03 julho 2021

gaiolas urbanas


Com a pandemia apareceram como cogumelos, um pouco por todas as cidades, estas plataformas amovíveis e, dizem, temporárias, subtraindo lugares de estacionamento nas vias públicas, para servirem de prolongamento às esplanadas de cafés, restaurantes e afins. Eu entendo a situação extrema e desesperada em que muitos desses negócios se encontram e a necessidade mais que urgente de começarem a facturar, assim como percebo as autarquias que, regulamentando permitem essa ocupação, e assim tentam minorar prejuízos e maximizar rentabilidade do espaço em benefício dessas actividades comerciais. Contudo, face àquilo que tem sido a percepção da utilização desses novos espaços, questiono se na relação custo/benefício, leia-se vendas e facturação nesses espaços, valerá a pena o investimento realizado na estrutura.
Do ponto de vista do cliente, e eu sou sempre cliente, não me vejo a utilizar esses espaços para consumir e socializar, pois para além da sensação de "engaiolamento humano", se repararem, muitas destas esplanadas-gaiolas estão encostadas ou em cima das faixas de rodagem, o que significa um acréscimo de risco e insegurança, assim como, com a intensidade de trânsito, há uma enorme e permanente libertação de gases e outros elementos nocivos, que serão sempre aditivos àquilo que se está a consumir na gaiola. 
Não muito obrigado.

02 julho 2021

num dia triste assim

Começou porque me limitavam os anos,
doze anos, quinze anos, vinte anos...
Eram limites, eram fronteiras suportáveis:
o ano que vem, quando cumprir trinta anos,
o ano passado, o ano novo...
Eram limites amplos,
era possível a distância, o horizonte,
por muitos anos! Os espaços
dominavam o tempo
recebias a aurora, despedias a tarde
amplamente e amavas 
docemente os sonhos.
Os anos eram carcereiros
mas rondavam muito distanciados.
Havia quem vivesse cem anos!
[in "O prisioneiro do tempo", de Jesús Lizano, 2019]

01 julho 2021

31 de Janeiro, a rua

Na última década, talvez um pouco mais, o centro da cidade e, em particular, a zona histórica que foi reconhecida como património cultural da humanidade pela UNESCO, tem sido objecto de uma profunda e importante renovação urbanística e as suas principais artérias apresentam-se hoje de cara lavada. Poderemos discutir e até não concordar com as motivações, os propósitos e as consequências sociais e económicas desta evolução urbanística, mas se mais não for, pelo menos, teremos agora uma "baixa" renovada e asseada para as próximas décadas. Contudo, esse movimento reformista excluiu, declarada e estranhamente, a rua 31 de Janeiro. Outrora uma das artérias mais concorridas, onde diferentes sectores de comércio (calçado, vestuário, música, livros, lazer, banca, etc.) disputavam os espaços comerciais e onde a circulação de pessoas era intensa, encontra-se agora abandonada: sem moradores, com grande parte dos estabelecimentos comerciais fechados, com os edifícios a manifestarem abandono e degradação, alvos fáceis para o vandalismo e destruição, aliás, bem visíveis para quem passa.
Há muito que a rua 31 de Janeiro, no Porto, é para mim intrigante e deveria mesmo ser objecto de estudo. Como e porquê é que uma das ruas localizadas no coração da cidade, confluente com a Santa Catarina - ainda polarizadora do comércio de rua e de alguns serviços - deixou de atrair o comércio e seus clientes, deixou de atrair o investimento imobiliário e perdeu toda a sua centralidade naquilo que são os percursos pendulares dos habitantes da cidade e naquilo que são os percursos turísticos ou de quem visita a cidade?
Esta manhã, ainda não eram nove horas, desci a rua 31 de Janeiro e para além da constatação de tudo aquilo que aqui escrevo, logo no cimo da rua me apercebi de algo diferente. Um grupo de indivíduos limpava e pintava as fachadas, nomeadamente, as portadas, grades e vitrinas de lojas grafitadas e conspurcadas, de vários edifícios do lado esquerdo (para quem desce), e ao longo de toda a rua. Ao me aproximar pude verificar que eram mais de uma dezena de funcionários da Câmara Municipal do Porto, pois estavam equipados com casacos reflectores que os identificavam.
Para além de ter estranhado esta acção, logo me assaltaram algumas considerações:
a) Bem sei que é função da autarquia cuidar do espaço público, o que inclui também as fachadas dos edifícios, mas nenhum dos edifícios dessa rua é, que eu saiba, propriedade do Estado ou da autarquia, portanto, a obrigação dessa manutenção/limpeza/restauro não compete aos seus legítimos proprietários?
b) Porquê nesta rua e porquê só agora?
c) Porquê só as fachadas dos edifícios do lado esquerdo (para quem desce) da rua? Será por pertencer ainda (é um dos limites) à área urbana patrimonializada?
Não sei responder a nenhuma destas questões, mas gostaria que alguém me pudesse explicar.
O mais que aparente abandono da 31 de Janeiro permanece sem explicação e sem justificação. 

30 junho 2021

sintomatologia financeira

Comentário do meu filho:
- Eu não me lembro de ver a Emília (irmã) sem o aparelho nos dentes.

23 junho 2021

desconfinamento desconfiado

É verdade que há já quase dois meses começámos a por o pé na rua, regressámos aos locais de trabalho e a vida em comunidade deu sinais de alguma reanimação, mas tal como em momentos anteriores de desconfinamento, foi Sol de pouca dura e, mesmo que o céu tenha estado sempre encoberto por grandes nuvens cinzentas, muitos consideraram que a tempestade findara, saíram à rua e quiseram viver como se nenhum perigo existisse. Mais do que esta atitude irresponsável de muitos, aquilo que mais me irrita é a atitude passiva, negligente e irresponsável das autoridades nacionais que, sem qualquer razão ou justificação, permitiram e promoveram um conjunto de acções e momentos impossíveis - festejos do campeonato do Sporting, final da Liga dos Campeões Europeus no Porto, manifestações e concentrações de pessoas em festas, comícios, estádios, etc. - e que agora, pouco tempo depois, resultaram num novo crescimento de todos os indicadores relativos à Covid-19, falando-se já numa 4ª vaga da pandemia a caminho, que nos irá atingir em pleno Verão. Vai ser bonito... temperaturas altas e as pessoas fechadas em casa a cozer e a derreter o cérebro. Eu espero estar enganado, mas permaneço desconfiado e tudo aquilo que desconfinei até aqui foi muito pouco, sempre com a perspectiva de que a inversão de marcha era uma hipótese muito possível. Apesar de sair de casa, continuo a não me sentir confortável em lado nenhum, e também por isso, não projectei nada (férias, viagens, passeios) para este tempo estival e estou mais do que preparado para me enclausurar em casa, outra vez.

vacinação

Finalmente chegou a minha vez. Depois de uma espera de cerca de uma semana entre o momento do auto-agendamento até à mensagem de marcação, durante a qual se soube que as gerações mais novas também já podem propor-se para serem vacinados, eu já estava apreensivo e desconfiado que o meu registo não tinha sido efectuado. Quando já quase toda a gente à minha volta tem, pelo menos, a primeira dose, eu serei dos últimos a tê-la. Dia 26 lá estarei.
Ainda assim, não tenho qualquer comentário ou crítica a fazer ao processo. Idealmente deveria ser mais célere, mas na verdade o esforço logístico é tremendo, a máquina está a andar e vamos mesmo todos ser vacinados durante os próximos meses. Muito bem. Pena é que haja tanto cidadão irresponsável, que se comporta de forma estúpida e até criminosa. Isto ainda não acabou e a tão desejada imunidade de grupo está ainda muito distante. Há que ter paciência.

18 junho 2021

novo de Rentes de Carvalho

Saiu ontem, mas só hoje o pude ir buscar. Aqui está ele. Ainda que em crónicas, com certeza, boa prosa para ler nos próximos dias.

