29 abril 2020

enclausurado XXXVIII

1º de Maio

Agora, em vésperas do feriado do 1º de Maio, venho a terreiro para manifestar o meu total desacordo com as celebrações, ou manifestações, que estão previstas para esse dia. Ainda em Estado de Emergência não me parece de todo razoável que se possam realizar "acções de rua". Da mesma forma e com os mesmos argumentos com que concordei com a celebração do 25 de Abril na Assembleia da República, não relativizando a importância do 1º de Maio, sou manifestamente contra qualquer manifestação que implique a reunião ou ajuntamento de pessoas. E se na Assembleia da República o ambiente estaria sempre controlado e as restrições impostas estariam desde logo garantidas, neste caso, em plena rua, quem vai impor essas regras? Quem vai controlar e com que eficácia as movimentações das pessoas?
Quanto a mim, impraticável.

28 abril 2020

mediascape:amianto


A mim basta-me este título de notícia, jornal Público de hoje, para subscrever e afirmar que será incompreensível se tal não acontecer. O próximo ano lectivo tem que iniciar sem este elemento cancerígeno por perto.

27 abril 2020

enclausurado XXXVII

praia

Quando se começa a perspectivar o levantamento, ainda que gradual e cauteloso, das imposições relativas ao Estado de Emergência e ao confinamento em que temos vivido, aquilo que logo começou a preocupar o tuga foi saber se no Verão poderia ir para a praia. Muito se tem debatido essa possibilidade, motivando até declarações oficiais por parte do Governo. Também já encontrei várias ilustrações e fotografias ridicularizando essa possibilidade. Não sei, nem me importa se será permitido ou não ir para a praia. Eu não irei. A mim faz-me falta ir para a beira-mar ou rio desfrutar de uma boa sombra e bebidas frescas, mas estou já mentalizado para a impossibilidade de o fazer num futuro próximo.
Espanta-me como possa existir quem pretenda passar de um estado de reclusão e afastamento social para um estado de confusão e amontoamento social. Ou muito me engano, ou correremos o risco de uma regressão da pandemia e, por isso, considero que o mais avisado teria sido o Governo ter mantido as praias fechadas e esperar mais um ou dois meses para anunciar o que fosse sobre esses lugares de socialização.

mediascape:incontestável

Sim, se olharmos para trás, facilmente concluiremos que o Portugal nascido no 25 de Abril é a melhor versão histórica de Portugal que já tivemos - em liberdade, igualdade, solidariedade, em educação, cultura e ciência até em prosperidade partilhada, a verdade é que, desde que houve um reino chamado Portugal, este é o melhor Portugal da nossa história.
(...) O melhor disto não é que nos permite sentarmo-nos a descansar. É dar-nos a possibilidade de fazer muito melhor.
(Rui Tavares, in jornal Público, 27/04/2020)

a quem interessar...


A quem possa interessar. Eu vou participar. Encontramo-nos por lá.

26 abril 2020

os nossos pescadores


Raul Brandão escreveu estes textos sobre as comunidades piscatórias e sobre as paisagens litorais do nosso Portugal entre 1893 e 1922. Numa viagem por toda a costa portuguesa com paragem especial no seu lugar de coração e memória, a Foz do Douro, Raul Brandão, filho e neto de pescadores, faz uma magnífica e pormenorizada descrição das comunidades humanas, das artes e ofícios relacionados com a pesca, da infindável variedade de peixes, dos fenótipos de homens e mulheres, das embarcações, redes e utensílios necessários à arte, assim como da dura e amargurada vida desta gente que tem o seu sustento dentro de água. Um riquíssimo documento etnográfico que nos permite conhecer essa realidade, em grande parte já desaparecida.
Acho que regressarei a estes escritos, pois vão fazer-me muito jeito para algo que ando a congeminar.

