31 março 2024

o chapéu: a catarse

Por ter uma cabeça descomunalmente grande e para grande tristeza minha, nunca pude ser um usador de chapéus, boinas e outros acessórios para a cabeça. Sim, há sempre a possibilidade de usar gorros, mas curiosamente nunca lhes achei piada, nem gosto de os usar, apesar de muitas vezes o fazer por verdadeira necessidade física.
Pois bem, eu tenho um chapéu, quero dizer, eu tinha um chapéu, um único chapéu e acabei de ficar sem ele. Não sei quantos anos o tive e usei, mas sei que já o tinha há mais de vinte e cinco anos. E sei porque tenho fotografias com ele na cabeça e ainda não era casado. Faz precisamente hoje vinte e cinco anos que casei e foi hoje também o dia em que o perdi. Irreparável dano.

from the army

[ Dialogue in English with the restaurant owner, in the middle of the meal, yesterday, March, 30th, in Fira ]

"- Sir, is everything all right here?
- Yes, everything is fine, thank you.
- Sorry, can I ask you where you come from?
- We come from Portugal.
- From Portugal?! Ok, very well. And may I ask you what you do for a living?
- I'm an anthropologist.
- Anthropologist?! Ok, I thought it was something else...
- Yes? What did you think?
- Well, You are very serious. In a good way, of course. I thought it was something in the army, but I was wrong. Sorry.
- Yes, completely. I never belonged and have always been very far from this universe.
- Sorry for the abuse.
- No problem."

---- tradução ----

[ diálogo em inglês com o dono de restaurante, a meio da refeição, ontem, 30 de Março, em Fira ]

"- Senhor, está tudo bem aqui?
- Sim, obrigado.
- Desculpe, posso perguntar-lhe de onde vêem?
- De Portugal.
- Ok. muito bem. E posso perguntar-lhe o que faz na vida?
- Sou antropólogo.
- Antropólogo!? Ok. Pensei que fosse outra coisa...
- Sim? O que pensou?
- Bem, o senhor é muito sério. No bom sentido, claro. Pensei que fosse algo nas forças armadas, mas enganei-me.
- Sim, completamente. Nunca pertenci e sempre estive muito longe desse universo.
- Desculpe o abuso.
- Não tem problema."

29 março 2024

voar

A ansiedade em que tenho vivido nestes últimos dias é devida, tenho a certeza, ao facto de saber que hoje irei viajar de avião. Há catorze anos que não o faço e permanece para mim como uma aventura desnecessária. Tremendo receio e desconforto em tirar os pés do chão. Mas vou.