17 junho 2021

eu e o futebol

Há dias liguei a TV e estava a dar um jogo do Europeu de Futebol, se não me engano jogavam a Espanha e a Suécia. Estive um par de minutos a assistir, mas depressa me fartei do jogo e mudei de canal. No mesmo instante a confirmação de uma mudança que tenho vindo a verificar em mim assaltou-me o espírito. Eu já não gosto de ver jogos de futebol e, acima de tudo, já não tolero a conversa daqueles que fazem a narração e os comentários aos jogos. Continuo a ser adepto do meu FCP, mas não há paciência para tudo o resto, nem que sejam "grandes" equipas a defrontarem-se - clubes ou selecções. Ainda consigo espreitar os jogos do FCP, mas mesmo aí, dou comigo a mudar de canal ou a desligar a TV. Enfim, com o passar dos anos, outros interesses, outras motivações, outros gostos ganharam espaço em mim e o futebol foi quem mais perdeu. Ainda assim, mesmo reconhecendo esta realidade, custa-me aceitar que assim seja.

trabalho de campo e gnose

Atrever-me-ia a dizer que no trabalho de gnose de um lugar o primeiro impacto com as cores, com as pessoas, com as vozes, com a geometria do casario e das ruas, e finalmente com os hábitos e costumes quotidianos, ou seja, os ritmos que povoam, que ocupam o tempo e o espaço são determinantes e muitas vezes perenes, isto é, arrebatadores.
Manuel Afonso Costa, in revista LER nº 159 - Primavera 2021

24 maio 2021

19 maio 2021

na volta do correio

11 maio 2021

ler da Primavera

20 abril 2021

regresso (12)

Amanhã, dia 21, será o dia do meu regresso às aulas presenciais. Até que enfim, alguma novidade nas rotinas destes dias sempre iguais. Neste semestre, uma das turmas tem 120 alunos inscritos e, se por acaso, todos eles quiserem assistir às aulas, não haverá espaço capaz de receber tantos alunos, mantendo as distâncias de segurança impostas pela pandemia. Estou apreensivo, mas estou com vontade de regressar à sala de aulas e largar esta dependência das plataformas online e o ensino à distância. Estou com vontade de conhecer pessoalmente os novos alunos e estou com saudade das interacções só possíveis nesse espaço físico, onde conseguimos perceber as diferentes sensibilidades, opiniões e percepções, face àquilo que estamos a partilhar - algo que online jamais conseguiremos. O dia começará bem cedo com um prévio teste à Covid-19 nas instalações do Instituto... também aqui estou apreensivo.

17 abril 2021

manteiga, pão e café (11)

Esta manhã, enquanto elaborava a lista dos alimentos e afins que precisava comprar, pensava e constatava sobre aquilo que, com a pandemia e seus confinamentos, mais passámos a consumir e que, não por acaso, significaram alteração de hábitos e de rotinas alimentares. Nunca como durante este último ano e qualquer coisa mais, se consumiram tantos alimentos, se cozinhou tanto e se usaram tão intensivamente os electrodomésticos de casa. Durante estes longos dias e meses, o pão, o café e, principalmente, a manteiga, ganharam um protagonismo, eu diria, excessivo, no entanto tão saboroso, que nem a consciência dos seus malefícios para a nossa saúde, me farão prescindir deles. Sou um básico. 

13 abril 2021

a democracia II

Urge distinguir valor e preço - porque o que tem mais valor não tem preço, pressupondo o desenvolvimento a noção qualitativa de criação de valor, porque a sociedade não pode basear-se num crescimento ilimitado. O cidadão contribuinte não pode apenas ser consumidor, tem de participar, de estar informado e de contribuir para que o Estado e sociedade se tornem fatores de inovação. (...) A legitimidade democrática obriga a considerar a participação, a representação, a transparência e a partilha solidária dos cidadãos.
(Guilherme d' Oliveira Martins, in jornal de Letras nº 1318, Abril 2021)

12 abril 2021

a democracia I

Qualquer elemento da democracia tomado isoladamente acaba por produzir algo que tem pouco que ver com aquilo que devíamos esperar dela. Não há nada de mal em votar, mas ter de votar tudo, continuamente ou em qualquer condição seria um verdadeiro pesadelo; aqueles que nos representam tÊm de prestar contas, mas sem uma margem de delegação não podiam exercer as suas funções; não há democracia sem momentos constituintes, mas a democracia não é uma sucessão de big bangs constituintes; a democracia tanto exige o respeito pelas minorias como o direito das maiorias a tomar as decisões; não pode prescindir do eleitorado, mas não deve ser só democracia eleitoral... A legitimação democrática não deve ser substituída por nenhum dos seus momentos concretos, já que a democracia é precisamente uma construção que pretende articular equilibradamente todos esses momentos.
(Daniel Innerarity, in jornal de Letras nº 1318, Abril 2021)

desconcertante (10)


Encontrei este post no twitter e fiquei paralisado a olhar para a fotografia. Penso no tanto que ela significa. Rodeados de tanta parafernália técnica capaz de nos salvar a vida e dar qualidade de vida, há momentos em que nem essa capacidade tecnológica e nem todo o conhecimento científico, conseguem dar-nos o essencial. Esta imagem é brutal e bem mereceria o reconhecimento global (um qualquer prémio...), pois a arte e o engenho também servem para o carinho, a empatia e a solidariedade. Nesse estertor em que uma vida se esvai, uma réstia de humanidade.

10 abril 2021

a descentralização e o poder local [parte 2]

(mais do que uma recensão, um exercício de leitura)


(continuação)

A descentralização assimétrica que se define pelo facto de haver diferenças nos poderes administrativos e políticos entre jurisdições, por exemplo a municípios diferentes correspondem atribuições, recursos e competências distintas, tendo em consideração as suas especificidades demográficas, territoriais e económicas. Acontece que a assimetria existe sempre, porque os territórios administrados localmente são necessariamente muito diferentes, mas nem sempre, pelo menos em Portugal, essa diversidade significa competências descentralizadas diferentes.
Este capítulo termina com uma referência ao caso das áreas metropolitanas, pois em Portugal, e também noutros países europeus, a fatia maior da produção encontra-se dependente destas áreas metropolitanas. São territórios que apresentam, como consequência da sua vitalidade, demografia e concentração, um conjunto de desafios e problemas muito específicos, nalguns casos, mais agudizados.
De seguida, no capítulo – “breve retrato do poder local em Portugal”, o autor faz uma abordagem diacrónica e dos principais momentos da existência do poder local português, afirmando o município português como um dos activos mais importantes da nossa identidade territorial. Por exemplo, a existência em Portugal de dois níveis autárquicos – a Câmara Municipal e a Junta de Freguesia, é uma particularidade singular na Europa. Um outro aspecto fundamental para a vida dos municípios foi e é o acesso aos fundos europeus de desenvolvimento regional, pois permitiu a mobilização dos instrumentos, incentivos e da vontade política, que geraram um ritmo admirável de investimentos públicos nos municípios. Relacionado com esta capacidade de captação de financiamentos, verificou-se a criação do sector empresarial público local, isto é, o incremento de empresas municipais e intermunicipais.
Como não poderia deixar de acontecer, dá-se destaque ao movimento criado pelo “Livro Verde para a Reforma da Administração Local”, que previa uma série de objectivos para alcançar de imediato, entre os quais o mais significativo seria a extinção e fusão de municípios, mas que o Governo e as autarquias abordaram de forma alternativa, reformando o mapa das freguesias e reforçando os mecanismos e incentivos para a cooperação intermunicipal. Esta atitude ou escolha revela uma cultura política nacional muito conservadora, que não convive bem com reformas radicais do sistema administrativo e político.
Por fim, neste capítulo, são apresentados os novos desafios do poder local: demografia, habitação, serviços básicos, planeamento, ambiente, economia regional, competitividade, coesão territorial e sustentabilidade. Assim como se reconhece que os municípios não têm sido capazes de dar resposta de forma equilibrada em todos o país, devido às tremendas assimetrias existentes. A abordagem ideal para estes novos desafios deverá ser uma abordagem integrada, isto é, que enfatizem os problemas de escala e de capacidade das autarquias. Embora a autonomia dos municípios tenha sido reforçada, não houve atribuições correspondentes no âmbito das receitas e das despesas, o que motiva o seguinte comentário do autor:

O nosso modelo de governação é aquilo que poderíamos apelidar de um incentivo à liberdade incapaz: as autarquias locais podem decidir, mas com poucos meios. (página 87)

O último capítulo – “Conclusão: o futuro – regionalização disfarçada ou verdadeira?”, inicia com uma questão muito pertinente: os municípios irão perder importância nas próximas décadas ou irão reforçar o seu papel?
O autor responde à sua própria questão, afirmando que, tendo em consideração que os municípios continuam a trabalhar com base num sistema com mais de quatro décadas, é perfeitamente compreensível que Portugal se empenhe, mais cedo ou mais tarde, numa reforma profunda do seu governo local. E que essa reforma deverá ser um processo integrado e não uma soma de políticas, incentivos e estratégias parcelares e isoladas.
Filipe Teles aponta duas estratégias para o processo reformador:
a) a regionalização, dando cumprimento ao previsto na constituição e com órgãos regionais eleitos estabeleceriam um nível de governo intermédio, com vantagens democráticas, de legitimidade, responsabilidade e com efeitos de escala;
b) o reforço gradual da capacidade e autonomia dos municípios, em que as responsabilidades com as despesas sejam acompanhadas da responsabilidade de financiamento local, para garantir os incentivos adequados para as autarquias locais;
Por outro lado, este processo reformador de descentralização deverá implicar uma abordagem integrada: território, escala de governação, competências de cada jurisdição, autonomia, articulação multinível, lei eleitoral, fiscalidade, funcionamento dos órgãos autárquicos, administração local e capacidade institucional.
Mais, segundo este ensaio, esta descentralização implicará derrotar um conjunto idiossincrasias: incomparável centralização, autonomia limitada, deficiente capacitação institucional e técnica, ingovernável diversidade, irracional multi-territorialização e sobreposição de entidades políticas e administrativas.
Este deverá ser, enfim, um processo longo, maduro, participado, interinstitucional, avaliado e testado, pois importa garantir a flexibilidade dos modelos de governação, permitindo a diversidade.
O ensaio termina com um pequeno texto denominado “os cinco dês da descentralização”: 
- Dar poderes e competências os níveis de governação mais próximos dos cidadãos;
- Dotar de capacidades organizacionais, técnicas, políticas, humanas e financeiras os níveis de governação de acordo com os poderes e competências recebidas;
- Diferenciar as funções e competências adequando-as às realidades territoriais, económicas, sociais e demográficas;
- Democratizar, responsabilizando e legitimando os órgãos de decisão;
- Descomplexificar a relação entre os níveis de governação, clarificando funções, competências e territórios de actuação.