As mulheres só levantam cabeça depois de eles morrerem. Aqui há anos, num naufrágio, perderam-se no mar alguns pescadores da Nazaré. Fez-se uma subscrição que deu para as viúvas viverem algum tempo. E as outras com inveja lá diziam: - Foi pena o meu não ter morrido também...
(página 122)

É a realidade que nos mata. Este panorama é na verdade trágico. Não cessa dia e noite o lamento eterno da ventania e das águas. E os cabos, que são de ferro e escorrem sangue, obstinam-se em apontar o seu destino de dor e esta terra de pescadores.
(página 163)


Agora, mudando radicalmente de época e de tema, irei ler, finalmente, a vida de Leonard Cohen. O livro já me aguarda há vários meses, mas a falta de coragem para entrar no seu universo foi adiando este momento. Vai doer.

século partido

Ontem, na revista E do jornal Expresso e no seu "diário da peste", Gonçalo M. Tavares escreveu que o segundo século XXI começou em Wuhan, o primeiro tinha começado nas Torres Gémeas, em 2001. E que agora é rezar para que o século não se parta mais...
Lamento, mas tenho como certo que será apenas uma questão tempo até novo cataclismo ou cisma. Não haverá rezas ou ladainhas terapêuticas que impeçam o que há-de vir, só não sabemos o que será e quando nos chegará.

25 abril 2020

Abril, 25

Na madrugada deste 25 de Abril, o dia inicial inteiro e limpo, como a poetiza um dia o descreveu, reflicto sobre esse momento maior e seminal das nossas vidas e como o seu afastamento temporal, já lá vão 46 anos, me tem revelado cada vez mais a sua importância e valor. Ontem, hoje e amanhã, 25 de Abril, sempre!

23 abril 2020

keeping faith


Se não estou em erro, terminou na passada terça-feira a segunda temporada desta série televisiva que a RTP2 transmitiu. Já tinha assistido à primeira temporada e, desde o seu primeiro episódio, fiquei preso à personagem central Faith Howells, desempenhada pela actriz Eve Myles. Trata-se da história de uma advogada a viver numa pequena localidade, casada com um advogado envolvido em esquemas e negócios obscuros, mãe de três crianças e com uma vida agitadíssima. Para além da excelente realização e das paisagens magníficas, o que mais me atrai nesta série é mesmo o desempenho de Eve Myles, de uma densidade e entrega impressionantes.
Espero, ansioso, pela terceira temporada.

dia mundial do livro

No dia em que mundialmente se celebra o livro, os seus autores e seus leitores, o Ministério da Cultura anuncia o lançamento de um programa de apoio ao sector no valor de 400 mil euros, que serão gastos na aquisição de livros às pequenas editoras e livra- rias portuguesas. Os livros serão comprados a preço de venda ao público, dos catálogos das editoras e livrarias, até um máximo de 5 mil euros por editor e livraria. Esses livros serão posteriormente distribuídos, em articulação com o Instituto Camões, pela rede de ensino de Português no estrangeiro (cátedras, centros de língua portuguesa, leitorados) e pela rede de centros culturais. Serão elegíveis para aquisição, ao abrigo desta medida, obras escritas em português, e por autores nacionais, de poesia, ficção, teatro, banda desenhada, literatura infanto-juvenil e ensaio nas áreas das artes e do património cultural. Este programa deverá arrancar já em Maio e destina-se exclusivamente às pequenas editoras e livrarias, às quais caberá propor à Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas as obras a serem adquiridas. Ao mesmo tempo o Ministério da Cultura decidiu antecipar a abertura das bolsas de criação literária, que serão lançadas já em Maio e que irão ter um reforço de 45 mil euros, a somar aos 135 mil euros já anteriormente orçamentados.
Boas notícias que, não sendo suficientes para o sector, pelo menos serão um balão de oxigénio para este universo frequentemente desprezado pelos poderes instituídos.

21 abril 2020

20 abril 2020

enclausurado XXXVI

rotinas escangalhadas

Ora, depois de umas quatro semanas confortáveis dentro de casa, em que já nos habituáramos a essa nova existência, com as rotinas, com os espaços e tempos próprios, eis que fomos invadidos por uma nova exigência que veio escangalhar essa pacífica e modorrenta vida de clausura.
Hoje começou a moderna versão da tele-escola e as aulas online da nossa criança e aquilo que até então tinha sido, mais ou menos, gerido com harmonia, num só dia já está estragado. Eu hoje não fiz mais nada, desde as 9 até às 16 horas, do que estar a assistir a aulas, via TV e via Internet, a fazer TPCs e a ver tutoriais na Escola Virtual. Não me lembro do miúdo ter trabalhado tanto (nem eu). Quando acabou ainda estivemos a tocar guitarra.
Sem qualquer soberba, ironia ou complexo de superioridade, estou para aqui a queixar-me mas só temos uma criança nestas circunstâncias e, apesar de todos (quatro do bando) estarmos a trabalhar via internet, temos espaços, computadores e impressora, ligação à internet, recursos suficientes para conseguirmos cumprir o que nos é solicitado. Mas imagino que em muitas casas deste país, as circunstâncias e as condições sejam bem piores do que as nossas, e nas quais não há, nem haverá, as mínimas possibilidades de haver resposta para as diferentes solicitações. Lamentável que assim seja.