20 março 2024

a casa do fogo e a fidalga


Ganhou contornos de lenda, ou pelo menos de estória fantasiada, mas que faz parte da memória familiar e até da comunidade local e que tenderá a desaparecer com o tempo e com a renovação das gerações, o que me leva a querer registar. É a história de Maria Ricardina Fernandes, minha tia-bisavó, natural de Vilarinho do Monte - Macedo de Cavaleiros, que casou em Vila Boa, no dia 7 de Julho de 1890, com João Manuel Fernandes do Vale, filho primeiro de José Marcelino Fernandes do Vale e de Maria Joaquina Pires Pousa. O casal, João Manuel e Maria Ricardina, ficou a viver em Vila Boa e tiveram três filhos. Consta que a Maria Ricardina, ainda com os filhos pequenos, ficou doente e muito tempo entrevada, confinada num quarto da casa e necessitando de muita assistência e cuidados, o que lhe valeu a nomeada de "fidalga". Pois bem, um dia deu-se um incêndio nessa casa que provocou a explosão de várias vasilhas de azeite, o que assustou de tal forma a "fidalga" que, sem qualquer ajuda, conseguiu fugir das labaredas e pôr-se a salvo na rua. Essa parte da casa ficou até hoje conhecida como a casa do fogo e a "fidalga" morreu não muito tempo depois (ainda no século XIX). O viúvo, João Manuel, com o desgosto da morte da mulher, ficou muito deprimido e recusava-se a aceitar o seu destino, não queria saber da vida, passava o tempo na cama e nem queria comer. Valeu-lhe o conforto e consolo de uma criada que tinha a seu serviço e para cuidar das crianças. O consolo foi tanto que um dia a criada apareceu grávida. A este propósito, muito mais tarde, um neto do João Manuel comentou: "a criada tanto insistiu... coma Sr. João, coma Sr. João... que ele comeu-a mesmo...". A verdade é que, por pressão familiar, principalmente do seu irmão António que era padre, o João Manuel casou em segundas núpcias com essa criada, de seu nome Benigma Ramos, natural de Alimonde, mas o ambiente ter-lhe-á sido tão hostil em Vila Boa que foi com a família, primeiro para Vilarinho do Monte, terra da primeira mulher e onde não terá sido bem recebido e, depois, para Nuzedo de Baixo. Certo é que nunca mais terá regressado a Vila Boa. Deste seu segundo casamento o João Manuel teve mais sete filhos. A casa do fogo manteve-se sempre na família e actualmente, desde há cerca de uma década, é propriedade do meu irmão Daniel, que comprou as sortes dos vários herdeiros.

(adaptação de um pequeno texto escrito e dactilografado pelo meu pai sobre a vida do seu tio-avô João Manuel Fernandes do Vale. Texto que me entregou em Janeiro de 2024)

19 março 2024

que eu fosse

"E agora, chegado quase ao fim da vida, o futuro que eu fosse já está quase todo consumido no passado".
Helder Macedo, in Jornal de Letras nº 1394, Março 2024.

18 março 2024

15 março 2024

Cara de Espelho


Amanhã, dia 16 de Março, na Casa da Música. Novo projecto nacional e é com enorme expectativa que vou assistir a este concerto.

faculdade inventar

"Tal como os surrealistas tantas vezes defenderam: é necessário ser cego para imaginar, é necessário impedir o aparecimento de imagens exteriores, reais, para que o delírio, a alucinação e o imaginário surjam com força, não do exterior, mas da parte mais interior da cabeça, daquela parte humana que pode inventar."
Gonçalo M. Tavares, in Jornal de Letras nº 1394, Março 2024.

13 março 2024

grisalho

Não restam dúvidas, faço já parte do crescente batalhão de grisalhos. Não que seja uma novidade, ou que hoje tenha acordado e ao ver-me reflectido no espelho isso tenha acontecido. Não, já há algum tempo que efectivei nesse contingente, mas esta mescla de tonalidades deixa-me perfeitamente pardo.

vamos LER

08 março 2024

mulher

"A mulher que se diz no singular refere-se a um destino que é sempre no plural".
Maria de Lurdes Pintasilgo

01 março 2024

(des)campanha eleitoral

Quando está a chegar ao fim a primeira semana da campanha eleitoral para as eleições legislativas de 10 de Março, permaneço ausente e sem qualquer contacto com o seu quotidiano, os seus casos, os seus protagonistas. Aquilo que vou apanhando é a espuma dos dias e aquilo que me chega por vias travessas... já ouvi falar das cuecas nacionalistas do André Ventura, da cabeça verde do Luís Montenegro, da Avó, do pai e do Piriquito da Mariana Mortágua, do garanhão Gonçalo da Câmara Pereira e pouco mais. Manter-me-ei afastado, ausente e desconhecedor. É também uma questão de preservação da minha sanidade. Tenho sido contactado para participar nas iniciativas do Bloco, mas não o irei fazer por discordâncias severas nos processos de democracia interna e nas escolhas dos candidatos. Em todo o caso, a percepção que tenho da aceitação e empatia do BE junto das populações não é a melhor e desconfio que se avizinha mais uma derrota eleitoral. Veremos.