A título de curiosidade, ou como complemento de informação, dizer que na mesma colecção “ensaios da fundação”, que actualmente conta já com 110 ensaios, podemos ainda encontrar outros títulos que se relacionam com este, ou dizem respeito ao mesmo ambiente ou contexto temático, a saber: nº 24 – Portugal: dívida pública e défice democrático; nº 37 – os investimentos públicos em Portugal; nº 38 - parcerias público-privadas; nº 50 – confiança nas instituições políticas; nº 79 – qualidade da democracia em Portugal; nº 92 – administração pública portuguesa; nº 106 – jobs for the boys? Nomeações para a administração pública.

a quem interessar...


08 abril 2021

a descentralização e o poder local [parte 1]

(mais do que uma recensão, um exercício de leitura)


A Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) publicou, no passado mês de Janeiro, na sua colecção “ensaios da fundação”, este pequeno ensaio de Filipe Teles (doutorado em Ciências Políticas, docente na Universidade de Aveiro e seu pró-reitor para o desenvolvimento regional e política de cidades), sobre os processos de descentralização e o poder local em Portugal (nº 109 da colecção). A descentralização, enquanto processo de transferência de competências, do Estado central para as autarquias, é um assunto muito debatido ao longo do tempo e tem sido um dos temas mais relevantes na ciência política contemporânea e nas políticas públicas, naquilo que é o papel dos governos e a proximidade destes para com os territórios e as comunidades. Por outro lado, é e será a marca de água de qualquer reforma da administração local em Portugal.Numa linguagem acessível e informativa, leitura para um par de horas, este ensaio apresenta e clarifica o funcionamento do poder local e as razões/motivações que conduzem a processos de descentralização. Apresenta-nos e esclarece-nos sobre os diferentes tipos ou formas de governação multinível, sobre a diversidade de alternativas disponíveis para o caso português, assim como expõe os argumentos a favor e contra a distribuição do poder. Trata-se de um ensaio aberto, reflexivo e seminal para os debates futuros, que, em última instância, procura responder à crucial questão: Portugal é, ou não, um país centralizado?

Uma leitura que possibilite viagens, mais informadas na nossa terra, um pouco mais além do que as do Garrett, que de Santarém não passou e a uns meros 80 km reduziu as viagens na sua terra. (in Prólogo, página 9)

Numa leitura mais fina e atenta, poderemos referir-nos à estrutura da obra que, dividida em seis partes ou capítulos, centra a sua atenção na dicotomia existente entre aquilo que são as percepções, mais ou menos consensuais e de senso comum, do forte centralismo promovido e perpetuado por Lisboa, e aquilo que foram, e são, as iniciativas legislativas, administrativas e executivas por parte dos diferentes governos e ministérios no esforço, ou pelo menos, nas tentativas de promover algum tipo de descentralização ao longo das últimas décadas.
No primeiro capítulo - “Centralismo: ficção ou realidade?”, o autor parte de uma analogia ficcionada para se referir à espacialização do poder, ou seja, à desproporção entre a administração local e a administração central naquilo que é a despesa pública, o número total de trabalhadores e os investimentos e receitas conseguidos. Socorrendo-se de várias estatísticas, desconstrói a ideia de que, por comparação a outros Estados europeus, o poder local em Portugal tem um conjunto de invejáveis competências, pois, por exemplo, quer no PIB de 2019 em que Portugal apresenta 5,6%, a média da OCDE é 9,2% e a média da UE é de 15,5%, quer na % da despesa pública efectuada a nível local em que Portugal apresenta 12,6%, a média da OCDE é de 28,7% e a média da UE é de 33,4%. Para além disto é preciso ter em consideração que, segundo dados da Eurostat e relativos ao período de 2015 a 2017, Portugal viu 84,2% do seu investimento público directo ser financiado pelos fundos de coesão... com estes fundos comunitários, os municípios portugueses são meros implementadores. Sem fundos, são insignificantes (página 18).
Outra forma de perceber a maior ou menor centralização em Portugal será através da presença e capacidade da administração pública nas diferentes regiões. É dado o exemplo, na área metropolitana de Lisboa reside 1/4 da população portuguesa, estão concentrados 2/3 do valor das compras totais da Administração Pública Central e destes 2/3 quase 80% são adjudicadas a empresas sediadas na mesma região. Por último, a centralização também poderá ser avaliada através das percepções daquilo que se entende por centro e periferia, pois estas designações são construção de auto e hétero-imagens do país... recurso de segurança, muitas vezes superioridade, transformado na prática cultural e política da desconfiança do centro face ao local. E, também, tantas vezes, do local face a si mesmo (página 22). A terminar este capítulo o autor diz-nos que a descentralização implica reformular, reformar e reinterpretar.
No capítulo seguinte – “significados de descentralização”, o autor qualifica o conceito de polissémico, na medida em que descentralização terá significados diferentes para pessoas diferentes. Determina a diferença entre descentralizações política e administrativa, apresentando vários exemplos a nível europeu e até mundial, atribuindo a instituições e agências internacionais de desenvolvimento, como o Banco Mundial, um papel enérgico no financiamento de processos de descentralização em todo o mundo. Elenca e caracteriza os diferentes tipos de descentralização, estabelecendo a fronteira entre esta e o conceito de desconcentração, para afirmar a descentralização como o resultado de um misto de medidas políticas, administrativas, fiscais e de desconcentração.
Na página 38 e seguintes, Filipe Teles apresenta os argumentos positivos e negativos para a descentralização:
a) De eficiência – da estrutura administrativa; efeitos da competição sub-nacional; fiscal;
b) De democracia – democratização; equilíbrios e fiscalização multinível; redução de conflito;
c) De políticas públicas – estabilidade de políticas públicas; inovação;
Assim como apresenta os riscos a evitar:
1º prevenir uma atribuição pouco clara de responsabilidades entre níveis de governo, pois este erro pode levar a maior despesa na prestação de serviços e a défices democráticos;
2º limitada capacidade de governos sub-nacionais para prestar serviços públicos que lhes possam ser atribuídos;
3º importa encontrar um equilíbrio entre a autonomia e a regulação, a fim de assegurar os benefícios da descentralização, sem disparidades regionais significativas;
No capítulo subsequente – “alternativas de reforma”, argumenta que os governos locais, com a sua maior proximidade aos cidadãos, estão mais bem equipados para responder aos anseios, preferências e necessidades das comunidades e que a descentralização é a óbvia consequência da própria democracia. São três as razões para serem os governos locais/regionais a prestarem os serviços públicos: proximidade, eficácia e flexibilidade. Para além disto, as reformas da governação local não são um fenómeno novo e estarão na agenda política da maioria dos países europeus desde a década de 60 do século passado. Neste processo de descentralização encontramos uma outra tendência indiscutível: a regionalização que, nas suas mais diversas formas, continua a afirmar-se nos processos de reforma e descentralização em vários países e continentes. Essa regionalização pode consubstanciar-se de variadas formas: desconcentração, cooperação intermunicipal, descentralização regional e regionalização política.

Nestas novas e híbridas formas de governar, as autoridades locais são parte de redes, com o envolvimento de empresas públicas, ou parcialmente públicas, e privadas na prestação de serviços públicos. (página 55)

Redes estas que significam cooperação intermunicipal, ou seja, a parceria para partilhar recursos, informação ou para fornecerem alguns serviços ou bens específicos. Esta cooperação pode ter um caracter voluntário (acordos pontuais de curto ou longo prazo, como recolha de lixos, saneamentos, etc.), ou ter um caracter obrigatório (força da lei, como por exemplo, as áreas metropolitanas e as Comunidades Inter-Municipais). São apresentadas as vantagens e as desvantagens destas cooperações intermunicipais.

(continua)

censos 2021

Acabei de receber, num envelope selado, o código e a password para poder responder ao inquérito online do Censos 2021, a partir de 19 de Abril. Em tempo de pandemia não calhou nada bem ser ano de recenseamento da população portuguesa, em todo o caso, é admirável o esforço do INE por tentar encontrar soluções alternativas à impossibilidade da visita presencial dos recenseadores. A solução encontrada com certeza é segura e fiável, embora não consiga chegar a uma parte considerável de portugueses. Sei, também, que isso está previsto e há soluções para quem não consiga responder online, como as Juntas de Freguesia, linha de apoio e até a visita de um recenseado.
Pela importância superlativa do recenseamento da população, que em Portugal acontece de 10 em 10 anos, ainda bem que se conseguiu solucionar tecnicamente os problemas que a pandemia trouxe. Irei responder e irei aguardar com expectativa e curiosidade os resultados deste novo retrato da nossa população.