19 abril 2020

festival de incertezas


Vicente Jorge Silva escreveu hoje no jornal Público e na sua rubrica "a esquina do mundo", este artigo de opinião que eu considero muito interessante e pertinente. Vamos lá reflectir sobre...

18 abril 2020

enclausurado XXXV

Liberdade, Igualdade e Fraternidade

Não percebo a polémica que surgiu e se instalou nos últimos dias, a propósito da cerimónia oficial do dia 25 de Abril que a Assembleia da República decidiu, e bem, realizar, com as devidas cautelas e condicionantes do Estado de Emergência em que vivemos. Aqueles que contestaram esta decisão usaram como argumento o facto de as celebrações da Páscoa terem sido canceladas e os portugueses não puderem reunir-se em rituais ou em família. Portanto, não faz sentido (para eles) que o Estado, as suas instituições e seus representantes, não se abstenham dessas celebrações da república e da democracia.
Não entendo esta contestação. Eu na Páscoa fiquei em casa, como bom cidadão obedeci às recomendações e imposições vigentes, independentemente das festividades que poderiam ter ou não acontecido. Eu no 25 de Abril, como bom cidadão obedecerei às recomendações e imposições vigentes, independentemente de haver ou não celebração oficial na Assembleia da República. Simples quanto isto. Como eu, maior parte dos portugueses.
Para além do mais, a Assembleia da República não está encerrada, mantém-se em funções e ainda bem. Portanto, o dia 25 de Abril será só mais um dia do seu normal funcionamento em Estado de Emergência.
Acresce a tudo isto, a importância vital e central da celebração do feriado mais importante para a nossa vida em comunidade, enquanto portugueses, democratas e republicanos. Aqueles que agora contestam esta celebração, não fazem mais do que aproveitar a pandemia para por em causa algo que sempre odiaram e que jamais aceitarão.
Viva a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade.

enclausurado XXXIV

desvario

Hesitei titular este texto entre "desvario", "aberração" ou "disparate". Qualquer um destes serviria para classificar as palavras do presidente do Chile, Sebastian Piñera, que revelou que o país está a contar as vítimas mortais provocadas pela Covid-19, como "recuperados" porque deixaram de poder contagiar a restante população.
Por amor da santa ignorância do meio, o esdrúxulo não deveria ter espaço, muito menos o poder, em tempos como este.

16 abril 2020

BCG e Covid-19

Na passada segunda-feira, no jornal Público, encontrei uma notícia que dava conta da possível relação entre a mortalidade e morbilidade associadas à Covid-19 e as políticas de vacinação da BCG nos diferentes países. A questão que agora se levante é se a vacina da BCG pode conferir uma protecção parcial contra a Covid-19, atenuando os casos mais graves e reduzindo a mortalidade.
Ao jornal Público o cientista português Paulo Bettencourt, que trabalha no Instituto Jenner da Universidade de Oxford, no Reino Unido, afirma:Neste momento, ainda é muito cedo para se tirar qualquer conclusão de que a BCG promove alguma protecção especificamente contra a Covid-19. É preciso fazer ensaios clínicos para produzir evidência científi􏰀ca de que a BCG tem um efeito sobre a Covid-19.
Esperemos que sim, pois todos os contributos serão bem-vindos e necessários nesta terrível luta de toda a humanidade.

ortogravírus


Hoje no jornal Público, porque a luta nem com pandemia tolera tréguas ou distracções. Bem haja o Nuno Pacheco.

Luís Sepúlveda

Morreu o escritor do fim do mundo... morreu o velho que lia romances de amor. Raios partam o coronavirus. Triste. Ainda há dias chegou-me por correio este livro dele...

