Um dos casos de nomeada colectiva mais peculiares na região é o da aldeia de Mofreita, concelho de Vinhais, conhecidos e referenciados como charros, vulgo charrelos, ou ainda de beócios da terra de Bragança, numa alusiva comparação com os habitantes da Beócia, antiga região da Grécia, que tinham fama de ser rudes e grosseiros. Esta nomeada tem por fundamento ou razão um conjunto de histórias que se contam sobre as gentes da Mofreita, que vão sobrevivendo na memória das pessoas e são transmitidas de geração em geração, com o intuito de os remeter a uma condição de simplórios e analfabetos. Escreveu sobre eles o Abade de Baçal:

É enorme a lista de lhonas e pachouchadas que se atribuem aos charros de Mofreita, todas pelo teor das antecedentes, de onde fazermos ponto, pois para já basta para se julgarem as demais. Mas isto são lendas idênticas a outras respeitantes a diversos povos desde a mais remota antiguidade, como vemos pelos gregos através dos beócios. (Alves, vol. IX - 2000:268)

Uma das história que se contam e que contribui para o reforço dessa nomeada diz que os da Mofreita fazem as presas no rio com presuntos e tapam os buracos com salpicões. Diz-nos António Gonçalves (2008:121) que os da Mofreita replicavam: - Lá isso é verdade, mas só até enquanto não deram neles os cães da vila… Segundo o mesmo autor, a origem desta história poderá estar relacionada e ser contemporânea das invasões francesa.

Por ocasião da segunda invasão francesa, em Abril de 1809, as tropas francesas entraram em Portugal pela fronteira norte, junto a Chaves, tendo rapidamente dominado a região, invadindo e saqueando todas as terras por onde passava. A notícia espalhou-se por todas as povoações da região e, então, os habitantes da Mofreita, com receio que os invasores lhes saqueassem os haveres, lembraram-se de transferir para a povoação espanhola de Ermisende o seu fumeiro - presuntos, salpicões e restante fumeiro, contando que ali estaria a salvo. Carregaram carros-de-bois e puseram-se a caminho. Chegados ao rio Pequeno, um afluente do Tuela, já próximo do destino, depararam com um enorme caudal no rio, mas ainda assim tentaram passar o rio a vau. Logo o primeiro carro-de-bois, não aguentando a corrente, voltou-se, fazendo com que todo o fumeiro fosse levado pela corrente do rio, indo parar à represa mais próxima desse local. (adaptado de Gonçalves, 2008:122)

Uma outra história, contada pelo mesmo autor...

...um dia, quatro homens de Mofreita foram à pesca com as redes para o rio Tuela, para junto dos pontões de Fresulfe. Fez-se noite, mas estava uma clara noite de lua cheia. Enquanto esperavam que os peixes malhassem nas redes, foram para cima do pontão e viram a lua reflectida na água do rio. Pensando que era um queijo de ouro no fundo do poço, logo idealizaram a melhor maneira de o tirar. Como não sabiam mergulhar, pensaram: um de nós agarra-se com as mãos a uma trave do pontão e os outros vão-se pendurando sucessivamente, agarrando-se, uns aos pés dos outros, até o último chegar ao fundo do poço e tirar o queijo. Assim fizeram. Quando já estavam quase todos pendurados, o que estava agarrado à trave do pontão, de cansado que estava, já se lhe começavam a escorregar as mãos. Então gritou para os outros: - Segurai-vos bem, que eu vou cuspir nas mãos. Ao largar as mãos da trave, caíram todos ao rio. (Gonçalves, 2008:124)

Conhecemos uma outra versão desta história do Queijo de Ouro. Ouvida na região, diz-se que depois de todos os homens estarem pendurados uns nos outros, o último verificou que não chegava ao queijo e então terá gritado: - Não chego lá. É preciso mais um homem.Quem lhe respondeu foi o primeiro, aquele que estava agarrado ao pontão, que disse: - Deixa estar que vou aí eu...