07 abril 2021

mediascape: postigo (9)

Fui surpreendido pela notícia (TVI) de que a palavra mais pesquisada na internet, durante este período de confinamento, foi a palavra "postigo". Ainda que não seja totalmente uma surpresa, não deixa de ser inesperado, pois neste contexto quase exclusivamente dominado pela linguagem hermética e científica, das lógicas matemáticas e probabilidades estatísticas, dos epidemiologistas e intensivistas, eu esperaria que a escolha recaísse num qualquer palavrão técnico ou jargão associado à própria doença, à pandemia ou vírus. A explicação para tal facto, poderá estar na circunstância da palavra "postigo" ser um étimo antigo no nosso léxico, que entretanto perdeu a sua função social e, por isso, foi desaparecendo da oralidade e da escrita na nossa língua, sendo muito pouco usada na actualidade. Consequentemente, será também significado da ignorância crescente das novas gerações relativa à diversidade etimológica da língua portuguesa, assim como da riqueza arquitectónica vernacular portuguesa.

05 abril 2021

questão poveira: um olhar distanciado

...de artesanato estigmatizado poveiro a produto gourmet originário do México...

Por diversas razões, das quais apenas referirei o interesse estratégico-temporal, só agora consigo escrever sobre este paradigmático exemplo de difusão, em jeito de apropriação, cultural. Todo o processo despertou o meu interesse e mereceu-me alguma reflexão, pois é um caso peculiar, riquíssimo para a análise cultural, e até pedagógico, naquilo que poderá ser o seu desenvolvimento no tempo.
Desde logo, a dimensão económica que é quem provocou toda a celeuma. O momento em que uma estilista norte-americana resolve transformar uma camisola de cariz popular e de preço modesto, em produto de moda, com status, carisma e prestígio, com preço elevado, eu diria mesmo proibitivo, que logo passa a ser alvo da cobiça e desejo daqueles que seguem e consomem "marcas", "estilos" e "modas". Neste caso também encontramos todos os defeitos congénitos do tal (neo)capitalismo, que não consegue deixar de ser predador de territórios e devorador de culturas.
Depois, a dimensão identitária, pois importa saber: de quem é esta manifestação cultural?, trata-se de facto de um saber-fazer local?, existiu ou não usurpação identitária? Também, a dimensão cultural, naquilo que são os evidentes indícios de um difusionismo cultural, ou seja, ainda que neste caso por usurpação e não "inspiração", trata-se de mais um exemplo de como a cultura se difunde e vai adquirindo novos contornos, novos valores, novos protagonistas e se vai moldando consoante o contexto social, económico e cultural das comunidades de chegada.
Acima de tudo, todo este imbróglio é o resultado directo da profunda ignorância destas elites cosmopolitas que, ao mesmo tempo que habitam o mundo inteiro, não têm mundo, ou seja, não conhecem mais do que o centímetro e meio que rodeia os seus umbigos e para quem a Póvoa de Varzim, naturalmente, situa-se em nenhures a Sul do espectacular muro que separa o México dos EUA.
Ao contrário do que se apregoou por todo o lado, a narrativa indignada dos poveiros e, nomeadamente, dos seus representantes institucionais, nem sequer é verdadeira, pois em nenhum momento houve qualquer dano - simbólico ou efectivo - para a "cultura local", ou para os "poveiros", ou para a Póvoa de Varzim. Muito pelo contrário, como bem sabe o sr. Presidente da Câmara, esta publicidade e promoção gratuitas foi o melhor que poderia ter acontecido a este produto artesanal das suas gentes, que até então nem regionalmente era reconhecido e agora, de um dia para o outro, globalizou-se graças a uma estúpida e ignorante acção por parte do capital e das lógicas globalizantes que, com despeito e arrogância, se acham donos do mundo.
Aquilo que aconteceu nos últimos dias com a dita camisola, foi o momento cosmogónico de um novo caracter cultural, com ambições desmedidas e cujo valor patrimonial poderá e deverá ser questionado. Estivemos perante o surgimento de um novo processo de tentativa de patrimonialização. Desde o primeiro momento, a reacção dos responsáveis políticos locais e até nacionais, ao apropriarem-se deste elemento cultural como seu, como representativo de uma qualquer identidade local ou nacional, foi uma manifesta tentativa de institucionalização cultural. Dito de uma forma mais gráfica, foi uma parolada pegada. Não hesito sequer em afirmar que nos próximos tempos iremos testemunhar esforços - promoção, marketing, institucionalização e inventariação - para o reconhecimento e interesse da camisola poveira como património de interesse nacional. Será uma questão de tempo até encontrarmos essa camisola como candidata às mil e uma maravilhas de Portugal... aguardaremos com atenção e manifesto interesse.

03 abril 2021

mediascape: preocupante?! (8)

Chamou-me a atenção a notícia de hoje no jornal Público em que a OMS chama a atenção para a situação “preocupante” da pandemia na Europa. Preocupante? Mas que raio de adjectivação é esta! É uma vergonha aquilo que está a acontecer com a gestão e planeamento da compra e distribuição das vacinas nos países europeus. A incapacidade, a falta de coragem e de atitude, face à atitude inqualificável das farmacêuticas é paradigmática de uma Europa sem voz, sem política e sem poder perante os donos do dinheiro. Como foi possível investir tantos milhões de euros em contratos de fornecimento com as diversas farmacêuticas e não ter garantido contratualmente, não só as patentes das vacinas, como o certo e suficiente abastecimento? A União Europeia sempre foi muito burocrática e tecnocrata, mas na actualidade, para além disso, é governada por indivíduos subjugados e, muitas vezes, condicionados, por interesses heterogéneos e contraditórios aos interesses das populações dos países constituintes. A gestão da crise pandémica centralizada ao nível europeu é só mais um exemplo da desqualificação dos nossos representantes, maior parte deles nomeados politicamente e não eleitos pelos cidadãos, sempre mais preocupados em garantir o seu quinhão monetário e de prestígio, ou olhando apenas para o seu quintal. Um desastre para a Europa e para cada um dos seus cidadãos. Uma outra Europa tem que ser erguida dos escombros desta catástrofe.

02 abril 2021

o lúcido e o bruto

Convenci-me cedo de que me bastariam um amuleto e livros. O José Régio dizia que dez livros seriam suficientes para se ter completa noção do esplendor da Literatura universal. Dez livros separam o lúcido do bruto. Como se caminhasse para uma cabana, eu listei vezes sem conta dez livros que levaria para um exílio. Com eles, afinal, estaria como inteiro, de humanidade inteira contida nessas porções perfeitas, enfeitiçadas, de texto.
Valter Hugo Mãe, in Jornal de Letras nº 1317, Março 2021

23 março 2021

niilismo ecológico

A humanidade moderna, armada pela desmesura tecnocientífica, transformou-se na maior força plástica operante na Terra. Uma força tão irracional, primitiva e moralmente neutra como um furacão, um terramoto, ou um asteróide atraído pelo campo gravitacional do nosso planeta. Ninguém pensou a verdade do nosso tempo. Longe de ser um processo cultural milenar, associado à filosofia idealista e ao monoteísmo, o niilismo transformou-se no ponto de convergência da história humana.
A humanidade ocidental, que nas suas representações culturais e tecnológicas hoje se confunde com a humanidade inteira, transformou a religião do progresso na febril vertigem da destruição de uma Terra que lhe foi dada graciosamente no misterioso e lento processo de constituição natural do mundo a que chamamos nosso. Possuídos por um ímpeto imparável e uma arrogância cega dedicámo-nos, com afinco, a transformar o Jardim do Éden num deserto global. Trasportámos o nada, como valor, para o coração físico das coisas. O nosso niilismo de tipo novo, não se limita a ser um niilismo objectivo. É um niilismo ontológico. A história humana parece tender, inexoravelmente, para desaguar no grande estuário do Nada.
Viriato Soromenho-Marques, in Jornal de Letras nº 1316, Março 2021.

22 março 2021

a quem interessar...

21 março 2021

Et après?

- Que escrever agora? Seríeis ainda capazes de escrever alguma coisa?

- Escreve-se com o desejo, e eu não paro de desejar.

( Roland Barthes, 1975 )

20 março 2021

no meu quarto: uma distopia


Na passada 2ª feira, ao final da noite e enquanto aguardava que o sono chegasse, fui saltando de canal em canal, à procura de algo interessante para me entreter e embalar, quando dei neste estranho filme, que passava na RTP2. Não vi o seu início, mas cena que me prendeu a atenção foi a de um casal de jovens, num quarto exíguo dotado de casa-de-banho, que se percebia ser dele. O diálogo versava sobre a necessidade que ela teve de lavar os dentes naquele momento, e do peculiar pedido para que ele lhe emprestasse a sua escova, mas que ele recusou, justificando que a boca dela, tal como a de toda a gente, teria mais germes do que o anûs. Por isso, ofereceu-lhe uma escova nova. Entretanto, ela vai-se embora e não regressa à narrativa.
A história centra-se nele e na sua aventura solitária no contexto de uma distopia não explicada ou justificada durante o filme. In my room é um filme alemão, de 2018, realizado por Ulrich Kohler e exibido no Festival de Cannes desse mesmo ano. Eu adorei o filme e, esta tarde, acabei de o ver pela terceira vez, aproveitando as maravilhas da tecnologia que nos permitem andar para trás no tempo e recuar até sete dias atrás na programação dos diferentes canais. Ainda que estranho, distópico e cruel, senti-me muito atraído por aquela realidade, por aquele ambiente e pela perspectiva de uma solidão perene e definitiva.