15 abril 2020

enclausurado XXXIII

páscoa

Pela primeira vez, em mais de quarenta anos, passei estes dias de celebração religiosa em casa. Desde que me lembro, ainda criança, jovem ou adulto independente, por estes dias estive sempre, ou quase sempre, por terras de Trás-os-Montes. É, aliás, a época do ano mais agradável para se estar e passear pelos vales e montes eternos da minha existência. É agradável também porque os ossos já não se queixam de frio e a amígdala ainda não dilata com o calor.
A ver vamos quando poderei lá ir.

14 abril 2020

mediascape: autocracia

Li ontem no jornal Público algo que só nos pode deixar muito apreensivos. Segundo um relatório do V-Dem Institute. Pela primeira vez desde 2001, existem mais autocracias do que democracias no mundo, o que confirma um declínio global das instituições democráticas liberais. Esta tendência foi-se acentuando nos últimos anos e um pouco por todo o mundo, sendo apresentados os exemplos da Hungria, da Índia ou mesmo dos E.U.A. Diz-nos este documento que, em 2019, 92 países (51,4%) estão sob regimes autoritários, o que em termos demográficos significa que uma maioria dos cidadãos do mundo (54%) vive em autocracias e que as democracias eleitorais e liberais são agora 87, significando 46% da população mundial. Ainda assim, mesmo aqui alguns destes países apresentam tendências de perda de liberdades, como no Brasil, na Polónia e na Turquia.
A estes factos não poderemos deixar de relacionar a decrescente importância, centralidade e significado de instituições transnacionais como as Nações Unidas, a NATO, ou a União Europeia. Não podemos ficar indiferentes face a esta regressão democrática e seria mais do que tempo para as diferentes nações e estados democráticos, assim como essas organizações fundadas sob os desígnios da liberdade, do direito e da justiça, reflectirem sobre o seu desempenho e estratégias para inverter esta perigosa tendência, fortalecendo democraticamente os estados e suas instituições.

[ in Jornal Público, 13 Abril 2020 ]

mediascape: classista

Muito bem o Rui Tavares hoje, dia 13 de Abril, no jornal Público. Subscrevo cada vírgula que ele escreve.

12 abril 2020

de regresso à realidade

Na actual edição do Jornal de Letras (nº 1292), Viriato Soromenho-Marques apresenta três teses preliminares sobre as possíveis causas para a actual pandemia. Na primeira tese afirma que esta pandemia tem raiz na crise global do ambiente; na segunda tese refere-se aos perigos e riscos para a saúde pública, às escalas regional e mundial, que a crise ambiental e climática incluem; e na terceira tese acusa o neoliberalismo das últimas décadas ter deixado a política num estado comatoso e sem sistema imunitário político e estadual para enfrentar esta crise. Pelo pragmatismo e acertividade desta terceira tese, transcrevo-a quase na íntegra:

O neoliberalismo deixou a política em estado comatoso. Quase 40 anos de pandemia neoliberal, atacando as mentes, os corpos e as instituições deixaram-nos, aos povos do mundo, sem sistema imunitário político e estadual para enfrentar esta pandemia em sentido estrito. O narcisismo patológico de Trump, ou a estupidez cósmica de Bolsonaro, são apenas a ponta do iceberg. A experiência vivida por António Costa perante as "repugnantes" declarações de um insignificante ministro das finanças holandês, ilustram o egoísmo, a cegueira e a miséria moral e intelectual de grande parte das lideranças na União Europeia. Uma década de austeridade severa deixou os sistemas de saúde enfraquecidos. Não só em Portugal, mas também em quase toda a Europa.
(...)
Certo e seguro é que, depois de décadas vivendo na atmosfera quase narcótica de inconsciência e irresponsabilidade dos roaring years de um crescimento exponencial movido pela máquina trituradora do neoliberalismo, chegámos a uma situação em que a humanidade se encontra em vertiginosa rota de colisão com o Sistema-Terra. Esta pandemia veio acordar-nos para os duros factos de uma vida onde os actos têm consequências e os erros pagam-se caro. Estamos de regresso ao sentido trágico da existência. À dura experiência da nossa interdependência e da nossa vulnerabilidade. Estamos de regresso à realidade. O único lugar onde a nossa humanidade pode florescer e transcender-se.
(Viriato Soromenho-Marques, in Jornal de Letras, nº 1292, Abril 2020)

