05 maio 2009

sanitário do mundo

Assaltado fui, recentemente, com a notícia em forma de boato que a Cerâmica de Valadares se encontra com várias e sérias dificuldades que, a curto prazo, poderão mesmo pôr em risco a sua viabilidade futura. Foi igualmente com enorme surpresa e tristeza que ouvi dizer que, face a essas dificuldades, a administração da Cerâmica tenciona vender as actuais instalações e deslocalizar a empresa para outro local (!?).
Como valadarense que sou (assim me considero), também me vejo parte interessada no bem-estar e na qualidade da vida da comunidade. Esta situação da Cerâmica de Valadares e o seu putativo encerramento, pelo menos em Valadares, é algo que prejudicaria por demais a comunidade, não só para no que diz respeito à economia local - pelos postos de trabalho, pelas dinâmicas inerentes, pelos consumos anexos e práticas adjacentes, como também para o nome de Valadares, pelo conhecimento e, principalmente, pelo reconhecimento que a marca proporciona à Vila de Valadares.
Se podemos considerar natural quando deambulamos pelo país, e de lés a lés, dar de caras (e com outras partes do corpo) com a etiqueta de Valadares, o que, aliás, nos permite com propriedade sentir em casa… já não será tão natural depois de meia volta ao mundo continuar a encontrar, aqui, ali e acolá, essa mesma etiqueta. Não sendo um individuo muito viajado, tenho tido a oportunidade de conhecer outras geografias, umas mais, outras menos longínquas e o que me tem acontecido, frequentemente, nessas ocasiões e sempre que necessito de experimentar uma casa-de-banho é sentir-me projectado, ainda que temporária e momentaneamente, de regresso ao aconchego e conforto do lar. Não estarei a exagerar se vos disser que não me lembro de uma única viagem pelo mundo – da Jordânia a Londres, de Marrocos a Atenas ou de Paris a Moçambique, que não tivesse contacto visual ou sensorial com um qualquer utilitário oriundo, tal como eu, de Valadares.
Desconheço por completo os canais de escoamento e os mercados actuais, passados ou futuros da marca Cerâmica de Valadares. Contudo, é nesses momentos de afastamento que mais me apercebo do valor e potencial da marca e da real dimensão da globalização, naquilo que compreende a projecção de algo local para uma dimensão ou nível mundial e as implicações e repercussões que essa dinâmica globalizante provocam nas lógicas locais.
Poderão alguns até ficar ofendidos e desagradados com esta associação do nome de Valadares a essa parafernália de utensílios ou utilitários privados e públicos, normalmente entendidos como os fiéis depositários daquilo que são os excessos repugnantes que o próprio organismo humano rejeita. Mas, no que a mim me diz respeito, nada nisso me incomoda e, dignamente e com orgulho, aceito que Valadares possa ser o sanitário do mundo.
O terrível cenário de encerramento da Cerâmica traz-me também à consciência outros factos, que por (de)formação técnica me assaltam e me deixam preocupado. Sendo esta uma instituição com várias dezenas de anos de existência e com uma capacidade empregadora significativa, foram muitas as gerações de trabalhadores que por lá passaram e lá fizeram a sua vida. Foi, concerteza, lá o momento primeiro de muitas vidas a dois; muitas terão sido as famílias que de lá tiraram o seu ganha-pão, muitas vezes, a única fonte de rendimentos para famílias inteiras. Foi um espaço testemunha de muitos e diferentes tempos, foi e é, um espaço-tempo. Por lá e lá viveram-se muitas vidas e essas histórias de vida associadas a essa manufactura mereceriam um outro fim. Por outro lado, como é que a comunidade de Valadares conviveu com esta grande indústria? Qual a relação e o envolvimento da instituição na comunidade? Qual foi o papel da Cerâmica para o desenvolvimento económico, social, cultural e demográfico da comunidade? Estas seriam algumas das questões que importava colocar na busca de respostas que contribuíssem para um melhor e maior conhecimento da história da empresa e da história da própria comunidade.
Como podem imaginar haveria tanto e tanto para fazer, para dizer, para escrever acerca destes longos anos da Cerâmica. E tantas seriam as possibilidades de trabalho que tamanha empresa implicaria muito tempo e disponibilidade. Deixo-vos um só exemplo daquilo que poderia ser feito: Na década de oitenta um antropólogo estrangeiro chega a Portugal. Anonimamente radica-se numa determinada comunidade e emprega-se como operário numa grande unidade industrial. O seu objectivo é estudar essa indústria, não como elemento estranho ou exógeno, mas como parte integrante e activa de todo o processo produtivo. Ninguém da estrutura dessa empresa soube das suas reais intenções e durante o período de tempo que necessitou para fazer o seu trabalho de campo, viveu e trabalhou como qualquer outro funcionário da dita empresa. No fim, despediu-se e regressou ao seu país para aí apresentar à academia o seu trabalho.
A dúvida que me assalta neste momento, e isto porque não conheço nem tenho qualquer contacto ou acesso à administração é saber se alguém, algum dia, estudou esta grande unidade de produção!? Terá alguém recolhido e registado os inúmeros testemunhos de tantas e tantas histórias de vida daqueles que contribuíram definitivamente para o sucesso da marca e da organização!?...Não sei, mas gostava de saber. Aliás, gostava de conhecer tais trabalhos. Mais, pretendi com este texto alertar publicamente para o risco da perda de um incomensurável património material e, acima de tudo, imaterial.
(texto enviado para o Jornal Valadares & a Cidade em Foco)

1 comentário:

tabarish disse...

Boa abordagem ao tema. Segundo o que sei a fábrica vai sim deslocalizar-se mas para um terreno já adquirido muito perto do feira nova logo em VALADARES.