15 março 2021

epitafista


Chegou-me agora às mãos, pela volta do correio, este retrato da Fundação Francisco Manuel dos Santos e como quem não sente, não é filho de boa gente, cá estou eu a reagir após uma leitura transversal deste pequeno texto. Também porque já por aqui ando há catorze anos, acompanhei a evolução deste fenómeno criativo e comunicacional e apesar de concordar com a ideia de que a blogosfera portuguesa já teve dias de maior fôlego e alegria, parece-me exagerada a declaração do seu ocaso. A Ágora dos tempos modernos, como a designa Filipe Barreto Costa, perdeu protagonismo e muitos dos seus arautos migraram para as redes sociais, principalmente para o Facebook ou para o Twitter, mas ainda assim, a blogosfera manifesta uma resiliência singular. Naquilo que me diz respeito, mantenho este meu recanto com a vivacidade possível, ou seja, dependente dos meus humores e da minha disponibilidade.
Curioso, este texto soa demasiado a epitáfio.

14 março 2021

um ano de confinamento (7)

Assiná-lo hoje, dia 14 de Março de 2021, um ano de confinamento motivado pela pandemia que teima em manter-nos neste isolamento físico forçado e afastados do convívio daqueles com quem partilhávamos a nossa vida. Nesse dia partilhei aqui o primeiro de vários textos que me propus escrever sobre essa nova e inesperada experiência individual, familiar e social. Chamei-lhe "abertura" e nessas poucas linhas de texto manifestei o caldo de sentimentos e sensações que me assaltavam nesse momento. Passado um ano desde esse dia, na verdade, muitos desses sentimentos permanecem e as incertezas quanto ao que nos espera são demasiadas e, por vezes, angustiantes. No entretanto, ao longo destes 365 dias, aquilo que mais custou foi a gestão das emoções e o esforço por manter os equilíbrios entre 4 pessoas a viver 24 sobre 24 horas num espaço limitado. Houve um pouco de tudo - disputas, zangas, brincadeiras, berros, birras e afins, mas não me posso queixar, pois estamos todos bem de saúde, física e mental, permanecemos família e continuamos a acreditar e a fazer planos para o momento seguinte à pandemia. É claro que pudemos sair daqui, esticar as pernas, espairecer e houve alguns momentos muito bons, passeios e visitas a lugares magníficos.
Hoje, ainda assim, perspectivando este último ano das nossas vidas, não considero que tenha sido um tempo desperdiçado, pois serviu-me para conseguir dar resposta a algumas solicitações, projectos e ideias que se vinham a acumular e perpetuar no fundo das minhas alforges. Para além disso, julgo que esta experiência individual e colectiva servirá de exemplo para o resto da vida de cada um de nós. Jamais esqueceremos o ano de 2020 e aquilo que nos aconteceu.
Por aqui continuaremos, apesar dos movimentos impostos e sucessivos de confinamentos e desconfinamentos. Pacientes, aguardaremos a nossa vez para sermos vacinados e desejamos que possamos chegar ao fim deste processo são e salvos.

11 março 2021

desturistificar o património: alterar paradigmas

Para início de conversa, podemos lançar a questão: a quem pertence a cultura e os seus patrimónios? Pois bem, ainda que sem certezas, poderei responder à questão, afirmando o património cultural como relacional, dinâmico e interactivo, neste mundo cada vez mais balizado pelas interseções globalizantes. Também por isso, a cultura e o património cultural transformaram-se numa arena de poderes – político, económico, social, financeiro, simbólico – na qual os diferentes agentes buscam a dominação, ou seja, ambicionam alcançar o poder da hegemonia.
A recente e crescente valorização do património cultural foi manifesta e perceptível aos olhos de todos nós, mas essa evidência trouxe consigo um conjunto de ambivalências que interessa não negligenciar ou desvalorizar:
a) A industrialização da produção daquilo que era artesanal;
b) A massificação dos consumos e dos turismos;
c) A mercantilização dos patrimónios, ou seja, a sua transformação em valor monetário e mercantil;
d) A cristalização da memória, naquilo que foi/é a disseminação de museus e de centros interpretativos;
e) A ressignificação ontológica do património edificado;
Num tom mais confessional, não tenho qualquer pudor em reconhecer o meu desagrado e até desconforto com o paradigma vigente até ao evento da pandemia. Aquilo que assistimos até há bem pouco tempo foi a completa e perversa transformação do património de bem cultural a bem turístico, numa espécie de rapto patrimonial em que o refém apenas pode existir para servir ao turismo. Situação possível, também, pelas referidas ambivalências e que significou uma autêntica adulteração dos caracteres culturais e uma intensa predação nos diferentes territórios, com especial incidência nas grandes cidades, como Lisboa e Porto.
Pelo que até aqui está escrito, poderão deduzir alguma má vontade para com o sector do turismo, mas não é esse o móbil deste exercício. Por outro lado, não estou particularmente optimista ou esperançoso, mas este intervalo extraordinário à escala global deveria permitir uma reflexão sobre todo este universo que, com implicações a vários níveis nas nossas vidas, carece de ponderação, reestruturação e redimensionamento. Por outras palavras, e arriscando uma sugestão, deveríamos apostar num novo paradigma (emergente) para o património cultural, no qual este se pudesse libertar do jugo explorador e destruidor do turismo. Digo, desturistifiquemos o nosso património.
Tentando ilustrar aquilo que quis significar nestas linhas, termino com um exemplo que todos, ou quase todos nós, conhecemos: A livraria Lello no Porto que, de livraria de referência, com um vasto catálogo temático, por artes “harrypoteanas”, se transformou num altar de peregrinação turística, visitada anualmente por milhares de visitantes, disponíveis para esperarem nas enormes filas na bilheteira e, depois, à entrada da “livraria”, apenas e só pela experiência pós-moderna do consumo efémero, da selfie, ou do Tik-Tok. A cidade perdeu uma livraria, um lugar aprazível e tranquilo, onde se podia ir e ficar. Eu era cliente habitual e, pelas mesmas artes feiticeiras do universo Hogwarts, deixei de o ser e nunca mais lá voltei.
Este exemplo servirá também para reflectir sobre aquilo que sucederá no futuro próximo, depois da pandemia: se não há qualquer dúvida de que a Lello irá sobreviver e reabrir as suas portas, resta saber que estratégia irá adoptar para compensar a mais que previsível lenta recuperação do turismo de massas e globalizado, que tanto beneficiaram o seu negócio. Às tantas, quererá voltar a vender livros aos portuenses!?...

Adenda: Na mesma cidade, a pandemia revelou mais duas situações análogas, ainda que com diferentes dimensões: o café Magestic e o café Guarany.

[ Escrito a 8 de Março de 2021 ]
Publicado também em www.planeamentoterritorial.blogspot.com

21 fevereiro 2021

memórias de Adriano


Livro que me acompanhou nalguns momentos das últimas semanas, esta biografia ficcionada de Públio Élio Adriano, imperador romano, que viveu entre o século I e II, cujo reinado durou entre o ano 117 e o dia da sua morte em 138, foi escrita por Marguerite Yourcenar (1903-1987) e acabou por se transformar num best-seller, assim como ser o catalisador para o interesse da contemporaneidade por este quase desconhecido imperador romano.
Estas memórias têm a forma de carta escrita pelo já velho imperador ao seu filho adoptivo Marco Aurélio, que lhe sucederá no trono de Roma. Através desta longa carta podemos conhecer o perfil físico e psicológico de Adriano, certas personagens que com ele conviveram e também alguns dos episódios da sua vida e reinado, que se caracterizou por uma certa pacificação do império, por uma sociedade romana mais justa, com maior respeito pelas mulheres e pelos escravos. Acima de tudo, ficamos a conhecer o gosto pela cultura, pelas artes e pela arquitectura, desta sábia figura que foi Adriano.

09 fevereiro 2021

vacinação e ideologia (6)

Hoje no jornal Público, Tiago Mota Saraiva escreve sobre a estratégia da UE no desenvolvimento e distribuição das vacinas para a Covid-19. Um processo obscuro e que falhou completamente. Partilho algumas ideias desse artigo...

