31 dezembro 2018

últimas horas, dias, de 2018

Aproveitando o frio da capital transmontana, mantenho-me refugiado e embrulhado em mantas e cobertores, ou melhor, agora são ederdons quem nos mantém a temperatura e aquece a estrutura. Para além do estado semi-dormente que esse aconchego propicia, vou aproveitando os intervalos lúcidos para ler. São vários os livros que se acumularam nos últimos meses e estão em fila de espera para meu prazer e sabedoria.
Hoje, último dia de 2018, por volta das seis da manhã iniciei a leitura desta obra, obrigatória para qualquer cidadão deste mundo, e que por estúpida omissão e gritante ignorância, ainda não li. Aliás, não conheço de todo a obra de André Malraux. Aí está uma das provas da minha enorme ignorância. Ainda assim, vou tentando recuperar e melhorar essa minha condição.
Bom ano de 2019 para toda a gente.

28 dezembro 2018

um escritor feliz

Porque escreve afinal?
Porque amo estar o dia inteiro fechado em casa a escrever; porque o cheiro do papel e da tinta é um vício; e porque acredito na imortalidade das bibliotecas.
É, então, um escritor realizado?
Sim, sou um escritor feliz.
E o que é a felicidade?
Uma vida com sentido. Tudo o que aconteceu comigo foi porque escrevi. A minha única religião é a Literatura.
(Orhan Pamuk, na FIL de Guadalajara, 2018)

a igualdade

Boaventura Sousa Santos (esse mal amado pela lusa pátria das ciências e afins...), no Jornal de Letras (nº 1258), escreve sobre o desafio que lhe propuseram para a sua participação no 1º Fórum Mundial do Pensamento Crítico, que se realizou em Buenos Aires, no passado mês de Novembro. O repto era: explicar a igualdade aos 1% mais ricos do mundo.
Daquilo que escreveu, saliento e transcrevo as seguintes ideias:

No século XXI, e depois de todas as vitórias dos movimentos feministas e antirracistas, seria mais correcto explicar não a igualdade mas a diferença. A igualdade não existe sem ausência de discriminação, ou seja, sem o reconhecimento de diferenças, sem hierarquias entre elas.
(...)
Temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza e o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza.
(...)
A filosofia eurocêntrica - e as epistemologias do Norte que dela nasceram e deram origem à ciência moderna - assenta na contradição de defender em abstrato a igualdade universal e ao mesmo tempo justificar que parte da humanidade não é plenamente humana e não é, por isso, abrangida pelo conceito de igualdade universal, seja ela constituída por escravos, mulheres, povos indígenas, povos afrodescendentes, trabalhadores sem direitos, castas inferiores.
(...)
Uma metáfora menos chocante será a de pensar que a ajuda ao desenvolvimento ajuda de facto os países a desenvolver-se. Ao contrário do que promete, ela contribui não para desenvolver os países mas para os manter subdesenvolvidos e dependentes dos mais desenvolvidos.
(...)
As epistemologias do Sul que tenho vindo a defender partem dos conhecimentos nascidos nas lutas daqueles e daquelas que viveram e vivem a desigualdade e a discriminação, e resistem contra elas. Estes conhecimentos permitem tratar a igualdade como denúncia das desigualdades que oculta ou considera irrelevantes para a contradizerem. Permitem também tratá-la como instrumento de luta contra a desigualdade e a discriminação. Apenas para dar um exemplo: as epistemologias do Sul permitem reconceptualizar o capital financeiro global, o verdadeiro motor da extrema desigualdade entre pobres e ricos e entre países ricos e países pobres, como uma nova forma de crime organizado.
(...)
À luz das epistemologias do Sul, os crimes cometidos pelo capital financeiro global serão uns dos principais crimes de lesa-humanidade do futuro. Junto com eles e articulados com eles estarão os crimes ambientais.

27 dezembro 2018

eu vou lá estar

26 dezembro 2018

o tédio

Ausente da blogosfera e da actualidade global, local e até pessoal, no último par de meses, aproveito agora o ritmo mais vagaroso das horas para espreitar e, retroactivamente, ler aquilo que fui deixando escapar. Num desses lugares, bem frequentado e com excelente memória, encontrei este excerto que aqui transcrevo e descontextualizo do seu ambiente natural. Parece-me bem, bem demais.

Temos hoje horror ao tédio. A nossa atenção e sentidos são permanentemente convocados, estimulados e titilados por um vendaval ininterrupto de notícias divertidas, vídeos engraçadinhos e outros excitantes palermas. Tudo é programado ao milímetro e ao segundo para impedir o ennui e para eliminar os pensamentos melancólicos do nosso espírito, cada vez mais infantilizado. A principal função do polegar oponível do Sapiens consiste agora em deslizar imagens patetas no ecrã de um smartphone. Nas praias e nos cafés, nos jardins ou nas ruas, tudo agarrado ao telemóvel. A toda a hora, de dia e ou de noite, levamos connosco uma Coney Island de bolso, muito portátil. Com isso evacua-se o tédio, decerto, mas perde-se também o seu enorme valor cultural e civilizacional. Sem falar no "ócio criativo", outrora muito apreciado nas melhores universidades inglesas, eram as tardes lânguidas da puberdade que levavam os adolescentes a ler. A ler horas a fio, sob o incentivo do tédio e da circunstância singela, mas decisiva, de não haver nada para fazer, absolutamente nada. Devoravam-se obras quilométricas, intermináveis mas fundamentais, que hoje amarelecem nas prateleiras, esmagadas pelo pó da ignorância e pela sujidade da desmemória. Para um teenager, entre a gratificação imediata de um like e a lenta e densa trama de Guerra e Paz a escolha é óbvia, irrecusável. Sem tédio, perdendo-se a capacidade de lidar com o tédio, é impossível aprender uma língua morta, estudar com afinco o latim ou o grego antigo, repetir à náusea os exercícios de violino ou harpa, gastar os dias a contemplar as nuvens do céu ou as avezinhas dos bosques. Não é por acaso que a Inglaterra, cinzenta e húmida, sempre foi grande terra de birdwatchers.
Matámos o tédio, muito bem, paz à sua alma. Mas, com essa morte, matámos também o que restava da nossa cultura humanista, baseada no livro e na leitura, na música dos planetas, no espanto da Natureza. Duvidam? Uma em cada cinco das livrarias registadas no Ministério da Cultura já não existe. Das restantes, apenas um terço reúne os requisitos para ser considerada livraria; e 40% dos livros ali expostos acabarão por ser devolvidos às editoras, por falta de compradores. Depois do tédio, as trevas. 

António Araújo, in "Entre as brumas da memória", dia 26/12/2018.