29 julho 2020

situação aporética

O mundo contemporâneo liquidou a política como espaço de deliberação e entregou-se a um fatalismo muito pior do que aquele que na tragédia grega era atribuído ao capricho dos deuses. Hoje o destino é o comboio sem travões de uma sociedade que se atrelou aos automatismos da economia mundial de mercado. Nem sequer temos o coro trágico para nos avisar. Estamos sozinhos, dentro de uma espécie de máquina do juízo final. Se a deixarmos funcionar a todo o vapor, poderemos almoçar e jantar, mas estaremos a tornar inevitável o colapso ambiental e climático global, num horizonte que se irá acumulando ao longo de décadas, até se transformar numa realidade hostil e inabitável. Se a quisermos reformar, ou travar o seu curso, corremos o risco de descarrilar o sistema inteiro, transformando a inércia numa implosão caótica de estilhaços cortantes. É a esta situação aparentemente aporética que Naomi Klein chamou o calabouço planetário em que o neoliberalismo sequestrou a história humana.

* Viriato Soromenho-Marques, in Jornal de Letras nº 1299, Julho 2020.

"sou filigraneiro"

Na impossibilidade de aqui colocar a apresentação que realizei hoje no 6º Congresso Internacional de Antropologia da AIRB (online), trago o resumo enviado e aprovado da minha intervenção:

Eu sou filigraneiro

percepções, narrativas e estratégias de um património em esquecimento

por Luís Vale.

Gondomar é reconhecido como a “Capital da Ourivesaria”. Nesta terra de ourives e joalheiros, a Filigrana é saber antigo e tem ocupado um lugar de destaque entre as criações dos artistas locais. Quase exclusivamente artesanal, a Filigrana é concebida, na sua maioria, em oficinas de pequena escala, de cariz familiar, cujo saber tem sido transmitido geracionalmente e assim sobrevivido ao tempo. A Câmara Municipal criou a marca “Gondomar é d’Ouro” e desenvolveu um conjunto de acções de natureza colectiva, entre os quais a Rota da Filigrana, para promoção e divulgação da sua produção e do seu território. Este projecto envolve um conjunto de parceiros, de produtores (artesãos, ourives e indústrias) e entidades (CINDOR, ANJE, AICEP e AORP) e é financiado por fundos comunitários, o que obriga a Câmara Municipal a proceder à avaliação qualitativa do projecto. Assim, a nossa participação e o contacto com esse universo de produtores e promotores da Filigrana, através de entrevistas presenciais em profundidade e semi-estruturadas, permitiu-nos não só conhecer essa peculiar realidade, como perceber as diferentes percepções desta actividade económica, ao nível da criação de emprego, da inovação, do empreendedorismo, das estratégias de divulgação e promoção da marca e do concelho, nacional e internacionalmente. Mas permitiu também perscrutar os sentimentos em relação a uma actividade até há bem pouco tempo esquecida e em vias de extinção, entretanto recuperada pela marca “Gondomar é d’Ouro”, cujos intervenientes nos falaram das suas vidas de filigraneiros, suas histórias e futuros possíveis; sobre a sua arte e sobre a filigrana. A construção das suas identidades, a consciencialização do seu valor, a urgência de preservar a sua arte, o sentimento de pertença a uma arte/ofício, a tematização do território, a preocupação com o “seu negócio”, permitem-nos entender o esforço de patrimonialização em curso: naquilo que é um ofício local/regional, marca distintiva geográfica, de qualidade ou excelência e de identidade simbólica; Naquilo que são as narrativas de carácter histórico e remetendo para uma memória comum e partilhada pela comunidade; Também, naquilo que poderá ser o contributo da Filigrana, nos destinos e nas mais-valias financeiras, para o turismo cultural local/regional; E ainda, naquilo que poderá ser o reconhecimento e o prestígio internacional através da candidatura ao estatuto de património mundial da UNESCO. Por outro lado, pudemos perceber as tensões existentes no sector, das quais destacaríamos: a) a tentação pela industrialização da produção, levando à perda da sua autenticidade artesanal; b) falta de mão-de-obra (problema geracional e remuneratório); c) os perigos da reutilização/conversão da Filigrana num produto banal, sem excelência e prestígio, para consumo de massas (turísticas); d) desconfiança da sobrevivência da fileira da Filigrana a médio/longo prazo e sem este apoio institucional do projecto.
Perspectivando a Filigrana em Gondomar, consideramos haver ainda muito para estudar e fazer, não passando este exercício de um pequeno estudo exploratório desse universo, estaremos também a contribuir, de alguma forma, para a sua patrimonialização.

Palavras-chave: filigrana, património, identidade, memória, território, turismo.

o velho eléctrico

eléctrico nº 1

Fazia mais de 30 anos que não entrava num Eléctrico da cidade do Porto. Neste último Sábado viajei no número 1, o da linha marginal, que liga o Infante ao Passeio Alegre e gostei muito da experiência, apesar do preço algo exagerado. Ao contrário do que acontecia no tempo em que viajava regularmente de Eléctrico, as 3 linhas ainda activas - 1, 18 e 22 - estão ao serviço do turismo urbano, fazendo parte de bonita designação: "Porto Tram City Tour" dos STCP. Esta designação não engana nenhum tripeiro.
Nesse outro tempo, teria eu os meus 13 a 14 anitos, viajava regularmente pela zona histórica e pela baixa da cidade de Eléctrico e de Trolley, ambos então ao serviço da população da cidade e arredores e cobrindo uma área geográfica muito superior ao que acontece hoje em dia.
Foi uma manhã de Sábado muito bem passada.

solilóquio

Habituei-me com relativa facilidade a não ter que cumprimentar as pessoas. Mesmo com aquelas que me são mais queridas, o toque corporal quase desapareceu e isso não me importunou. Sem querer ser, ou parecer, insensível ou distante, julgo que conseguirei sobreviver com este distanciamento dos afectos.
No entanto, continuo a gostar de tocar e ser tocado.