Estes são dois exemplos das inúmeras histórias que se contam sobre os da Mofreita e que contribuem para a sua nomeação e perpetuação da sua fama. Contudo, também é perceptível determinado incómodo e incompreensão face a esta nomeação, não só da parte dos naturais da Mofreita, como também junto dos estudiosos que, ao longo do tempo, nomeadamente durante o século XX, tiveram contacto com esta comunidade:

É aos habitantes deste pequenino rincão da região vinhaense que os outros povos chamam «charros» como sinónimo de parvos e papalvos. E porque será? Se eles são trabalhadores, honestos, de bons costumes? O apodo perde-se na noite dos tempos. E, por isso, qualquer historieta relativa a parvoíce é aplicada aos laboriosos filhos da Mofreita. (Martins, vol. I - 1997:287)

Povo honrado, trabalhador e crente como o das outras povoações da região. Ali ouve pessoas notáveis e de valor, como refere o douto abade de Baçal, lembrando ainda que da Beócia eram alguns dos maiores homens que teve a Grécia: Pindaro, Hesioso e Plutarco. (Martins, vol. II - 1997:478)

A Mofreita é uma povoação laboriosa e morigerada, a que não é, evidentemente, estranha a benéfica influência moral do convento que semeia a paz, o conforto e a caridade na alma dos seus habitantes. A vida ali, é simples e rudimentar; vive-se do que produz a terra e o rio. (F.J.A no Jornal Mensageiro de Bragança de 18/05/1962 in Gonçalves, 2008:26)

Mas seriam os mofreitenses tão simplórios ou papalvos que merecessem aquela alcunha? – Não me parece, pois os mofreitenses não seriam (nem são), nem mais simplórios, nem mais rudes, nem mais grosseiros do que os habitantes de outras terras, vizinhas ou não. Todavia, desconhece-se desde quando e qual a origem deste apodo… (…)Não levam a mal que lhes chamem “charrelos”, pois são bastante orgulhosos dos seus antepassados, das suas tradições e da sua cultura. (Gonçalves, 2008:28)

05 agosto 2019

igreja dos Congregados

Sentado em frente ao altar-mor, ocupado pelo Santíssimo Sacramento, observo o movimento das pessoas que aqui entram. Bem no coração da cidade do Porto, e apesar do quase silêncio que se consegue, é impossível não perceber a agitação exterior. Por entre os muitos turistas que deambulam pela igreja, procurando junto dos diferentes altares informações escritas, são também muitos aqueles que aqui vêm, percebe-se, para rezar. Continua a impressionar-me a fé que as pessoas têm nos especialistas intermediários da entidade suprema e divina. A Igreja soube, desde há muito tempo, satisfazer a todos, ou quase, naquilo que são as aflições, as necessidades e as carências da razão.
Para além dessa essência religiosa, não há como negar a qualidade destes autênticos refúgios urbanos - tranquilidade, temperatura, silêncio e paz - para a meditação e para isto que acabo de fazer. Escrever.

03 agosto 2019

a censura

Um Bailarino na Batalha, de Hélia Correia, foi distinguido com o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores. Na cerimónia de entrega do prémio, que aconteceu no dia 22 de Julho, na Fundação Calouste Gulbenkian, a autora fez uma intervenção que, agora, o Jornal de Letras publicou na íntegra. Dessa intervenção, sublinho as suas palavras sobre o ambiente censório que actualmente experimentamos...

Conheci a censura. Mas, não tendo gosto pelas memórias ressentidas, só muito raramente falo dela. (...) E, no entanto, está a acontecer. Não pela força de um poder instituído e frequentemente muito estúpido, mas pela força de um poder massificado, igualmente estúpido, igualmente autorizado por um puritanismo executório. É uma polícia de opinião que não parece imposta e que se aloja no interior de cada um para desencorajar a ousadia, sendo que a ousadia não está hoje na infantil libertinagem sexual e sim no dar palavra e dar figura ao que o homem e a natureza têm de terrível, de necessário, de indomesticável. Dar a palavra ao que é inominável, afrontar o tabu, eis a tarefa. Não podemos deixar que uma cruzada de higienização se estenda à arte. (...) A ameaça da ignorância muda de face mas não muda de maldade. A maldade benzida que extermina, essa maldade medieval que ainda opera noutros países da contemporaneidade, pouco difere desta maldade nova e aparentemente redentora que visa erradicar das histórias infantis tudo o que possa criar medo ou erros de julgamento. (...) Tal como o outro, este censor é um verme que passa para dentro da pele e decompõe a nossa liberdade natural. Mas, quanto a este, cabe a cada corpo social, ao indivíduo e ao grupo defenderem-se, num estado que não é de resistência, a nobre resistência da clandestinidade - mas de guerra. Guerra de rosto descoberto, guerra altiva. Porque ela, a ignorância, já calçou as botas para a parada.
(Hélia Correia, in Jornal de Letras nº 1274, Julho/Agosto 2019)

02 agosto 2019

e a Burra?...