enclausurado XXXII

prioridades e preferências

Uma das coisas boas que aconteceram com esta situação pandémica, foi o desaparecimento do hegemónico raciocínio económico-financeiro, omnipresente e omnipotente, nas nossas vidas durante os últimos anos. É verdade que trocámos uma hegemonia por outra e que agora o assunto que nos orienta a vida é a pandemia, todas as suas dimensões e afins, mas ao mesmo tempo, por todo o lado encontramos alternativas, nunca como hoje se fala tanto de coisas outras. O raio do vírus proporcionou-nos uma existência, apesar de confinada, diversificada. O prazer que é poder ler, ver e ouvir, aprendendo com a variedade de conteúdos disponíveis para consumo, tanto e tanto conhecimento.
Ainda que se saiba que o preço que se pagará mais à frente será tremendo, neste momento sou dos que consideram que o importante é salvar o máximo de vidas humanas, tratar os doentes e garantir a sobrevivência dos indivíduos e das famílias. De que serviria a preocupação económico-financeira se deixássemos morrer as pessoas? A seu tempo o Estado e todos os que sobreviverem tratarão desse outro enorme problema que, com toda a certeza, nos aguarda.

10 abril 2020

mediascape:insofismável

Em casa, um apetite tremendo.
Somos estômago e dois olhos.
[ Gonçalo M. Tavares, revista E, 10/04/20202 ]

enclausurado XXXI

balancete

Completam-se hoje quatro semanas de confinamento. No próximo dia 13 completar-se-á um mês desde que nos trancámos à chave dentro de casa. Eu diria que, tendo em conta as circunstâncias, está a correr muito bem. Estamos, claro, desejosos da liberdade de podermos ir para onde nos apetecer, mas a perspectiva de que poderemos ainda estar, mais ou menos, a meio desta quarentena, tem cada vez menor importância nas nossas vidas. É que rapidamente nos habituamos à clausura e suas rotinas. Estamos confortáveis. Para além disso, as notícias que nos chegam dos círculos mais próximos, de familiares e amigos, são tranquilizadoras, não havendo notícia de qualquer infectado ou doente. Ainda assim consciente estou, estamos todos, de que ninguém está a salvo ou imune. Isto ainda não acabou, muito pelo contrário e, acima de tudo, desconhecemos o que nos espera na tempestade que se aproxima.

escritor, consegues escrever isto?

Quando a pandemia foi declarada e o mundo fechou, incluindo o mundo da cultura, houve quem dissesse que a literatura seria a arte menos afectada. Os escritores poderiam continuar a ficar em casa a escrever. A ideia do escritor mais ou menos recluso faz parte de um imaginário. E se, de facto, a maior parte escreve em casa e continue a habitar a casa onde sempre escreveu, a ver- dade é que a casa mudou. Mesmo quando à volta tudo parece como antes.
(...)
Como escrever assim? Como escrever numa altura em que todos os escritores do mundo parece que estão a to- mar notas sobre o mesmo assunto? Que romance se po- derá esperar daqui?, interrogou-se Sloane Crosley num ensaio na New York Review of Books em Março que traz à já difícil equação variantes tão complexas como as de es- paço e tempo, ambas alterados.
(...)
A ideia romântica do escritor em casa, a trabalhar, a pensar, no lugar onde sempre esteve apenas com os seus demónios privados, nota Dulce Maria Cardoso, já não é possível. Ou não é possível agora:
(...)
Rui Manuel Amaral: “Com o vírus a ficção ultrapas- sou a própria realidade. Qualquer coisa meio distópica em que éramos capazes de pensar há dois ou três meses podia ser transformada numa espécie de ficção literária. O mundo inteiro a parar por causa de um vírus não é nada que já não tivesse sido pensado de mil maneiras. Mas a ficção ultrapassou a realidade; neste momento estamos a viver uma espécie de ficção. Ou seja, a própria realidade tirou-nos o tapete e tirou-nos a substância ficcional. O que é que se há-de escrever neste momento? Tudo o que se possa escrever não chega aos calcanhares daquilo que estamos a viver na realidade, e é isso que está a tornar-nos meio mudos; ficamos meio paralisados. A ficção está paralisada porque a realidade ultrapassou a ficção."
(...)
As andorinhas este ano ainda não chegaram”, conta Mário Cláudio, que também dei- xou de ver luz à noite nas casas dos vizinhos. “É estranho. Isso é muito estranho, porque as pessoas não estão só em casa; estão fechadas em casa.”
(...)
Rui Manuel Amaral é, entre eles, o que escrevia e lia na rua. Faltam-lhe as esplanadas, os cafés que já não era o que costumavam ser, mas que talvez voltem a ser qualquer coisa mais próxima do que eram quando gostava deles. Remeteu-se a casa, só é capaz de escrever no blogue. “O blogue é um pretexto para ir rascunhando umas notas sobre o assunto, sobre o que é possível carimbar da es- puma dos dias. São coisas mais ou menos desinteressan- tes e banais, não é nada de especial, mas pelo menos obriga-me a ir mantendo a mão activa porque a ficção não me está a sair nada de especial. A realidade é mais louca do que qualquer coisa que possamos imaginar.”
[ Isabel Lucas, in revista Ípsilon do jornal Público, 10 de Abril de 2020 ]