25 julho 2020

a quem interessar...


Vai acontecer entre 28 e 31 de Julho de 2020 o 6º Congresso Internacional da Associação de Antropólogos Ibero-Americanos em Rede. Inicialmente programado para se realizar em Vila Real, devido à pandemia a organização viu-se obrigada a transformá-lo num congresso online (através da plataforma Zoom). Eu vou participar no painel "Património imaterial, saberes quotidianos e tradições", que acontecerá no próximo dia 29 de Julho, pelas 14 horas. Para quem possa estar interessado em assistir a este ou a outro painel consulte o programa e respectivas ligações em http://2020.aibr.org/es/

21 julho 2020

a sério?!

Entro em estabelecimento comercial de referência para comprar bolo de aniversário de meu pai. Enquanto esfrego as mãos com o álcool-gel, espreito a arca expositora onde estão os ditos e afamados bolos, quando sou interpelado pelo eficiente e simpático empregado que, enquanto se encaminha para mim, pergunta se me pode ajudar. Claro que pode, pretendo um bolo (pequeno e sem grande produção artística), ao que ele me sugere o bolo que, adianta, mais vendem (técnicas de venda em todo o esplendor...). Depois de alguma hesitação, acabo por aceitar a sua sugestão. Após o retirar da arca e enquanto se encaminha para dentro do balcão para o embalar, pergunta-me se é para "menino" ou "menina". Respondo que é para "menino" e num acto irreflectido, acrescento: - menino já avô. Ele, como que admirado, reage: - A sério?!... e regressa ao diálogo habitual:
- E as velas?
- 7, 6 - respondo de imediato.
O espanto dele foi indisfarçável e não se conteve: - Está muito bem conservado. Ninguém diria.
Eu, incrédulo e a olhá-lo com ar grave, respondi-lhe: - A sério?!...
- O senhor desculpe, mas é que com a máscara e óculos, ainda pus a hipótese... - o embaraço do homem era evidente.
Enfim, já estou habituado a que me considerem mais velho do que aquilo que realmente sou, mas caramba, 76 anos? Acho que ainda não os aparento. Espero lá chegar, mas não tenho pressa.

ao espelho

[ publicado no jornal Mensageiro de Bragança, no dia 16 de Julho de 2020 ]

06 julho 2020

responda quem souber

O que fazer quando aqueles que podem mudar o mundo são os que têm dinheiro porque escravizam, digam-me qual é o sentido de tudo isto?
Patrícia Portela, in Jornal de Letras nº 1298, Julho 2020

a esplanada

Há dois anos que percorro a marginal litoral de Gaia à procura de lugar para me sentar e ficar. Estou órfão de esplanada desde o Verão de 2018. Passo a explicar: Desde que o meu velho amigo Alexandre passou a sua explanada em Valadares [a esplanada do Alex] e o novo projecto aí instalado mudou completamente o estilo, o ambiente, logo de clientes, tenho andado à procura de esplanada substituta e nenhuma me satisfaz. Já me têm alertado para o facto de andar à procura de algo que já não existe. Pois, mas no entretanto, não paro em lado nenhum e, aquilo que era um hábito sazonal de ir para à beira do mar deixou de o ser. O Alexandre, segundo o próprio me disse, esteve à frente do negócio durante 32 anos e eu lembro-me de lá ir desde esses primeiros anos. Claro que não fui sempre um cliente assíduo, mas uns anos mais outros menos, fui um cliente regular. Por lá passei muita manhã e muita tarde, às vezes também noites de copos com amigos. Enfim, mais uma vivência que passou a memória e que, dificilmente, será recuperada. Lamento.

05 julho 2020

mediascape: o equívoco

Não se percebe toda a celeuma, toda a ofensa e indignação que a decisão dos ingleses sobre a obrigatoriedade de posterior quarentena para quem venha de férias para Portugal. A decisão, reconheço, é estranha, tanto mais que os números da Covid-19 continuam a ser piores por lá, do que por cá. Ao contrário deste clamor de incompreensão, seria melhor agradecer por sermos poupados à sua invasão de veraneio, pois não deveríamos querer cá quem nos possa trazer o vírus, nem deveríamos querer viajar para lugares onde possamos ser infectados. É tão simples quanto isto.

02 julho 2020

sombras de alguém

Encontrei este projecto no Twitter e por o considerar muito interessante, peculiar e valioso, partilho-o aqui. Fica um print screen da página de tumblr. Tal como referi na interacção no Twitter esta ideia remete-me para a questão dos "Álbuns de Família" e similares e os perigos do esquecimento e apagamento das memórias. Tal como este projecto bem demonstra, a única forma de salvaguardar a memória geracional desse pretérito mais ou menos afastado, é catalogarmos, ou pelo menos, será colocarmos legendas em todas as fotografias, para num qualquer futuro ser possível identificar e contextualizar rostos e lugares. Tarefa urgente para cada um de nós e, também por isso, este portal é importantíssimo e uma mais-valia.