A aldeia de Aveleda, no concelho de Bragança, situa-se junto à fronteira norte com Espanha e dentro do actual território do Parque Natural de Montesinho. A sua gente, para além da tradicional agricultura, dedicava-se a produzir carvão, proveniente das espécies vegetais abundantes no seu território, para abastecer as necessidades energéticas da cidade de Bragança e com isso obter um rendimento extra. Com regularidade deslocavam-se à cidade para, no mercado municipal e, principalmente, nos dias de feira, venderem o seu produto, que era transportado em burras, mulas ou machos. A distância entre a Aveleda e Bragança era grande e, por norma, entravam na cidade pelo lado nascente, sendo comum, nesses dias de feira, encontrar na Avenida do Sabor um grande número de animais em fila, à espera da sua vez de entrar no espaço do mercado ou da feira. Como a espera poderia ser longa, muitos dos carvoeiros deixavam os seus animais presos e iam até às tabernas comer e beber, ou aos outros comércios tratar da sua vida. Quem os recebia, em jeito de cumprimento, indagava sempre: - Então, e a burra?… Para além da evidente provocação, a questão demonstraria a relação próxima, quase familiar, entre esses indivíduos e os seus animais e, também, significaria que não existiria ninguém na Aveleda que não possuísse um animal e que não o utilizasse para chegar à cidade. Certo é que, ainda hoje, quando a actividade já desapareceu há muitas décadas, os naturais de Aveleda são conhecidos por esse género de cumprimento, que os relaciona com a a sua condição pretérita de produtores e comerciantes de carvão.

leituras para os dias sossegados

Ainda que em modo descontraído, a leitura é, e será sempre, parte significativa dos dias. Assim, a escolha daquilo que há que ler e para ler é importante. Para os dias deste Agosto e primeiros de Setembro, além das leituras imprevistas e esporádicas, a literatura que me espera é:
- Escritor fantasma, de Philip Roth;
- Identidades, de Francis Fukuyama;
- Serotonina, de Michel Houellebecq;
- Quem disser o contrário é porque tem razão, de Mário de Carvalho;
Boas leituras.

01 agosto 2019

ex-querido mês

Com a chegada do mês de Agosto, chegam também os dias de maior preguiça e descontração. Não por falta de trabalho, ou pelo menos, do ter o que fazer, mas por um imperativo pessoal, catártico e terapêutico, veraneio apenas. Apesar de já estar aliviado das obrigações burocráticas da Faculdade e outras desde 2ª feira, só hoje me sinto de férias. Por muito que a vida nos tenha obrigado a prescindir do hábito das férias em Agosto, a verdade é que fica sempre uma vontade de lá regressar, como que uma nostalgia desse tempo fora do tempo, em que toda a vida se alterava e ajustava ao ritmo do tal querido mês de Agosto, com lugares, espaços-tempo e rituais próprios, cronologicamente organizados e ordenados. Era um mês pleno de momentos únicos que, apesar de anualmente cíclicos, eram esperados e vividos como experiências únicas e irrepetíveis. Neste momento de revisitação, a memória consegue regressar aos tempos de menino e alcançar momentos singulares de uma existência aldeã; recordar a aldeia rejuvenescida com o regresso dos filhos emigrantes, adornados com os seus “ricos” Francos e “portentosos” automóveis; reviver a cor e a alegria de todas as festas, romarias, arraiais e respectivos bailaricos; relembrar cheiros e sabores para sempre perdidos; evocar amigos e amigas, alguns já desaparecidos.
Claro que esta nostalgia, possível porque um dia se experimentou, se conheceu, se esteve lá, não passará nunca disso mesmo, ou seja, de uma memória. Por mais que lá regressemos ao longo da vida, esse ambiente e essa gente já lá não estão. O mês mudou e nós com ele. Ainda assim, é mês de Agosto.