tele-escola

A partir da próxima 3ª feira, dia 14 de Abril, regressarei à tele-escola para acompanhar as aulas da minha criança. O horário foi hoje conhecido e, em princípio, vai dar para gerir com o tele-trabalho da mãe e as minhas aulas online. Veremos como ele se adapta ao novo formato e esperemos que os conteúdos consigam atrair e cativar os alunos.

09 abril 2020

enclausurado XXX

tele-ensino

Desde o momento em que se soube, ao final da tarde, que o ensino básico não regressará às salas de aula neste 3º período, o meu filho (9 anos) gosta tanto da escola, que anda pela casa, feliz e contente, a cantarolar the Beatles. Diz-se feliz.
Agora o todo:
Desde essa comunicação ao país, os responsáveis políticos e da educação desdobram-se pelos canais de televisão em narrativas, explicações e justificações que fundamentem esta decisão.
Meus senhores e minhas senhoras, a decisão está tomada e há que aceitá-la. É uma alteração radical de paradigma no ensino e ninguém estava preparado para tal imprevisto. O esforço é e será enorme para todos os intervenientes e para toda a comunidade escolar. Há lacunas, imperfeições e injustiças, pois por mais que se afirme, por mais que se garanta, a equidade e a preocupação em que nenhum aluno seja prejudicado, toda a gente sabe que isso irá acontecer e que serão muitos os alunos para quem o ano lectivo e respectivas aprendizagens terminaram, efectivamente, em Março. Neste momento recordo todos os alunos provenientes de aldeias longínquas, perdidas pela imensidão do interior do país que, já em situação normal, diariamente, são obrigados a fazer dezenas e dezenas de quilómetros para irem à escola, localizada no centro da vila ou cidade mais próxima. Agora imaginem esses mesmos alunos, não podendo ir à escola, sem acesso a sequer um pc, quanto mais internet, algumas vezes, sem televisão e sem energia, assediados permanentemente pelos pais e familiares para contribuírem para o esforço colectivo nas tarefas domésticas e agrícolas. Qual escola? Qual sucesso? Qual igualdade ou equidade? Toda a gente sabe que isto é assim e é preferível omitir. Pior será se não sabem, pois demonstram não conhecer o país e a realidade de tantas e tantas famílias.
No entretanto, faremos todos o melhor por manter as nossas crianças motivadas e concentradas na aprendizagem alternativa dos conteúdos programáticos.

mediascape: risco de infecção

Mapa produzido pelo Instituto Superior Técnico, actualizado diariamente.
(in jornal Público - 9/4/20)

08 abril 2020

enclausurado XXIX

o tubo

Ao contrário do que é habitual (leia-se, tempo ordinário), tenho dedicado uma ou duas horas das minhas noites à música. Servindo-me do "tubo", como alguns amigos o chamam, tenho aproveitado esse arquivo para, acima de tudo, rever, recordar e reavivar velhas memórias. Bem haja o tubo.