Pelo que se vai sabendo, a logística montada permitiria um processo de vacinação muito mais acelerado; o problema é haver muitas incertezas sobre a chegada das vacinas num processo que está a ser gerido, ideologicamente, pela Comissão Europeia.
A estratégia da UE foi a do costume. Estabeleceu parcerias público-privado (PPP) entre a Comissão Europeia e seis multinacionais farmacêuticas, com contratos opacos e em que o Estado assume o grosso das despesas e riscos. Apesar de se tratar de milhões de euros públicos, a maior parte do seu clausulado é secreto.
O declarado objectivo da Comissão Europeia de ter 70% da população adulta vacinada até ao fim do Verão parece difícil de concretizar, pois desconfia-se que algumas das multinacionais farmacêuticas estarão a desviar grande parte da sua produção para quem oferece mais dinheiro pela vacina, designadamente, Israel, EUA e Reino Unido.
Isto, senhoras e senhores, é o capitalismo a funcionar. Dinheiros públicos a financiar e assumir todos os riscos dos laboratórios privados em vez de aumentarem os recursos das instituições públicas igualmente capazes de produzir vacinas. E, depois de haver vacina, o mercado livre e a especulação a tomar conta das operações. O paraíso do liberalismo!

08 fevereiro 2021

aulas à distância (5)

Recomeçaram hoje as aulas à distância para o meu filho e, claro, também para mim. Quase 90 minutos de aula síncrona com a Professora, mais o tempo de realizar as tarefas (tpc's) em tempo assíncrono. As horas do meu dia já eram organizadas pelos ritmos dos miúdos e das rotinas caseiras, mas agora passarei a regime de horário obrigatório, enquanto assistente do meu filho que frequenta a 4ª classe. Tudo bem, vamos a isso.

28 janeiro 2021

cadafalso (4)

É impressionante a vontade, a avidez e a ligeireza com que jornalistas, comentadores, líderes partidários, deputados, redes sociais e outras que tais, se dedicam a sentenciar à morte política ministros que, directa ou indirectamente, lidam e decidem neste contexto extraordinário e novo que todos experimentamos. Ouvindo-os e lendo-os até parece fácil gerir uma situação deste género, mas não é e chega a ser cruel e desumano aquilo que algumas luminárias (estou a referir-me aos bastonários dos enfermeiros e médicos, aos líderes partidários de alguma oposição, aos representantes sindicais e associativos de muitos sectores) têm vindo a público afirmar, mentindo. O problema que se verificou recentemente no Hospital de Amadora-Sintra é paradigmático desta perseguição e não se olham aos meios para atingirem os seus fins - cobardes e sectários. Como é fácil enviar para o cadafalso quem tem dado a cara pela resposta nacional à pandemia.

25 janeiro 2021

LER

Vamos LER.

24 janeiro 2021

14 anos de vida

Neste dia assinalam-se 14 anos desde o primeiro dia deste meu lugar de escrita. Continua a ser o meu recanto, exclusivo e egoísta, para partilhar com quem o visita aquilo que vai acontecendo no mundo e me desperta os sentidos, assim como aquilo que as deambulações da vida me vão dando a experimentar. Neste último ano, em grande medida devido ao primeiro confinamento, foi o ano em que escrevi mais textos desde a sua fundação. Não que seja uma preocupação o número de posts, mas uma relativa frequência importa para manter alguma dinâmica e actualidade. O compromisso mantém-se para os próximos meses, naquilo que for a minha disponibilidade e disposição. Assim, muito obrigado àqueles que me visitam e, por vezes, comentam. Serão sempre bem vindos.

22 janeiro 2021

declaração de voto

Quase como uma adenda a um outro texto sobre as eleições presidenciais, enquanto cidadão preocupado com a saúde e vigor da nossa democracia, não posso deixar de exercer o meu dever de votar. Assim, no próximo Domingo, dia 24, irei votar e, em consciência, o meu voto tem como principal objectivo derrotar o candidato da extrema-direita, depois e idealmente, gostaria que acontecesse uma segunda volta entre Marcelo Rebelo de Sousa e Ana Gomes. Em todo o caso, e independentemente, dos resultados possíveis, o meu voto irá para a candidata Marisa Matias que, apesar de uma campanha eleitoral fraca, apagada e sem ânimo, é quem me garante uma perspectiva de sociedade e democracia institucionalmente mais justa e equilibrada. O meu voto é em Marisa Matias.

Joe Biden e o crápula

Já está. O ignóbil saiu pela porta pequena da Casa Branca e foi para o seu feudo tomar conta dos porcos e galinhas. Joe Biden tomou posse, num acto de simplicidade democrática e, ao assistir ao evento, a memória destes últimos quatro anos mais pareciam um sonho mau. Não foi um sonho, mas uma realidade má, que felizmente os americanos puseram cobro. Não tenho grande ilusões face à nova administração, mas pelo menos, ficou o alívio e a satisfação de a democracia ter vencido a mentira, a distopia e, acima de tudo, o crápula desqualificado e toda a seita de negacionistas, conservadores e radicais supremacionistas.
Ainda assim, passadas pouco mais de 48 horas sobre a tomada de posse, é bom saber que de imediato Joe Biden reverteu um conjunto de medidas-bandeira da anterior administração e do chamado "trumpismo". Com a assinatura de vários decretos, o novo presidente reverteu, por exemplo:

- EUA regressam ao Acordo de Paris (combate às alterações climáticas);
- Destruiu o muro em construção entre os EUA e o México;
- Impôs a obrigatoriedade do uso de máscaras e distanciamento social em todos os espaços e instituições federais (protecção e combate à Covid-19);
- Cancelou o estado de emergência até então em vigor;
- revogação das autorizações para a construção do oleoduto Keystone XL; o regresso dos limites às emissões poluentes na indústria automóvel; ou a suspensão das concessões para a exploração de petróleo e gás no Refú- gio Nacional de Vida Selvagem do Árctico;
- Suspendeu por 100 dias o repatriamento de imigrantes considerados ilegais;
- pôs fim à proibição de entrada a cidadãos de países de maioria muçulmana;

Estes foram alguns dos decretos que Joe Biden assinou nas primeiras horas do seu mandato, destruindo de uma só vez o completo e perfeito disparate que o seu antecessor foi produzindo ao longo do seu mandato. Ainda há esperança para a democracia e para o mundo.

campanha eleitoral

Termina hoje a campanha eleitoral para as presidenciais, que vão acontecer no próximo Domingo, e para mim foi como se não tivesse existido. Aliás, ela não existiu. Estive completamente ausente, soube de um ou outro episódio, mas não quis, de todo, acompanhar aquilo que considero ter sido uma farsa. Eu percebo a importância das eleições para a nossa democracia e para a nossa república, mas face ao estado em que está o país, não havia, de facto não houve, condições para a sua realização. Aquilo que aconteceu não foi campanha eleitoral, foi a imposição da vontade dos partidos em garantir a sua dependência do Estado (se não estou em erro, só os candidatos que obtiverem 5% ou mais, terão direito a receber um valor por cada voto). Nenhum deles pôs sequer a hipótese de prescindir desse financiamento. A Assembleia da República deveria, a seu tempo, ter precavido esta possibilidade de calamidade e encontrar cenários alternativos para estas eleições.
As instituições em Portugal existem e estão em normal funcionamento e, por isso, perfeitamente capazes de se adaptar às contingências impostas pela pandemia e o estado de calamidade em que o país se encontra. A nossa democracia enfrenta vários ataques, dos quais se destaca, como todos sabemos, a extrema-direita fascista. Uma das duas razões que me vão fazer ir votar no Domingo, é combater essa extrema-direita, derrotar o embrião de proto-fascista e esperar que muitos portugueses assim também façam, numa esperança de que a abstenção não seja assim tão elevada como se prevê, pois eleger um presidente com apenas cerca de 20% será fragilizar as nossas instituições e a nossa democracia. 
Vamos votar!

escolas fechadas (3)

Finalmente o governo mandou para casa os estudantes de todos os níveis de ensino - das creches às universidades. Fê-lo por um período de apenas 15 dias, mas ninguém acreditará que os miúdos possam regressar à escola daqui a duas semanas. Em todo o caso, esta interrupção do ano lectivo não implicará a substituição das aulas presenciais por aulas online e à distância, e ainda bem, pois a experiência do ano lectivo anterior foi brutal (tempo, atenção, dedicação, desgaste) para a maioria das famílias e, apesar do esforço de todos e de um relativo sucesso nas logísticas técnicas, o rendimento escolar e as aprendizagens foram uma desgraça, o que só veio demonstrar a importância da escola e de como a sua frequência é insubstituível. Este período de interregno, seja de 15 dias ou 60 dias, poderá ser recuperado e reposto durante os meses das férias grandes. Nunca percebi a resistência em alterar o calendário escolar nos meses de Verão. Se estamos a viver um período excepcional, porque é que as crianças não poderão, excepcionalmente, ter aulas em Julho e em Agosto? Importa agora é resolver a catástrofe de saúde pública que agora vivemos, derrotar o bicho e tratar das suas vítimas, o resto há-de resolver-se.

19 janeiro 2021

primeiro estranha-se, depois entranha-se (2)

Morreram 218 portugueses vítimas de Covid-19 nas últimas 24 horas. Aparentemente tudo continua igual e já não há reacção, indignação ou estupefacção, pois temos vindo a entranhar o crescimento descontrolado da doença. Impressionante a hesitação e indecisão dos nossos responsáveis políticos. Não sei, não entendo, quais serão as dúvidas de que a situação é de catástrofe nacional e que, apesar do SNS ainda resistir, não há capacidade de controle e rastreio dos focos da doença, nem como ela se transmite. Por que raio é que o país ainda não está totalmente em lockdown? Que resistências e pressões estarão a ser feitas para que isso não aconteça?
Por cada dia que passa sem se fechar o país, o drama será maior e a economia mais se ressentirá. Fechem esta merda e obriguem as pessoas a ficar em casa. Literalmente.