07 abril 2020

mediascape:momento

Hoje, no jornal Público.

deusa da vingança


Leitura da última noite e madrugada. Não fiz de propósito. A escolha deste livro para ler nesta altura resultou da ordem em que se encontrava na pilha de livros por ler. Philip Roth leva-nos até meados da década de 40 do século XX, para nos contar a história da terrível epidemia de pólio* que se abateu sobre Newark no Verão de 1944, através da experiência pessoal de um jovem professor de Educação Física.
Já aqui o referi, talvez até mais do que uma vez: cheguei a este autor à relativo pouco tempo, e foi uma agradável surpresa. Gosto muito e tenho vindo a comprar e a ler a sua obra. Irei regressar, mas no imediato vou até ao início do século XX e à prosa de Raul Brandão para conhecer a vida de pescadores e marítimos (...) de Caminha a Tavira (...) mundividências, modos de ser e estar, diferentes relações com o mar e com a sua faina.

* popularmente conhecida por Pólio, a Poliomielite atacava principalmente as crianças e jovens, provocando diferentes graus de paralisia e incapacidade.

dia mundial da saúde

Nem de propósito. O enquadramento conjuntural que hoje vivemos motiva-nos a assinalar e enfatizar esta data, exigindo ao Estado mais e melhor SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE, ao serviço de todos os portugueses.
VIVA o SNS!

enclausurado XXVIII

ironia

Não deixa de ser uma triste ironia a notícia do internamento de Boris Johnson, Primeiro-ministro inglês, em consequência da infecção por Coronavírus. Convém relembrar a indiferença e o desdém com que o seu governo actuou perante a ameaça desta pandemia. A ele, enquanto responsável máximo da nação, era-lhe exigida alguma racionalidade ao lidar com o perigo eminente para a vida dos seus con-cidadãos e não uma atitude descontraída, irresponsável e até criminosa, ao relativizar esses perigos, defendendo como solução um rápido contágio social, de forma a atingir-se uma imunidade comunitária. Tal como os outros dois patetas do outro lado do Atlântico (Bolsonaro e Trump), não soube manter e promover a razão, nem com os órgãos de comunicação social, nem com a academia, ou seja, com a ciência. Não por acaso, a vida não lhe correu bem e foi o primeiro a experimentar pessoalmente os efeitos da sua soberba e da sua arrogância perante a crise.
Espero e desejo a sua recuperação e restabelecimento da sua saúde.

livrarias independentes


Com a crise provocada pela pandemia e pelo Estado de Emergência, o sector livreiro organizou-se e promoveu esta rede de livrarias independentes. Boa iniciativa, infelizmente necessária. Vamos ajudar comprando-lhes livros. Na página que criaram na internet pode ler-se:

A Rede de Livrarias Independentes (RELI) é uma associação livre de apoio mútuo composta por livrarias de todo o território português sem ligação a redes e cadeias dos grandes grupos editoriais e livreiros.Procuramos uma coordenação de esforços para enfrentar a crise no mercado livreiro, que vem comprometendo a existência de pequenas livrarias em todo o país — principalmente agora neste período de pandemia —, intervindo junto da sociedade e dos poderes públicos.

06 abril 2020

enclausurado XXVII

lares e 3ª idade

O alarme soou e o país acordou para a triste realidade em que muitos idosos existem. Essa realidade não deveria ser uma novidade, nem sequer deveria ser notícia. A verdade é que as instituições que abrigam os nossos mais velhos, nomeadamente as instituições de cariz social - misericórdias, paroquiais e outras - há muito que são autênticas ante-câmaras da morte, lugares de exclusão social, onde são colocados todos os que não têm condição, autonomia e capacidade de manterem o seu "lugar". Estas instituições totais (conceito de Erving Goffman) foram criadas pelas sociedades com o propósito de afastar da nossa convivência aqueles que não queremos encontrar ou suportar, garantindo-lhes um mínimo de dignidade, mas aceitando a degradação extrema da sua existência.
Perante uma pandemia como esta, que ataca com severidade os mais idosos, não poderia ser estranha a percepção de que os lares, e outros que tais, seriam alvos privilegiados do vírus. O pânico a que assistimos nos últimos dias em relação ao que se passa nessas instituições é uma evidência da extrema hipocrisia da nossa sociedade e da omissão e demissão do Estado perante a vida desses cidadãos portugueses. Uma vergonha.
[ escrito a 5 de Abril ]

enclausurado XXVI

bunkers

Vivemos enclausurados nas nossas habitações. Com maior ou menor espaço, estamos confinados às suas paredes e o ar que respiramos chega-nos através das janelas que, ao contrário do que é habitual, estão sempre escancaradas. É a rua possível.
Estamos fechados em autênticos bunkers, uma vez que a casa de cada um de nós se transformou num refúgio seguro, que nos protege do inimigo de toda a humanidade. Claro que falamos de bunkers especiais, com todo o conforto e comodidade, bem diferentes daqueles que habitam o nosso imaginário do tempo das grandes guerras. Não nos queixemos, não falta electricidade, água potável, TV, Internet, telefones e telemóveis, o que nos permite manter alguma normalidade, ocupar as horas dos dias e noites, assim como manter-nos em rede, comunicáveis e acessíveis.
Experimentamos um tempo extraordinário e peculiar.
[ escrito a 4 de Abril ]

04 abril 2020

evolução da pandemia na U.E.

Infografia retirada do jornal Expresso de 4 de Abril.

la casa de papel


A Netflix inaugurou ontem a quarta temporada da série espanhola "La Casa de Papel". Mais 8 episódios da incrível aventura de um bando de ladrões especialistas em assaltos impossíveis, dramáticos e espectaculares. Nós, aqui em casa, estivemos até perto das três da madrugada para vermos toda a temporada. Está vista. É de facto muito bem construída e realizada. Gosto, gostamos muito. Pena é a próxima temporada demorar tanto tempo a chegar, pois, nas melhores das hipóteses, só lá para 2021 é que poderemos contar com ela.

02 abril 2020

enclausurado XXV

ilusão, a minha ilusão

Se é verdade que é nos momentos extraordinários, como o actual, que os grandes líderes se revelam, também é verdade que nos mesmos momentos todos nós, comuns mortais, nos confrontamos com a História; a nossa e a de todos, ou seja, a colectiva. Ao mesmo tempo, e à medida que nos vamos consciencializando da dimensão da tragédia, não conseguimos evitar os piores pensamentos sobre o que há-de vir. Não sei se sobreviverei, não sabemos quem sobreviverá, mas ainda que assim seja, o que virá a seguir será igualmente terrível, pois as perspectivas económicas são tremendas e o futuro muito incerto e inseguro para muita, muita gente.
Não tenho grandes ilusões sobre a sociedade que advier depois da tormenta, pois as forças e dinâmicas das nossas sociedades tenderão a restabelecer os seus paradigmas. Contudo, acredito que um novo mundo é possível e que esta pandemia poderá ser a sua cosmogonia. Socorrendo-me de dois versos de uma famosa cantiga de Zeca Afonso, eu gostaria de poder vir a encontrar em cada esquina um amigo, em cada rosto igualdade.

pensageiro frequente

Curioso título para uma colectânea de textos ligeiros, como o autor os define na nota introdutória, destinados não exactamente a um leitor "típico", mas um passageiro que pretende vencer o tempo e, tantas vezes, o medo. Textos publicados na revista Índico - revista de bordo das Linhas Aéreas de Moçambique, levam-nos em viagem por diferentes paisagens moçambicanas, destacando as diversidades, vegetal e animal, autóctones. Viajarei agora, pelas letras de Philip Roth, para terras do Tio Sam e, em concreto, para Newark que se vê a braços com uma epidemia aterradora. Trata-se do livro Némesis.


Não é o voarmos sobre os lugares que marca a memória. É o quanto esses lugares continuarão voando dentro de nós. ( Mia Couto, pág. 123 )

01 abril 2020

servidão digital

Este tempo de crise tem sido invasivo da privacidade dos alunos, das famílias e dos professores, com um enorme excesso de solicitações e exigências. Se há paradigma já evidente é o da servidão digital. Sem horário de actividades, tanta diligência e desrespeito pela privacidade alheia transformarão pais, professores e alunos em simples plataformas humanas à deriva, no meio das plataformas digitais.
Santana Castilho, hoje no jornal Público.