14 janeiro 2021

the silence

compras (1)


Faltam poucas horas para o novo recolher obrigatório e, por isso, tratei de ir às compras dos bens essenciais que poderão escassear cá por casa. Livros e café, ou café e livros. É-me indiferente a ordem, mas não podem faltar-me. Ao passar no quiosque encontrei o mais recente número do jornal de Letras e também o trouxe comigo. Enfim, vamos lá recolher, regressar às rotinas que julgámos não ter que repetir, na expectativa que seja por um breve espaço de tempo e só mais esta vez.

11 janeiro 2021

vésperas (0)

Estamos nas vésperas de novo confinamento geral e, por isso, vamos-nos preparando física, psicológica e logisticamente para esse recolher forçado. Ao contrário do que aconteceu em Março do ano passado, já não é algo desconhecido, já não irá haver surpresas para a maioria das pessoas, mas em simultâneo será um novo período muito difícil para muita gente, muitas famílias e muitas empresas.
No meu (nosso) caso, estou mais do que preparado para mergulhar nos espaços de minha casa, apesar de, na realidade, é a situação em que me já encontro desde Março de 2020. Não sabemos ainda quais as restrições deste novo confinamento geral, mas a crer nas palavras do Primeiro Ministro, será idêntico ao anterior, com a diferença das escolas do ensino básico e, talvez, secundário, que por enquanto se manterão abertas e em funcionamento.
Naquilo que diz respeito a esta minha escrivaninha, cá estou eu a dar início a uma nova temporada da série "enclausurado". A partir deste post (0) irei partilhar algumas das sensações, percepções e sentimentos relativos a esta experiência, sempre com a esperança de que este período possa ser mais breve do que longo ou demorado.

10 janeiro 2021

luvas

Pela primeira vez na vida comprei luvas. O frio que assaltou o país provocou-me dores no esqueleto inteiro, com particular incidência nas mãos e nos pés. O que sinto nas mãos não é frio, nem fico com elas geladas, o que sinto é uma dor intensa nos ossos e suas articulações. Caramba, enquanto jovem nunca me queixei de frio ou destas maleitas, mas envelhecer também é isto. Agora, uso luvas.

07 janeiro 2021

...e agora 2021

É necessário fazer a transição para um novo paradigma cultural caracterizado essencialmente por promover os valores sociais e privilegiar a regeneração em lugar do interesse próprio.
Filipe Duarte Santos, in Jornal de Letras nº 1311, Janeiro 2021.

mediascape: distopia

As imagens que nos chegaram ontem de Washington são de tal forma irreais que não consigo encontrar melhor exemplo de uma distopia na contemporaneidade. Aquela que se afirma como a maior democracia do mundo, o país de todas as liberdades e oportunidades, afinal tem pés de barro. Como foi possível um bando de energúmenos invadirem e vandalizarem o coração da federação democrática dos EUA? As imagens que vimos não foram bonitas e são significativas do estado de grande fragilidade em que as instituições americanas se encontram, obra e graça do desqualificado presidente Trump que, em apenas quatro anos, conseguiu destruir alguns dos pilares democráticos que jamais imaginamos ser possível pôr em causa. Enfim, acredito que a democracia há-de sobreviver a este caos institucional e que os EUA regressarão a uma determinada normalidade. Donald Trump vai querer arrastar o país para um caos insuportável até ser despejado da Casa Branca, por isso, tudo o que possa vir a acontecer até lá não poderá ser surpresa para ninguém. Estamos a assistir ao estertor de um crápula ignóbil.

02 janeiro 2021

mapear pessoas

Fui deixar alguns livros no armário das camisas. Gosto de vestir uma camisa e ver como inusitadamente ali fica um exemplar bonito da "Metamorfose" de Kafka. Modo de me reenviar aos 15 anos de idade e me lembrar da razão de ter desatado a correr atrás do que sou hoje. Gosto de pensar que um livro basta para mapear cem pessoas que amo ou amei. E, com esse mapa, entender melhor do que nunca por onde passar para me manter mais dentro do mesmo sonho que já vem da vida inteira. Para 2021, mapas assim. Mais mapas assim.
Valter Hugo Mãe, in Jornal de Letras nº 1311 - Janeiro 2021

01 janeiro 2021

Carlos do Carmo


Acordamos para este novo ano com a notícia do desaparecimento de Carlos do Carmo, uma das grandes vozes portuguesas. Apesar de não conseguir apreciar o género musical, não gosto de Fado (de nenhuma das suas variáveis), reconheço na sua voz timbre, clareza e melodia, numa qualidade difícil de igualar.

31 dezembro 2020

passagem de ano

Desde que me lembro, quer dizer, desde que sou gente e tenho memória, a passagem de ano foi sempre em comemoração familiar ou de amizade. Nos últimos vinte anos, pelo menos, esta noite foi quase sempre passada em Bragança e em família, e será preciso recuar até ao século XX para assinalar noites de réveillon em fulia ou festa. Em todo o caso, convém declarar que sempre preferi ambientes mais recatados, mais intimistas e mais aconchegados, para me despedir do ano velho e receber o novo. Desta vez, hoje, e por imposição (que não só aceito, como subscrevo) tudo será diferente: não haverá convívio com amigos ou família alargada, não haverá grandes cozinhados, nem doçarias; seremos só três, das quatro pessoas do agregado e o menu dita que a festa será simples, mas apetitosa e bem bebida. Venha 2021 que 2020 não deixará saudades.

figura do ano


Quando estamos a poucas horas do fim deste miserável ano, é de inteira justiça destacar como figura do ano o nosso Serviço Nacional de Saúde (SNS), não só pela sua qualidade, como também por ter a capacidade e resiliência no combate à pandemia. Foi a figura central no combate à COVID-19. Desde a sua criação nunca tinha sido confrontado com tamanho desafio e os resultados só não são melhores, porque durante os últimos anos (décadas) os diferentes governos deste país, preferiram investir o dinheiro público na lógica das parcerias público-privadas na saúde, do que no reforço do SNS, naquilo que são os recursos humanos, os meios, as infra-estruturas e os equipamentos necessários para uma melhor e maior capacidade de resposta aos problemas de saúde dos portugueses. Esperemos que esta experiência possa ser motivo para uma nova atitude daqueles que mandam para com a Saúde Pública em Portugal. Nada contra os privados, mas se são privados devem actuar e sujeitar-se às regras de mercado. Acredito, quero e desejo, (n)um SNS cada vez mais eficiente, mais próximo e com maior capacidade para nos tratar e cuidar de todos nós. Viva o SNS!

ano revolucionário e inesquecível

Termina hoje 2020, o ano horribilis para a grande maioria de nós. Foi de facto um ano difícil, mas ao perspectivá-lo considero que, acima de tudo, foi um ano, física e psicologicamente, exigente. Ao mesmo tempo, e se o analisarmos com alguma isenção das nossas experiências pessoais e particulares, vamos percebê-lo como um ano revolucionário. Passo a explicar: vimos as nossas vidas, sociais, profissionais, pessoais e até íntimas, alteradas, como que num sobressalto sem aviso prévio, não por motivações políticas ou militares, mas por força da natureza humana e suas fraquezas ou debilidades. Este vírus atacou-nos precisamente no aspecto que mais caracteriza a nossa espécie, a sociabilização, e nós tivemos que nos habituar, sob o poder dessa força invisível, a abandonar ou, no mínimo, a limitar as nossas interacções, os nossos contactos físicos e de proximidade. Isto, apesar de aparentemente banal, foi significativo e ainda será cedo para percebermos o seu impacto nas nossas vidas e no futuro da nossa espécie. Esperemos para perceber que alterações paradigmáticas iremos testemunhar. 2020 será um ano inesquecível na biografia de cada um de nós (mesmo na daqueles que faleceram por causa deste vírus). Será também um ano riquíssimo para a futura produção literária, para a investigação científica - uma palavra de especial reconhecimento para a Ciência, que teve em 2020 um dos seus momentos de maior relevância e valorização - e para a análise social que se vai realizar. Durante as próximas décadas serão inúmeros os estudos, os prémios e os reconhecimentos pelo trabalho realizado durante esta pandemia. Pessoalmente, ainda que haja anos que recorde com maior ou menor intensidade, não tenho dúvida que 2020 será o ano, ou melhor (pois não sei o que me espera), será um dos anos da minha vida e que marcará indelevelmente a minha existência.

27 dezembro 2020

dia D

Hoje é o dia D da vacinação para a Covid-19 em Portugal. Um dia assinalável e, esperamos, memorável. Irá ser um processo lento e moroso, mas importa salientar o esforço e a dedicação de todos quantos estiveram nesta luta desigual desde o início. Está o mundo eufórico com este novo momento que marca o princípio do fim desta terrível pandemia e assinala igualmente um feito jamais alcançado de produção de uma vacina em tão curto espaço de tempo. É de facto incrível o que a Ciência pode fazer pelo Ser Humano. É em momentos como este, de afirmação, que deveríamos todos reflectir sobre a importância da Ciência na qualidade de vida que usufruímos e aproveitarmos para contribuir para derrubar todos os mitos, preconceitos e equívocos que teimam a sobreviver em muitas cabeças (pouco) pensantes. É uma vitória da Razão sobre a ignorância e sobre o dogma. Viva a Ciência.


Nesta fotografia, Marta Temido, a Ministra da Saúde, apresenta publicamente a vacina da Pfeizer que ontem chegaram, pela primeira vez, a Portugal. Um momento histórico e se há pessoa que merecerá todo o reconhecimento e gratidão pelo que fez ao longo de todo este tempo é ela. Muito bem.

22 dezembro 2020

o diário

O diário é a memória quase imediata do quotidiano.
Maria António Oliveira, in Granta nº 6, 2020:34

21 dezembro 2020

mediascape: barbárie


A notícia é do jornal Público e encontrei-a no Twitter. Foi lá que desde logo reagi, perante o horror que os meus olhos viam e liam. Confesso que, num primeiro momento, não acreditei, pensei tratar-se de uma falsa notícia ou uma brincadeira, mas depois a realidade ganhou esta tremenda dimensão e eu fiquei incrédulo. Como é possível tamanha carnificina? Quem promoveu? Quem autorizou? Como é possível?
Esta é uma daquelas coisas que eu jamais irei entender: o prazer de matar animais. A criação de zonas de caça, legais e autorizadas pelo Estado português, é uma licença para este tipo de cenário. Eventos como as montarias são o enquadramento legal que possibilita esta mortandade. Nunca entendi a lógica destes crimes organizados contra a natureza, que se repetem por todo o território nacional. Enquanto autarca em Bragança, questionei várias vezes a autorização e organização deste tipo de eventos, muito populares entre os autarcas locais e representantes associativos, tendo sido inclusive motivo de alguma chacota e desprezo. Enquanto cidadão mantenho a minha afirmação: se eu mandasse proibiria a caça e a pesca. O único evento que estas bestas poderiam organizar seria num recinto fechado, cada um com a sua arma, até um deles conseguir caçar todos os outros. Seria muito divertido e propenso a sorrisos, trofeus e selfies no final. Assim, bem depressa teríamos um mundo muito melhor.

frustração revestida de mágoa

Carrego nova mágoa, que se concretizou ou efectivou nos últimos dias. Há algum tempo que sei tratar-se de uma frustração pessoal, íntima e intransmissível, que se vinha a adiar sine die, e que de nada valeu tentar projectar nos meus filhos essa vontade e esse gosto. Esta mágoa resume-se e explica-se pela rejeição do meu filho mais novo em continuar o estudo de guitarra e formação musical.

16 dezembro 2020

mediascape: predisposição

Hoje, no jornal Público, e a propósito das eleições presidenciais e da situação pandémica que vivemos, é apresentada uma sondagem para o Público e RTP na qual são incluídos alguns indicadores muito reveladores das nossas percepções da realidade que experimentamos actualmente. Em relação aos números ou percentagens dos candidatos, pouco ou nada há a dizer ou comentar. Agora, em relação à pandemia não posso deixar de assinalar os dados agora conhecidos:


No primeiro gráfico, relativo à vacinação é evidente uma maioria clara de pessoas disponíveis e com vontade de serem vacinados, o que significa que felizmente e ao contrário daquilo que alguma, pouca inteligência nacional, quer fazer crer, já para não falar dos cavaleiros do apocalipse e das teorias da conspiração que populam pelas nacionais redes sociais.
Em relação ao segundo gráfico, ainda mais conclusivo e evidente, não restam dúvidas que os portugueses concordam com as medidas que a DGS e o Governo têm ditado para o país. Isto também contrariando muita da opinião publicada nos últimos meses, por aqueles que acham desde o início da pandemia que os portugueses estavam contra os sucessivos estados de emergência decretados. Pois bem, eu julgo que a maioria dos portugueses, tal como eu, não querem ser infectados pelo Coronavirus, nem querem correr riscos desnecessários. Ainda que por aí andem umas bestas irresponsáveis e negacionistas, pedem-nos para ficar em casa, só temos é que em casa ficar. É simples.
No terceiro e último gráfico, verificamos uma relativa contradição face ao segundo gráfico. Se por um lado a esmagadora maioria concorda com os estados de emergência, uma relativa parte dessa maioria não quer maiores restrições no Natal e concorda com a livre circulação entre concelhos e os habituais encontros familiares. Preocupante, digo eu.
Dia 18 de Dezembro, o Primeiro Ministro irá dirigir-se ao país para comunicar aquilo que poderemos ou não fazer durante o período das festividades natalícias. Espero que a razão não seja abandonada e que não haja cedência aos apelos mais emocionais e afectivos. Aquilo que não precisamos de todo agora é da "demissão" dos nossos responsáveis pelo combate à pandemia. Mais do que nunca, para não morrermos na praia. 

estranha forma de reagir...


Inserido num esforço de leituras sobre os tempos de agora, a pandemia e aquilo que poderemos vir a experimentar nos próximos tempos, comprei um conjunto de livros de alguns autores que publicaram recentemente os seus pensamentos, ideias e juízos sobre o assunto. Também porque é o mais curto e de fácil leitura, li nas últimas horas este pequeno ensaio de Bernard-Henri Lévi, filósofo e escritor francês. Para além de um diagnostico da situação, ou mundo, ou ainda vida, pré-Covid, com o qual eu consigo concordar, a leitura que faz de toda a situação experimentada nos quatro cantos do mundo e, em particular, no mundo ocidental é bastante caustica e pessimista. Contesta as teorias e medidas securitárias, contesta os que querem aproveitar o vírus para destruir a nossa civilização e o nosso modo de vida, enquanto tiranos da obediência que, a coberto da urgência sanitária e do delírio higienista, querem estrangular a liberdade dos cidadãos.
Este texto de Lévi foi escrito, tal como o próprio admite, algures entre finais de Abril e o mês de Maio de 2020, altura em começamos a "desconfinar", o que de certa forma, lido deste mês de Dezembro de 2020, me pareça uma análise imperfeita ou incompleta. Talvez neste momento o autor tenha já uma outra perspectiva daquilo que transformou o mundo numa prisão de alta segurança, panóptica e paranóica, de saúde e higiene pública. Seria interessante conhecer a evolução da sua opinião. De resto, compreendo a sua perspectiva, mas ainda assim sou dos que privilegia a salvaguarda da saúde dos indivíduos em detrimento de qualquer lógica ou princípio económico-financeiro. Haverá muito tempo para nos dedicarmos a esse esforço.

elegia do livro

A civilização que inventou o livro tal como até aqui o conhecemos, inventou também as condições requeridas para a sua leitura e que essas nos moldaram antropologicamente durante séculos e constituem um património cultural que precisamos de preservar.
(...)
O Património humano, cultural e espiritual, que o livro representa é, por isso, incalculável. O que o livro põe em jogo é muito mais do que o livro.
(...)
Os livros não nos tornam só leitores, tornam-nos também cidadãos.
(...)
Protejamos o património cultural que os livros representam. Eles são mapas para decifrar de onde viemos. Mas são também telescópios e sondas apontadas ao futuro.
(José Tolentino Mendonça, in Revista LER nº 157, 2020)

04 dezembro 2020

aquisições

Chegados nos últimos dias, bem adequados aos dias que vivemos.

o plano de vacinação

Foi conhecido ontem o plano nacional de vacinação da Covid-19 preparado pela task-force responsável pela elaboração do mesmo. Não assisti à conferência de imprensa de apresentação do plano, mas já tive oportunidade de o conhecer e não posso deixar de dizer que, de uma forma geral, parece-me muito bem construído e preparado, naquilo que são as diferentes fases, as prioridades, os objectivos e os grupos de maior risco, já identificados e que terão prioridade no acesso à vacina. Não consigo perspectivar alternativas a esta proposta. Também me parece muito bem que a sua gestão seja centralizada na DGS e que a distribuição e vacinação, pelo menos, nas primeiras fases, seja realizada através dos Centros de Saúde. É claro que tudo isto é ainda uma planificação em papel e só quando se passar à operacionalização no terreno é que vamos saber se a estrutura do Serviço Nacional de Saúde conseguirá dar resposta a uma missão desta envergadura. Vai ser um processo longo e demorado. Aos portugueses só nos resta ter paciência, manter as regras estabelecidas para combater o vírus e aguardar pela nossa vez de sermos vacinados.

01 dezembro 2020

o heterodoxo

Acordei com a notícia do falecimento de Eduardo Lourenço. Um dos principais pensadores da contemporaneidade em Portugal desaparece aos 97 anos, deixando uma obra brilhante e seminal para as gerações vindouras. Será, sem qualquer dúvida, uma referência do pensamento português do século XX e XXI, aquele que nunca desistiu de procurar Portugal no seu labirinto.